JARDIM ÂNGELA
Evaldo Mocarzel, Jardim Ângela, Brasil, 2006

A primeira imagem de Jardim Ângela é a de uma tevê. Ali se exibe o resultado de uma oficina de produção de vídeo ministrada no bairro da periferia de São Paulo que dá nome ao filme, mas esse conteúdo não exime o veículo da culpa que logo lhe será atribuída. Ainda que transtornado de sua destinação original, e momentaneamente parceiro dessa turma de adolescentes participantes do projeto, aquele aparelho de tevê é o símbolo de um monstro muito maior, devorador de singularidades, inimigo da verdade, deslumbrado com o artifício, um monstro chamado “mídia”. A conversa que esses adolescentes levam, nesta primeira seqüência, trata sim da hegemonia de grupos poderosos de comunicação, que produzem imagens distorcidas sobre aquele ambiente periférico, donde a única forma de reação seria a produção de suas próprias imagens, o auto-retrato, possibilidade dada pelo projeto social e aproveitada por todos ali (e a aparente não-intervenção de Evaldo Mocarzel na pauta da conversa torna essa politização do discurso algo natural, ainda que ele seja exatamente o mesmo a que já fomos submetidos antes em À Margem da Imagem). Primeiro dado do cinema produzido por estes jovens, válido também para o cinema que Mocarzel fará a partir dele: ser reativo é um mandamento, negar a visão midiática tradicional também.

Mas como todo filme de discurso tem sempre a tarefa de efetivamente concretizar em imagem aquilo que promete pela palavra – e o maior símbolo da consciência do diretor sobre isso é a inversão da cronologia dos acontecimentos, já que esse prólogo militante é, na verdade, o momento final do processo da oficina, quando o vídeo dos adolescentes já está pronto, e a partir daí o que se faz é um longo flashback sobre sua produção, artifício usado para comprovar a veracidade do manifesto antimídia – Jardim Ângela tentará buscar nesse núcleo a confirmação desta “imagem invisível”, ignorada pelos veículos de massa.

Mocarzel está dentro desse núcleo, é um de seus produtores mais atuantes, e segue sem reservas ou meio-termos na luta por provar certo seu discurso. Um dos meninos naturalmente se destaca, e passa a ser alvo preferencial das investidas do filme sobre esta invisibilidade. Washington tem 18 anos, seu ídolo no cinema é o Zé Pequeno de Cidade de Deus, e é ele quem traz ao grupo o argumento do vídeo que produzirão. Cria-se uma certa intimidade do menino com todo aquele aparato de registro, e logo Washington aparecerá contando histórias de sua vida com absoluta crueza de detalhes. Contra o que o discurso de Jardim Ângela proferia, a trajetória do menino é totalmente visível: a infância problemática, o caminho do tráfico, as sucessivas prisões na Febem, a submissão e a provocação da violência. A própria presença do menino na oficina, já livre de toda criminalidade do passado, é prova suficiente desse “lado bom” da favela que todos ali, diretor e adolescentes, querem mostrar. Mas o apelo de uma figura tão bem articulada quanto Washington é irresistível à Jardim Ângela, que passará a explorar toda e qualquer história trágica e explosiva desse submundo experimentado pelo menino com o mesmo deslumbramento e sensacionalismo daquela mídia monstruosa simbolizada pela tevê. E talvez até pior, porque esta intimidade estabelecida entre as duas instâncias tornará as intervenções de Mocarzel ainda mais odiosas (em um certo momento, o diretor perguntará a Washington se ele teria coragem de matar o próprio pai alcoólatra, como o protagonista do rap no qual o vídeo da oficina será baseado).

A adesão ao espetáculo do banditismo juvenil chega à volúpia com que a câmera filma as cicatrizes de Washington, todas elas fruto da violência sofrida por traficantes e policiais, de tal modo exploradora que o rosto do menino, nestes momentos, será simplesmente cortado da imagem, sobrando apenas um tronco cheio de marcas atrativas. E como se a culpa repentinamente fosse despertada em Jardim Ângela, e todo o discurso fabricado estivesse a um ponto de ruir, somos jogados naquela que talvez seja a seqüência mais abjeta do cinema brasileiro recente. Revoltada com os rumos que o roteirista/diretor Washington tinha dado ao vídeo produzido pela turma, uma das participantes começa a chorar, dizendo que não colocará seu nome num trabalho que faça tanta apologia da violência, sem nenhuma saída positiva, sem de fato mostrar o lado bom da periferia, como se queria desde o começo. No auge da indignação (também respondida pelo quadro da câmera com o corte da cabeça da personagem), ela chama o resultado do projeto de “filme terrorista”. Pois é no meio da histeria que pede bom senso e responsabilidade, que se rebela contra todo o conformismo que as histórias fantásticas de Washington traziam (aquelas mesmas que Jardim Ângela, sem vergonha alguma, havia desejado e provocado insistentemente), é ali que vemos um plano já mostrado antes, mas agora num contexto diverso. No meio do choro, Mocarzel coloca um take de Washington fazendo gracinhas para a câmera com a arma de brinquedo usada no vídeo da oficina, posando com o objeto de maneira glamurizada, quase encantada. Aquele mesmo personagem que servira de tronco falante cheio de cicatrizes, que havia revelado momentos íntimos terríveis e também um certo elogio das facilidades do crime, que havia sido abraçado pelo filme como sua única fonte de imagens, aparece agora sendo sumariamente julgado, taxado de bandido irresistível adorador de armas, enquanto o choro pelo “lado bom da periferia” se torna a consciência culpada por ter, ele mesma, se enamorado pelo “lado ruim”.

Não é mais uma questão de ética, simplesmente, ou de assombro com a capacidade de um diretor ser tão indigno da tarefa de dispor uma câmera na frente de alguém e compartilhar sua vida. O caso de Jardim Ângela é outro, muito mais grave, e já definido pelo depoimento da menina chorosa. Vergonhoso, abjeto, odioso: verdadeiramente um filme terrorista.


Rodrigo de Oliveira