VOCÊS, OS VIVOS
Roy Andersson, Du levande, Suécia/Alemanha/França/Dinamarca/Noruega, 2007

Vocês, os Vivos, no que há nisso de melhor e de pior, parece ter saído das páginas do caderno de cultura de um jornal de grande circulação qualquer. De um lado, Roy Andersson mostra um apuro no olhar sobre a vida mundana digno dos melhores cronistas diários. Diante de todo o painel da cotidianidade urbana que as historietas do filme vão montando, o último resultado desejado parece ser exatamente este, o de ser painel do que quer que seja. Não que Andersson disfarce que esteja querendo fazer um filme “sobre a humanidade”, mas o que retira Vocês, os Vivos do caminho de tantos outros projetos que se atreveram a encenar este grande tema com a pompa que lhes parecia devida é que, aqui, a humanidade não é mero objeto representado, mas parece ter sido, ela própria, convidada a estrelar o filme.

E ainda assim, não é o caso de se falar num super-realismo do relato. A experiência episódica de Vocês, os Vivos (como as boas crônicas de jornal) lida menos com personagens que com espectros humanos, menos com motivos que com atos, menos com a psicologia e mais com a anatomia das situações. A referência mais evidente, neste caso, é o cinema de Jacques Tati. Mesmo o espelhamento da experiência dos homens na estrutura arquitetônica da cidade está presente aqui, no modo como os pequenos esquetes cômicos, quando não diretamente proporcionadas pelo espaço físico (piadas com elevadores superlotados, filas para compra de bilhetes de trem, vizinhos barulhentos no andar de cima), nunca nos deixam esquecer que sua ocorrência se dá no interior da cidade, acompanhando seu movimento e pulsação, e não em pequenos palcos cênicos isolados dela (o efeito mais encantador desta operação se manifesta do lado de fora das janelas, que Andersson faz sempre questão de enquadrar; há um mundo girando lá no exterior da cena, e as janelas abertas são o que mantém viva esta conexão entre as duas esferas).

Mas se Tati enxergava nos corpos de seus atores a residência de toda a fisicalidade da ação, onde os personagens – muito mais que a câmera – eram os responsáveis efetivos pelo movimento e trânsito das seqüências, Vocês, os Vivos, com toda a ironia de seu título, lida com quase-mortos. Todas as figuras que cruzam o filme, das mais comuns às mais bizarras, parecem ter sido ainda mais empalidecidas pela maquiagem pesada que a brancura natural da pele de um sueco em pleno inverno. Nesta cidade anônima em que várias situações dramáticas são apresentadas sem que tenham qualquer relação direta entre si, unidas tão somente pela ocorrência simultânea no próprio espaço da cidade, não raro teremos a sensação de que aquele é um universo que não funciona na mesma dimensão do nosso, material, terreno. Difícil não enxergar certos personagens vagantes, certos dramas-limite, certas indagações filosóficas, como dignas de zumbis, de pessoas presas entre a vida e a morte, ainda acertando as contas com um lado e outro. A locação de Vocês, os Vivos parece ser o purgatório. 

E nesse ambiente cadavérico-mas-ativo, a dinâmica estabelecida por Andersson (outra a dar inveja aos tais cadernos de cultura) torna este o filme que talvez mais se aproxime da idéia de uma tirinha de quadrinhos. Cada situação é tomada com uma câmera fixa, cujo quadro não se altera ao longo de toda a seqüência (exceção feita a um belo travelling de ida e volta no meio de um corredor de pessoas que celebram um jantar – travelling este que Andersson executa quase como para dizer que não é a força de um carrinho sob a câmera que torna mais fluente um plano, uma vez que o movimento naquela seqüência é completamente aleatório). Mesmo com esta proposta estética aparentemente restritiva, tudo o que Vocês, os Vivos não nos apresenta é rigidez. Seja pelo recurso da pura gag (músicos tocando jazz à sueca num funeral), ou por dramas que se resolvem com uma ou duas linhas de diálogo (a maravilhosa cena da professora que chega desesperada à classe de aula, chorando muito, e que diante da indagação de seus aluninhos de 7 anos de idade sobre os motivos de tanta lágrima, responde simplesmente: “meu marido acha que eu sou um bucho”), o filme sempre caminha como se cada imagem fosse um quadradinho num papel, e como se o desenhista só dispusesse de três desses quadradinhos para dar seu recado. É assim que os planos que Andersson filma vão se preenchendo de uma série de signos e sentidos diversos, talvez nem sempre diretamente ligados à pequena intriga encenada ali, mas que ajudam a compor este quadradinho como se um mundo, real e palpável, estivesse envolvendo aqueles personagens. Como os melhores quadrinistas, Andersson dá tanta importância à pessoa que tem um balãozinho de diálogo e que aparece na frente do desenho quanto àquilo que compõe o fundo da cena: falamos já do uso das janelas, mas há também aqui um trabalho excepcional com o elenco de figurantes, que não são meros preenchedores de espaço, mas peças indissociáveis dele. E da concatenação de diversas tirinhas filmadas, surge uma verdadeira antologia dos melhores momentos deste quadrinista-diretor, cheio de suas aproximações e obsessões, cheio das situações que se estabelecem, naturalmente, como campo e contracampo entre si.

Por fim, este equilíbrio tão fino entre o olhar do melhor cronista e a estética da melhor tirinha de HQ não retira de Vocês, os Vivos (como dos rotundos cadernos culturais) a crença na relevância de que seu trabalho está investido, mesmo de uma certa importância política e social que torne aquele esforço miúdo uma potência de reverberação mais ampla. Os personagens de Vocês, os Vivos serão, um a um, retirados de suas intrigas e mesquinharias cotidianas e terão seus olhares direcionados para algo grandioso que surge fora do quadro. Talvez seja a anunciação do juízo final, talvez seja um cometa, talvez seja uma abstração qualquer, isso na verdade importa pouco. É, de todo modo, a presença de um objeto exterior àquele mundo tão adoravelmente incongruente que víramos até ali. Um objeto que ignora a miudeza das relações, o gosto pela pequena trama, que abandona a idéia de humanidade que se construíra até ali em nome daquela outra, grandiosa e imaterial, escrita com H maiúsculo. Mas os jornais, como os filmes, já não tem mais muita importância assim. E se eles seguem sendo feitos é porque ainda é possível encontrar alguém capaz de converter o grande espaço em exercício microscópico do olhar, em transformar a dimensão de uma tela nisso que ela tem de mais útil: a possibilidade de fazer caber ali dentro, sem suas letras maiúsculas, o mundo, a vida, a humanidade. E o maior valor de Vocês, os Vivos não está naquilo que se aproxima assustadoramente, vindo do fora-da-tela, mas no que acontece dentro dela, e em como o filme se dedica a ser tão divertidamente minúsculo quanto o drama dos personagens que acompanha.

Rodrigo de Oliveira

 

 





Um casal curtindo a lua-de-mel, a janela aberta para
deixar o mundo participar da festa: Vocês, os Vivos,
entre a crônica de jornal e a tirinha de quadrinhos