A QUESTÃO HUMANA
Nicolas Klotz, A Questão Humana, França, 2007
 

Simon é um personagem que transita nas sombras. Pelos desígnios de sua profissão, que o obriga a circular no universo empresarial de forma confidencial e agindo dissimuladamente, e por suas inclinações pessoais, que o fazem indagar sempre um pouco mais os olhares e gestos das pessoas à sua volta. À sua semelhança, A Questão Humana é um filme que apresenta um gosto pela penumbra. Desde o enigmático plano inicial, no qual um longo travelling sub-exposto percorre uma superfície de concreto que apresenta números em série, nos sentimos avançando lacunarmente em um labirinto codificado, no qual o entendimento é problematizado, pois a visão é precária.

Mas neste filme de Klotz, diferentemente de em A Ferida, o olhar não está em questão no sentido da percepção ocular, mas no da compreensão e orientação num cenário humano regido por tramas e intrigas. A Simon é dada a missão de investigar o sócio do presidente da empresa em que trabalha, cujo comportamento tornou-se “suspeito”. Como psicanalista, cabe a ele recolher informações, observar sintomas e desferir um diagnóstico que justifique as ações a serem tomadas – pautadas sempre de acordo com os interesses em jogo. Ali, todo gesto que não obedeça a um plano funcional visando o rendimento máximo é visto como um sinal de decadência em potencial, uma maçã podre dentro do saco, que instaura o risco da contaminação generalizada. Pois para que a instituição opere corretamente, os indivíduos devem necessariamente tornar-se peças perfeitas, precisamente alocadas na engrenagem da qual fazem parte.

Neste cenário cinza, Simon é o homem das novas dinâmicas empresariais do capitalismo contemporâneo, aquele responsável por controlar o lado humano dos empregados e regulá-lo de acordo com os imperativos da corporação, seja promovendo seu entusiasmo e auto-estima, seja escolhendo quem entra e quem sai. Conforme avança em sua pesquisa sobre Mathias Jüst, ser corpulento e misterioso, Simon vai descobrindo um homem melancólico, cada vez mais preocupado com assuntos deveras distantes daqueles exigidos por seu cargo. E esta tristeza – ou pendência para o sentimento –, um quê virótica, parece contaminar nosso personagem-narrador, perturbar sua determinação, tirá-lo da rota, jogá-lo à margem do seu percurso exemplar: nas lacunas e reentrâncias da empresa.

Por trás das paredes e das aparências, Simon descobre que cada uma de suas perguntas abre uma porta para um recinto desconhecido, gerando ainda mais perguntas. Longe das respostas, das explicações e soluções, ele prossegue juntando as peças que consegue recolher. Junto a ele, avançamos tentando compreender as “peças” que nos chegam: cenas-seqüências quase autônomas e planos cujo sentido é reconfigurado pelos planos seguintes. Desta forma, Klotz nos obriga a vigiar nossos passos, assim como Simon; a instalar nosso encadeamento lógico num em falso, a ponto de colocarmos em dúvida nossa percepção do que se passa.

No início do filme, Simon nos avisa que sua narração talvez não se dê de forma cronológica, devido à complexidade dos acontecimentos, que o obrigaria a ir relatando os fatos conforme eles chamassem uns aos outros. Embora alertados, não podemos evitar de ligar de forma linear as cenas que o filme apresenta. Desprezamos os intervalos e agarramos os sentidos evocados como pistas preciosas. Mas a trama aqui já não é mais um assunto de detetive; ela revela-se um emaranhado de expressões faciais, de olhares, de gestos, de medos, de desejos, de frustrações, de expectativas, e nosso guia instrumentalizado para locomover-se neste terreno também já está desarticulado.

À medida que Simon deriva-se de sua missão e mergulha na investigação de segredos “enterrados”, instalados numa espécie de subconsciente da empresa (a origem alemã, o passado dos funcionários), ele escapa aos poucos das regras do jogo. Se nos acostumamos a vê-lo vestido impecavelmente de preto, com sua postura absolutamente contida e equilibrada, seus movimentos medidos, as palavras utilizadas de forma exata, a etiqueta aristocrática sendo posta em prática de forma exemplar, na rave que se dá lá pela metade do filme, seu corpo cai em desmesura completa – trajetória física fenomenal de Mathieu Amalric, um dos atores mais espetaculares d contemporâneo. Paralelamente, as luzes estroboscópicas da festa criam esta espécie de curto-circuito, no qual a visão em dificuldade encontra a crise de uma percepção pessoal e o esforço das autoridades para lembrar a existência da ordem.

A Questão Humana parece ser uma espécie de contraplano de A Ferida. Não mais dois pólos em conflito pela rigidez de uma estrutura estatal/institucional que relega à não-humanidade aqueles indesejados no esquema das coisas, mas o próprio sistema encontrando sua fraqueza em manifestações de humanidade e determinando a partir delas o pertencimento. O conflito é então deslocado para o embate entre a cultura fria, racional, européia por excelência, que informaria as superestruturas, e a fragilidade inequívoca dos sentimentos, dos batimentos cardíacos dos seres vivos. As ordens e as decisões de poder ganham um rosto e as ações que parecem historicamente atávicas revelam sua “ligação perigosa” com a interioridade de homens com nome e sobrenome.

Mais do que o paralelismo entre o processo eliminatório dos nazistas e dos modernos empresários capitalistas, impressiona em A Questão Humana o progressivo emparelhamento dos procedimentos de exclusão de ambos os grupos. Como diz ao final o personagem de Lou Castel, trata-se da técnica: a perversão de todos os parâmetros de humanidade. Humanidade não como uma série de determinações morais, mas como a imprecisão que nos caracteriza, o mundo de abstrações que nos habita, posto em marcha da forma mais sublime talvez justamente pela música, esta arte “matemática” misteriosa, capaz de nos fazer flutuar como partículas na atmosfera. De acordo com a técnica, não teríamos mais questões, interrogações a pairar em nós, mas problemas, passíveis, portanto, de soluções.

Se nunca podemos ter uma visão de todo em A Questão Humana, é porque Klotz não admite nada que seja programático e que se pretenda totalitário. Trata-se, para ele, de combater a técnica, a perspectiva, as linhas retas. Seu cinema, fruto de uma arquitetura intelectual impecável, é um cinema que coloca necessariamente o eurocentrismo em crise. Erguidos a partir das rachaduras de um certo logos sócio-político, seus filmes – ou pelo menos os dois a que pudemos assistir por aqui – buscam contemplar a beleza de tudo que é impreciso. Seu admirável uso de músicas, junto a uma decupagem “calculada”, impecável, cria este mundo abismado, no qual a realidade, com seus códigos e regras, sucumbe a sentimentos instáveis, temporários, evanescentes. Diante do qual precisamos nos perguntar obrigatoriamente: onde estamos e quem somos?


Tatiana Monassa


 



Mathieu Amalric sobre o cinza do mundo corporativo. O motivo "listrado" do fundo, recorrente ao longo do filme, evoca as grades que encerram os homens e as que determinam as coordenadas de suas ações.