A ARTE DO CHOQUE E DO ENGAJAMENTO
Sobre Tropa de Elite e sua excelência cinematográfica

No comando da narração de Tropa de Elite, o Capitão Nascimento refere-se ao combate entre policiais e traficantes cariocas como uma “guerra”. A noção, longe de ser novidade, é corroborada pelo filme com veemência. Preciso na montagem do seu “ringue”, José Padilha prefere uma abordagem de urgência a uma eventual historização comedida, que tomasse as devidas distâncias do contexto social imediato à produção. As origens ou possíveis explicações do confronto não interessam, portanto, a este filme, que dedica-se a fixar o conflito e chamar à responsabilidade seus principais agentes.

Considerando-se ou não sua proposta de tocar de forma polêmica em alguns dos pontos críticos no que se refere a este quadro complexo (como a participação do usuário de drogas na cadeia), ou mesmo a excelência de todas as suas operações narrativas, parece inevitável o impulso de compará-lo a outros filmes sobre o assunto, em especial Cidade de Deus, matriz absoluta deste “gênero” no cinema brasileiro recente, e Notícias de Uma Guerra Particular, contemporização “esclarecida” em cima de uma fratura social exposta.

Se Tropa de Elite parte deste imaginário já consolidado e o utiliza como matéria-prima, seu trunfo reside precisamente no diálogo que estabelece com ele. A meio caminho da narrativa ficcional vertiginosa e da ponderação do documentário analítico-reflexivo, o filme alimenta-se de tipos, trejeitos e falas para desnudar as relações de forças em jogo na cena. O que interessa a Padilha são as ações e os embates delas resultantes. Se a cada ação corresponde uma reação, o tecido social é feito de uma rede sem fim de inter-relações compostas de gestos e posturas, muitas vezes determinados pelo campo do qual partem. Neste sentido, a cartela inicial, que cita a teoria de psicologia social que diz que as ações dos homens são antes determinadas pelo contexto em que estão inseridos do que pelo seu caráter, constitui menos uma justificativa ou um porto seguro e mais uma petição de princípios.

Da mesma forma, a relação que o filme estabelece com as teorias foucaultianas das micro-relações de poder e dos aparatos institucionais é de uma delicada negociação de sentidos. Se Vigiar e Punir é evocado em sala de aula, não é por acaso: o aparelho repressivo do Estado reserva-se o direito de inspecionar a obediência às leis para garantir o perfeito funcionamento do conjunto social e de punir exemplarmente aqueles que fugirem à regra. Em contrapartida, a sociedade deposita sobre este aparelho sua expectativa de ordem. Nesta via de mão dupla, as trocas de forças devem manter seu equilíbrio, para assegurar que outras relações de forças não sejam prejudicadas. Estes processos todos, no entanto, evidentemente nunca se dão de forma pacata.

E tudo em Tropa de Elite diz respeito a posicionamentos e a efeitos de choque. Das atitudes e tomadas de posição dos personagens à interpelação do espectador, cuja adesão “automática” à instância narradora é problematizada e colocada em xeque. Uma vez reconhecido o estado de perigo permanente, marcado pela presença da violência, latente e manifesta, que nossa sociedade enfrenta, o filme reconhece como impossível a delineação de um retrato-síntese, ou mesmo de qualquer visão de todo apaziguadora. Interessa a ele desenvolver uma estética do choque: montagem acelerada, que condensa espaços, estabelece relações, atira um extrato social contra o outro e um personagem contra o outro; câmera em permanente tensão com os corpos e com o vir-a-ser do que filma (sempre na iminência de desequilíbrio); narrador que contempla o combate como essência de tudo o que apresenta.

Se para o Capitão Nascimento, comandante do BOPE e agente de intervenção afirmativa num quadro que o preexiste, trata-se de um esforço de aniquilação direcionado dentro de um panorama amplo que ele percebe perfeitamente, mas sobre o qual não haveria controle possível, para o espectador trata-se de se orientar dentro da teia apresentada e, em meio ao fogo cruzado, escolher ativamente seu pertencimento ético. O policial serve de avatar privilegiado (porque diretamente implicado no substrato da narrativa) da operação cinematográfica de Padilha: confrontar o espectador com uma situação sem saída da qual ele é também agente e deve, portanto, reconhecer o seu papel e assumir a responsabilidade de suas filiações (afetivas ou não). Estamos necessariamente implicados no embate de forças posto em evidência pelo filme e é no entrecruzamento entre nosso olhar e o olhar do narrador que encontra-se propriamente o sentido de crise que faz de Tropa de Elite uma obra ao mesmo tempo complexa e fascinante.

