Vocês, os Vivos, no que há
nisso de melhor e de pior, parece ter saído das páginas
do caderno de cultura de um jornal de grande circulação
qualquer. De um lado, Roy Andersson mostra um apuro no
olhar sobre a vida mundana digno dos melhores cronistas
diários. Diante de todo o painel da cotidianidade urbana
que as historietas do filme vão montando, o último resultado
desejado parece ser exatamente este, o de ser painel
do que quer que seja. Não que Andersson
disfarce que esteja querendo fazer um filme “sobre a
humanidade”, mas o que retira Vocês, os Vivos do caminho de tantos outros
projetos que se atreveram a encenar este grande tema
com a pompa que lhes parecia devida é que, aqui, a humanidade
não é mero objeto representado, mas parece ter sido,
ela própria, convidada a estrelar o filme.
E ainda assim, não é o caso de se falar num super-realismo
do relato. A experiência episódica de Vocês,
os Vivos (como as boas crônicas de jornal) lida
menos com personagens que com espectros humanos, menos
com motivos que com atos, menos com a psicologia e mais
com a anatomia das situações. A referência mais evidente,
neste caso, é o cinema de Jacques Tati.
Mesmo o espelhamento da experiência dos homens na estrutura
arquitetônica da cidade está presente aqui, no modo
como os pequenos esquetes cômicos, quando não diretamente
proporcionadas pelo espaço físico (piadas com elevadores
superlotados, filas para compra de bilhetes de trem,
vizinhos barulhentos no andar de cima), nunca nos deixam
esquecer que sua ocorrência se dá no interior da cidade,
acompanhando seu movimento e pulsação, e não em pequenos
palcos cênicos isolados dela (o efeito mais encantador
desta operação se manifesta do lado de fora das janelas,
que Andersson faz sempre questão
de enquadrar; há um mundo girando lá no exterior da
cena, e as janelas abertas são o que mantém viva esta
conexão entre as duas esferas).
Mas se Tati enxergava nos
corpos de seus atores a residência de toda a fisicalidade
da ação, onde os personagens – muito mais que a câmera
– eram os responsáveis efetivos
pelo movimento e trânsito das seqüências, Vocês, os Vivos, com toda a ironia de seu
título, lida com quase-mortos. Todas as figuras que
cruzam o filme, das mais comuns às mais bizarras, parecem
ter sido ainda mais empalidecidas pela maquiagem pesada
que a brancura natural da pele de um sueco em pleno
inverno. Nesta cidade anônima em que várias situações
dramáticas são apresentadas sem que tenham qualquer
relação direta entre si, unidas tão somente pela ocorrência
simultânea no próprio espaço da cidade, não raro teremos
a sensação de que aquele é um universo que não funciona
na mesma dimensão do nosso, material, terreno. Difícil
não enxergar certos personagens vagantes, certos dramas-limite,
certas indagações filosóficas, como dignas de zumbis,
de pessoas presas entre a vida e a morte, ainda acertando
as contas com um lado e outro. A locação de Vocês,
os Vivos parece ser o purgatório.
E nesse ambiente cadavérico-mas-ativo,
a dinâmica estabelecida por Andersson
(outra a dar inveja aos tais cadernos de cultura) torna
este o filme que talvez mais se aproxime da idéia de
uma tirinha de quadrinhos. Cada situação é tomada com
uma câmera fixa, cujo quadro não se altera ao longo
de toda a seqüência (exceção feita a um belo travelling
de ida e volta no meio de um corredor de pessoas que
celebram um jantar – travelling
este que Andersson executa
quase como para dizer que não é a
força de um carrinho sob a câmera que torna mais fluente
um plano, uma vez que o movimento naquela seqüência
é completamente aleatório). Mesmo com esta proposta
estética aparentemente restritiva, tudo o que Vocês,
os Vivos não nos apresenta é rigidez. Seja pelo
recurso da pura gag (músicos tocando jazz à sueca num funeral), ou por dramas que
se resolvem com uma ou duas linhas de diálogo (a maravilhosa
cena da professora que chega desesperada à classe de
aula, chorando muito, e que diante da indagação de seus
aluninhos de 7 anos de idade
sobre os motivos de tanta lágrima, responde simplesmente:
“meu marido acha que eu sou um bucho”), o filme sempre
caminha como se cada imagem fosse um quadradinho num
papel, e como se o desenhista só dispusesse de três
desses quadradinhos para dar seu recado. É assim que
os planos que Andersson filma
vão se preenchendo de uma série de signos e sentidos
diversos, talvez nem sempre diretamente ligados à pequena
intriga encenada ali, mas que ajudam a compor este quadradinho
como se um mundo, real e palpável,
estivesse envolvendo aqueles personagens. Como
os melhores quadrinistas, Andersson dá tanta
importância à pessoa que tem um balãozinho de diálogo
e que aparece na frente do desenho quanto àquilo que
compõe o fundo da cena: falamos já do uso das janelas,
mas há também aqui um trabalho excepcional com o elenco
de figurantes, que não são meros preenchedores
de espaço, mas peças indissociáveis dele. E da concatenação
de diversas tirinhas filmadas, surge uma verdadeira
antologia dos melhores momentos deste quadrinista-diretor,
cheio de suas aproximações e obsessões, cheio das situações
que se estabelecem, naturalmente, como campo e contracampo
entre si.
Por fim, este equilíbrio
tão fino entre o olhar do melhor cronista e a estética
da melhor tirinha de HQ não retira de Vocês, os Vivos (como dos rotundos cadernos
culturais) a crença na relevância de que seu trabalho
está investido, mesmo de uma certa
importância política e social que torne aquele esforço
miúdo uma potência de reverberação mais ampla. Os personagens
de Vocês, os Vivos
serão, um a um, retirados de suas intrigas e mesquinharias
cotidianas e terão seus olhares direcionados para algo
grandioso que surge fora do quadro. Talvez seja a anunciação
do juízo final, talvez seja um cometa, talvez seja uma
abstração qualquer, isso na verdade importa pouco. É,
de todo modo, a presença de um objeto exterior àquele
mundo tão adoravelmente incongruente que víramos até
ali. Um objeto que ignora a miudeza das relações, o
gosto pela pequena trama, que abandona a idéia de humanidade
que se construíra até ali em nome daquela outra, grandiosa
e imaterial, escrita com H maiúsculo. Mas os
jornais, como os filmes, já não tem mais muita
importância assim. E se eles seguem sendo feitos é porque
ainda é possível encontrar alguém capaz de converter
o grande espaço em exercício microscópico do olhar,
em transformar a dimensão de uma tela nisso que ela
tem de mais útil: a possibilidade de fazer caber ali
dentro, sem suas letras maiúsculas, o mundo, a vida,
a humanidade. E o maior valor de Vocês, os Vivos não está naquilo que se
aproxima assustadoramente, vindo do fora-da-tela,
mas no que acontece dentro dela, e em como o filme se
dedica a ser tão divertidamente minúsculo quanto o drama
dos personagens que acompanha.
Rodrigo de Oliveira
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