Paul Auster,
como roteirista, traz uma bela lembrança: Cortina
de Fumaça, dirigido por Wayne Wang,
um filme com um fino equilíbrio entre o prosaico,
o sobrenatural e a cadeia de coincidências que costura
a narrativa. Em sua tentativa como diretor, a coisa
já muda um pouco de figura. Fazia quase
dez anos que Auster não dirigia
um filme, desde o fraco O Mistério de Lulu, de 1998. Mesmo não
sendo um entusiasta do filme, eu estava curioso em relação
ao que teria feito Auster voltar a filmar. Curiosidade
não recompensada: Kimera - Estranha Sedução (também conhecido
como The Inner Life
of Martin Frost),
para encurtar a conversa, é basicamente um filme
em que o escritor-diretor se dedica a um exercício de
nulidade. O ponto de partida do enredo fornece subsídios
para um melodrama surrealista, que Auster
poderia trabalhar a seu modo particular. E a primeira
metade chega a sugerir que o filme consistiria justamente
nisso. Martin Frost (David
Thewlis) é um escritor em
retiro numa casa de campo. Ele terminou de escrever um romance e
está lá para, a um só tempo, recarregar as baterias
e se inspirar para uma nova obra. Numa bela manhã
ele acorda e Claire (Irène
Jacob) está a seu lado na cama. Ela supostamente seria
sobrinha da amiga de Martin que lhe emprestou a
casa. Após uma insossa fase de disputa de espaço,
eles iniciam um romance. Passam alguns dias e Martin
descobre que ela não é sobrinha da dona de casa, e só
está lá por causa dele. Claire
é fã número um dos livros de Martin. Ela vive,
na verdade, num limbo: em parte
mulher de carne e osso, em parte produto da imaginação
do escritor. Por mais chichê
que seja esse enredo, no fundo existiriam formas de
levá-lo adiante com originalidade – Auster
tem uma certa habilidade com situações e diálogos que
não sabemos para onde vão mas que de alguma maneira nos prendem.
O mistério que deveria existir em Kimera,
contudo, é nulo; a mise en scène desse
mistério é igualmente – ou mais – nula. Nenhum plano
instaura uma atmosfera envolvente, ou instiga a sondar
os personagens, sondar o que estaria ao redor deles.
As (por vezes constrangedoras) cenas românticas são
encenadas sem grandes cuidados. O ápice é quando,
na falta de lenha, Martin joga na lareira as páginas
que levara horas para escrever, no intuito de aquecer
Claire antes que ela morra de frio. Uma obra sendo sacrificada
em nome de sua inspiração: a vida, o amor. Tinha tudo
para ser uma cena muito bonita. Quanto mais aumenta
o fogo na lareira, entretanto, mais a cena esfria. Auster,
num momento anterior, já havia chegado ao cúmulo de nos
fazer torcer para que a cena de Irène
Jacob sorrindo descontroladamente terminasse logo. Para
o sorriso de uma mulher bonita se tornar desagradável,
é preciso muito descompasso entre um diretor e sua atriz. Por
essas e outras é difícil se manter interessado
em Kimera. Tudo no filme se resume a
um jogo de aparição e desaparição de personagens peculiares,
às vezes pitorescos (a exemplo do encanador
que escreve contos bizarros de subliteratura nas horas
vagas), quase sempre enfadonhos. Nos
créditos finais, Auster agradece,
entre outros, a Hal
Hartley e Wim
Wenders: auto-inclusão em um cinema que há no mínimo
uma década deixou de provocar interesse.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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