Simon é um
personagem que transita nas sombras. Pelos desígnios
de sua profissão, que o obriga a circular no universo
empresarial de forma confidencial e agindo dissimuladamente,
e por suas inclinações pessoais, que o fazem indagar
sempre um pouco mais os olhares e gestos das pessoas
à sua volta. À sua semelhança, A Questão Humana
é um filme que apresenta um gosto pela penumbra. Desde
o enigmático plano inicial, no qual um longo travelling
sub-exposto percorre uma superfície de concreto que
apresenta números em série, nos sentimos avançando lacunarmente
em um labirinto codificado, no qual o entendimento é
problematizado, pois a visão é precária.
Mas neste filme de Klotz, diferentemente de em A
Ferida, o olhar não está em questão no sentido da
percepção ocular, mas no da compreensão e orientação
num cenário humano regido por tramas e intrigas. A Simon
é dada a missão de investigar o sócio do presidente
da empresa em que trabalha, cujo comportamento tornou-se
“suspeito”. Como psicanalista, cabe a ele recolher informações,
observar sintomas e desferir um diagnóstico que justifique
as ações a serem tomadas – pautadas sempre de acordo
com os interesses em jogo. Ali, todo gesto que não obedeça
a um plano funcional visando o rendimento máximo é visto
como um sinal de decadência em potencial, uma maçã podre
dentro do saco, que instaura o risco da contaminação
generalizada. Pois para que a instituição opere corretamente,
os indivíduos devem necessariamente tornar-se peças
perfeitas, precisamente alocadas na engrenagem da qual
fazem parte.
Neste cenário cinza, Simon é o homem das novas dinâmicas
empresariais do capitalismo contemporâneo, aquele responsável
por controlar o lado humano dos empregados e regulá-lo
de acordo com os imperativos da corporação, seja promovendo
seu entusiasmo e auto-estima, seja escolhendo quem entra
e quem sai. Conforme avança em sua pesquisa sobre Mathias
Jüst, ser corpulento e misterioso, Simon vai descobrindo
um homem melancólico, cada vez mais preocupado com assuntos
deveras distantes daqueles exigidos por seu cargo. E
esta tristeza – ou pendência para o sentimento –, um
quê virótica, parece contaminar nosso personagem-narrador,
perturbar sua determinação, tirá-lo da rota, jogá-lo
à margem do seu percurso exemplar: nas lacunas e reentrâncias
da empresa.
Por trás das paredes e das aparências, Simon descobre
que cada uma de suas perguntas abre uma porta para um
recinto desconhecido, gerando ainda mais perguntas.
Longe das respostas, das explicações e soluções, ele
prossegue juntando as peças que consegue recolher. Junto
a ele, avançamos tentando compreender as “peças” que
nos chegam: cenas-seqüências quase autônomas e planos
cujo sentido é reconfigurado pelos planos seguintes.
Desta forma, Klotz nos obriga a vigiar nossos passos,
assim como Simon; a instalar nosso encadeamento lógico
num em falso, a ponto de colocarmos em dúvida
nossa percepção do que se passa.
No início do filme, Simon nos avisa que sua narração
talvez não se dê de forma cronológica, devido à complexidade
dos acontecimentos, que o obrigaria a ir relatando os
fatos conforme eles chamassem uns aos outros. Embora
alertados, não podemos evitar de ligar de forma linear
as cenas que o filme apresenta. Desprezamos os intervalos
e agarramos os sentidos evocados como pistas preciosas.
Mas a trama aqui já não é mais um assunto de detetive;
ela revela-se um emaranhado de expressões faciais, de
olhares, de gestos, de medos, de desejos, de frustrações,
de expectativas, e nosso guia instrumentalizado para
locomover-se neste terreno também já está desarticulado.
À medida que Simon deriva-se de sua missão e mergulha
na investigação de segredos “enterrados”, instalados
numa espécie de subconsciente da empresa (a origem alemã,
o passado dos funcionários), ele escapa aos poucos das
regras do jogo. Se nos acostumamos a vê-lo vestido impecavelmente
de preto, com sua postura absolutamente contida e equilibrada,
seus movimentos medidos, as palavras utilizadas de forma
exata, a etiqueta aristocrática sendo posta em prática
de forma exemplar, na rave que se dá lá pela
metade do filme, seu corpo cai em desmesura completa
– trajetória física fenomenal de Mathieu Amalric, um
dos atores mais espetaculares d contemporâneo. Paralelamente,
as luzes estroboscópicas da festa criam esta espécie
de curto-circuito, no qual a visão em dificuldade encontra
a crise de uma percepção pessoal e o esforço das autoridades
para lembrar a existência da ordem.
A Questão Humana parece ser uma espécie de contraplano
de A Ferida. Não mais dois pólos em conflito
pela rigidez de uma estrutura estatal/institucional
que relega à não-humanidade aqueles indesejados no esquema
das coisas, mas o próprio sistema encontrando sua fraqueza
em manifestações de humanidade e determinando a partir
delas o pertencimento. O conflito é então deslocado
para o embate entre a cultura fria, racional, européia
por excelência, que informaria as superestruturas, e
a fragilidade inequívoca dos sentimentos, dos batimentos
cardíacos dos seres vivos. As ordens e as decisões de
poder ganham um rosto e as ações que parecem historicamente
atávicas revelam sua “ligação perigosa” com a interioridade
de homens com nome e sobrenome.
Mais do que o paralelismo entre o processo eliminatório
dos nazistas e dos modernos empresários capitalistas,
impressiona em A Questão Humana o progressivo
emparelhamento dos procedimentos de exclusão de ambos
os grupos. Como diz ao final o personagem de Lou Castel,
trata-se da técnica: a perversão de todos os
parâmetros de humanidade. Humanidade não como uma série
de determinações morais, mas como a imprecisão que nos
caracteriza, o mundo de abstrações que nos habita, posto
em marcha da forma mais sublime talvez justamente pela
música, esta arte “matemática” misteriosa, capaz de
nos fazer flutuar como partículas na atmosfera. De acordo
com a técnica, não teríamos mais questões, interrogações
a pairar em nós, mas problemas, passíveis, portanto,
de soluções.
Se nunca podemos ter uma visão de todo em A Questão
Humana, é porque Klotz não admite nada que seja
programático e que se pretenda totalitário. Trata-se,
para ele, de combater a técnica, a perspectiva, as linhas
retas. Seu cinema, fruto de uma arquitetura intelectual
impecável, é um cinema que coloca necessariamente o
eurocentrismo em crise. Erguidos a partir das rachaduras
de um certo logos sócio-político, seus filmes
– ou pelo menos os dois a que pudemos assistir por aqui
– buscam contemplar a beleza de tudo que é impreciso.
Seu admirável uso de músicas, junto a uma decupagem
“calculada”, impecável, cria este mundo abismado, no
qual a realidade, com seus códigos e regras, sucumbe
a sentimentos instáveis, temporários, evanescentes.
Diante do qual precisamos nos perguntar obrigatoriamente:
onde estamos e quem somos?
Tatiana Monassa
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