Michael Moore vem melhorando.
Farenheit 9/11 já não era tão ruim quanto Tiros
em Columbine. Toda a etapa de coleta de dados e
de edição apontava um lado mais sólido do seu discurso.
O ingrediente polêmico-performático era ainda profundamente
constrangedor e inócuo, mas o filme trazia mais do que
um simples conjunto de imagens e frases que a CNN jamais
veicularia. Em Moore, e isso não é novidade, não se
trata de escândalo e denúncia por um viés jornalístico,
e sim de showbiz. No fundo, tanto em Farenheit
9/11 como agora em S.O.S. Saúde, o que Moore
faz é um excelente inventário do discurso republicano,
acoplado a um sistema retórico que, de alguma forma
muito bem solucionado em seu novo filme, rende o mais
típico espetáculo performático (televisivo?) à moda
americana. Ele não apresenta um contra-discurso a Bush
que seja inteligente e perspicaz. O supra-sumo de sua
retórica consiste nos pontos obscuros deflagrados no
discurso da própria ala conservadora que ataca. Resumindo:
Michael Moore entende muito bem o pensamento dos inimigos,
e sabe usá-lo a seu favor. S.O.S. Saúde é um
filme assim: fala mais – e melhor – quando fala através
dos inimigos, expondo o ridículo de suas alegações,
e mobiliza os aliados (como na cena em que encontra
americanos que vivem na França) menos para criar uma
nova proposta de pensamento do que para reforçar o absurdo
da proposta que seu filme se dedica a espinafrar.
Para além das artimanhas discursivas, S.O.S. Saúde
é de longe o filme menos óbvio de Moore. A leviandade
de Tiros em Columbine está afastada: aqui as
peças não se montam de forma tão afoita. Moore investe
numa modalidade interrogativa que mantém o cinismo,
mas que é de fato uma necessidade de interrogar, de
questionar, enquanto nos outros filmes tudo parecia
já ter resposta – portanto, tudo soava falso e, por
vezes, desonesto. O melhor de S.O.S. Saúde é
aquela operação típica de Moore, e que dá justamente
o tom de seu pertencimento a um americanismo profundo:
é preciso invadir outro país, ir até o estrangeiro.
Godard em Alemanha Nove Zero diz que os EUA só
conhecem um tipo de guerra, civil. Primeiro lutaram
entre si, depois começaram a combater ditadores ao redor
do mundo, por estes estarem por demais parecidos com
os EUA. Em S.O.S. Saúde, Moore vai atrás de sistemas
de saúde (no Canadá, na Inglaterra, na França) que diferem
radicalmente da máfia dos convênios implantada na América.
Primeiro ele expõe casos em que o absurdo do sistema
americano arruinou a vida de algumas pessoas. Depois
vai ao estrangeiro e conversa com pessoas que, cada
qual em sua posição (médico, paciente, chefe de serviço
de saúde), defendem as vantagens e as maravilhas da
saúde pública, ou seja, do acesso democrático ao tratamento
médico. De um lado, o inferno; do outro, o paraíso.
Moore reforça, quase atingindo um tom de fábula, a visão
de que tudo funciona às mil maravilhas nos países que
socializaram a medicina. Fragilidade do discurso? Superficialidade?
Nem tanto, caso o espectador assuma seu verdadeiro lugar
nessa partilha de informações e emoções (e S.O.S.
Saúde apela ainda mais para o emocional do que os
outros filmes de Moore) estabelecida lá desde o início.
A dobradinha política-sentimentalismo, sobretudo da
forma que Moore a articula, faria muitos críticos subirem
pelas paredes nos anos 70. E, dado o contexto, eles
tinham razão. Mas eis que S.O.S. Saúde dedica
toda sua parte final a essa blasfemada articulação e
não se sai tão mal. Moore vai a Cuba na companhia de
bombeiros americanos que ajudaram no 11 de setembro
e, uma vez tendo adquirido doenças pulmonares ou cárdio-vasculares,
foram abandonados pelo governo e entregues à selvageria
dos planos de saúde. Ele vai, portanto, pedir ajuda
ao inimigo de Bush, recorrendo a um hospital da ilha
de Fidel Castro (a saúde pública cubana é famosa mundialmente)
para tratar os heróis abandonados do 11 de setembro.
Está certo que o encontro dos americanos com o corpo
de bombeiros de Havana é meio constrangedor, parece
aqueles momentos-melodrama dos piores reality shows
televisivos (a seqüência que mostra a evolução do tratamento
chega a lembrar Extreme Makeover!). Em outros
momentos desse encontro, contudo, Moore atinge questões
no mínimo curiosas, a exemplo da cena em que
deflagra uma lógica de pilhagem imperialista às
avessas: os americanos compram remédios para estocar
como se fossem sacoleiros (em Cuba esses remédios custam
uma bagatela, enquanto nos EUA custam uma fortuna).
A idéia que está por trás daquele encontro, assim sendo,
compensa o sentimentalismo cafona e, na verdade, revela
um filme bem forte – talvez à revelia do próprio Michael
Moore.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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