E o que deve ser colocado em crise para Padilha é precisamente o ponto cego de toda esta equação conflituosa: a classe média. O que apresentava-se já em Ônibus 174 como chamada à consciência através de análises sociológicas de relações de classe, aparece aqui como problematização direta de ações a um só tempo pessoais e sociais, fruto de um choque primordial entre desejo individual e responsabilidade frente ao coletivo. Em Tropa de Elite, não há meio-termo e não há conforto: a classe média divide-se em duas faces irreconciliáveis, a do desejo de ordem de um lado, e a da “consciência social” do outro. Uma calca-se na crença no poder da instituição, para a qual tudo deve ser preto-no-branco, e deposita na ação positivada da polícia sua esperança maior; outra calca-se em sua compreensão nuançada da interação entre as camadas sociais e na permissividade daí advinda.

Tal retrato só é sustentável pela estética de choque já citada: a partir do momento em que a sociedade encontra-se clivada por um conflito de natureza bélica que atinge proporções inaceitáveis, é preciso dizer não a qualquer perspectiva reconciliadora. E isto significa perder o chão, ver-se obrigado a abrir mão de antigas convicções, descartar as operações intelectuais que serviam de amparo, entrar em crise. Pois endossar a ação da polícia nos moldes apresentados significaria compactuar com o desrespeito à vida e afirmar o extermínio como solução. E negar esta ação seria demonstrar abertura em relação à atividade criminosa dos traficantes e suas conseqüências para a segurança pública (consuma-se ou não as drogas que a alimentam). Desta forma, não haveria solução, apenas a inevitabilidade do confronto. Vivemos num território em guerra, sem campo neutro. A batalha envolve a todos e, diferentemente de uma guerra tradicional, compreende múltiplos fronts e diversos “exércitos”. Como diz Nascimento, o Rio de Janeiro depende de um delicado equilíbrio de forças.

Esta paisagem desolada de uma situação sem saída, Tropa de Elite herda de Notícias de Uma Guerra Particular. Com a diferença de que a postura observacional do filme de João Moreira Salles e Kátia Lund é substituída pelo tapa na cara. Diante de tal quadro, Padilha desautoriza a existência do sujeito de ação contemplativa. Não é mais possível reagir por meio de operações abstratas a serviço de uma apreensão intelectual do problema, ou por meio de um pesar de medidas da questão. A violência explícita e o corpo-a-corpo colocado em cena configuram o choque indistintamente como afecção da imagem e objeto de representação. Paralelamente, o ponto de vista deve perder sua condição neutra e distanciada e mergulhar de corpo e alma na experiência da guerra: risco de morte, medo, pavor, adrenalina, agressividade. É quando o Capitão Rodrigo Pimentel toma a frente da narrativa, na sua condição de soldado por excelência e por formação, e torna-se o Capitão Nascimento. Este é também o momento em que a classe média sai dos interstícios do discurso e passa a dividir a cena com os demais protagonistas.

O “corpo social” passa então de uma figura de linguagem auxiliar à conceitualização de quem deseja compreender o funcionamento da comunidade a imagem concreta: é no corpo que se inscrevem o registro de fala, o gestual, o figurino, a localização geográfica e, por último, as ações que posicionam o indivíduo no conflito. Neste sentido, Tropa de Elite é um filme profundamente físico, cujo trabalho de câmera constrói um realismo baseado na tentativa de apreensão imediata do mundo. O resultado é um conjunto de imagens que causam impacto pela sua relação visceral com cenas cotidianas, longe de qualquer aura de evento de exceção. Ao mesmo tempo, José Padilha trabalha com uma estrutura dramática icônica, que se vale de tipificações que possibilitem reconhecimento imediato. Assim sendo, temos o drogadinho da zona sul que sobe o morro sem medo e lida de igual pra igual com os traficantes, a menina descolada que critica a ação da polícia e se orgulha de trabalhar numa ONG beneficente, o negro pobre que almeja ascender socialmente pelo estudo, os PMs assumidamente corruptos, e por aí vai. Acusados por muitos de serem estereótipos, estes personagens são antes “interfaces” correntes dos segmentos sociais que representam, imagens que promovem facilmente o intercâmbio entre o mundo do filme e o mundo real. Há aí uma arte um quê primitiva da ilustração e da retórica pela exemplificação. “Para que melhor visualizes meu argumento, traço diante de ti uma situação ideal com personagens ideais.”

Esta elaboração estética bastante particular que Padilha consegue pôr em obra em Tropa de Elite impressiona pela dimensão de diálogo que ela apresenta: com o espectador, com a realidade que habita as ruas e com os filmes sobre este assunto que o precedem. Parece até irônico que, logo após ter ganhado o mundo em cópias piratas, Tropa de Elite tenha recebido uma “continuação” bastante especial: Notícias de Uma Guerra Particular passou a ser vendido como Tropa de Elite 2. O fato é que o filme de Padilha é em muito debitário do de João Moreira Salles. Não apenas por se basear no livro-depoimento co-escrito pelo já citado Capitão Rodrigo Pimentel (Elite da Tropa), mas principalmente por retomar o espírito de mapeamento e os sentimentos evocados por Notícias. Ali está este Capitão do BOPE que demonstra cansaço com sua profissão, que oscila entre medo e potência, que cita a reação familiar ao seu trabalho, assim como estão a idéia de guerra (confronto sem concessões em que se parte para matar o inimigo), o sentido enterro de um oficial, a crueldade como constituinte de uma lógica em prática que ignora nossos preceitos de humanidade. Além disso, ambos situam-se diegeticamente no ano de 1997, embora dez anos separem suas respectivas realizações.

Já com Cidade de Deus, Tropa de Elite relaciona-se na chave do distanciamento. Um encontro entre policiais e traficantes, um recuo no tempo para explicar como se chegou até ali (para só depois prosseguir): esta estratégia de roteiro está presente nos dois filmes, mas abre espaço para perspectivas radicalmente diferentes em cada um deles. Em Cidade de Deus, uma mescla de épico histórico com drama pessoal, na qual o narrador faz papel de mediação entre o espectador e o universo sórdido a ser apresentado; em Tropa de Elite, um narrador diretamente implicado (nunca sem complicações) naquilo que narra, tragando o espectador pra dentro de sua lógica e colocando-o face-a-face com os eventos que ele testemunha. Enquanto um toma o partido da “ficção cinematográfica”, ancorando-se em clichês de gênero para afirmar sua liberdade narrativa e professar, simultaneamente, seu comprometimento com uma história dada, o outro prefere a postura “documental” de aderir a fatos (decalcados de experiências no real), a partir dos quais ele intui o drama. À onisciência lúdica de Buscapé/Meirelles, para quem todas as ações são fruto de questões absolutamente pessoais, Padilha responde com um personagem de ponto de vista firme, fruto de um conhecimento de causa e de um posicionamento irrevogável, que pressupõe necessariamente que toda ação possui dimensões políticas e sociais. Se Dadinho/Zé Pequeno era “um cara chato”, além de demoníaco desde criança sem razões aparentes, e ser bandido em Cidade de Deus parecia mais questão de vocação, em Tropa, traficar é fazer uma opção (não importa se a mais indicada ou a mais coerente com as condições do sujeito). Para Padilha, os personagens são donos de seus destinos. Mesmo imersos em determinados contextos, suas escolhas determinarão sua força de caráter e, suas atitudes, seu futuro. Voltamos à exposição da cartela inicial do filme.

Tropa de Elite é capaz de fazer tudo aquilo que seus antecessores não lograram (incluindo Ônibus 174): colocar a sociedade diante de si mesma e obrigá-la a se confrontar com suas morais ocultas, ou com sua ausência de parâmetros morais definidos para a situação que atravessa. Se até agora compactuamos secretamente com a intervenção “cirúrgica” de uma milícia treinada para operações de guerra em área urbana, para garantir nossa tranqüilidade, uma vez escancaradas todas as regras do jogo, seremos nós capazes de prosseguir da mesma forma? Toda a força política do filme reside em colocar esta pergunta. E sua radicalidade original está na forma como a apresenta. Espécie de entrecruzamento entre cinema narrativo e “proposição” interativa, Tropa de Elite propõe uma nova forma de engajamento: não mais um cinema engajado, que encerre nele mesmo os discursos, mas um cinema que engaje, e que espelhe as próprias escolhas do espectador. Desta forma, não deixa de ser admirável a comoção que o filme causou na população brasileira. Opiniões individuais à parte, todos reagiram mobilizando-se de acordo com uma medida pessoal em correlação direta com sua experiência em sociedade. E como, em se tratando de arte, não se pode falar em “eficiência”, poderíamos dizer que o filme atingiu admiravelmente a plenitude de sua proposição.

Tatiana Monassa