INÚTIL
Jia Zhang-Ke, Wu Yong, China/Hong Kong, 2007

Entre tudo aquilo que Inútil é (um recorte transversal na relação da China com sua própria condição econômica transitória, entre o coletivismo e o individualismo; a soma da experiência social chinesa através da relação que pessoas de diferentes regiões e formações históricas estabelecem com o trabalho; a reafirmação do documentário como o investimento de uma fonte criadora de narrativas sobre uma realidade que, por si só, não consegue se perceber narrativamente) e tudo aquilo que não é (um filme que encara a utilização social da roupa como metáfora para algum diagnóstico sociológico qualquer ou a confirmação óbvia e errônea, vinda do título, de que se tentará provar alguma teoria sobre inutilidade da moda) existe ali um Jia Zhang-Ke falando, da maneira mais direta em toda sua carreira, da sua própria posição de reverberador das imagens de um mundo que perdeu contato consigo mesmo.

A maior evidência está na figura da estilista Ma Ke, principal personagem de Inútil. Seu trabalho na moda começa nos anos 90, com o desenho de roupas para produção em série, até o momento em que decidiu pelo rompimento com a indústria e a criação de uma marca própria, onde pretendia encurtar a distância entre aquele que fabrica e aquele que utiliza uma peça de vestuário, com coleções feitas artesanalmente em seu pequeno ateliê. As falas de Ma apontam um contrato social quebrado pela irrefreável capitalização da economia chinesa, onde a roupa não era mais que a ponte entre duas pessoas e suas respectivas histórias de vida. A estilista cita um antigo ditado regional: “A mãe costura roupas para que seus filhos possam viajar”. O sentimento de origem (a maternidade) não é um valor absoluto, ao qual se deva sempre retornar como uma espécie de reserva moral – no que o trabalho de Ma seria uma espécie de retorno às tradições, o que ele absolutamente não é. Aqui, a origem só se efetiva como valor se posta em movimento expansivo (a viagem dos filhos), onde se exige um passado apenas para que as novas histórias possam ser vividas plenamente dali para frente. Artisticamente, Ma Ke resolve esta sua questão enterrando literalmente as peças que produz, colocando as roupas sobre uma camada de terra e deixando-as, em suas próprias palavras, se impregnar desta origem. O destino de seu trabalho, registrado pelo filme, é a exposição nas passarelas de Paris e do resto do mundo.

E sempre foi de um sentimento de terrenidade que Jia Zhang-Ke se preencheu para fazer os filmes que fez. A cada novo trabalho, um mergulho ainda mais profundo na natureza social e cultural chinesa, para que se fosse tomar fôlego lá na frente já não mais dentro dos limites continentais do país, mas em tudo aquilo que dissesse respeito à humanidade em sua coincidente ocorrência no mundo: vivemos todos no mesmo tempo, dividimos todos, em alguma medida, as mesmas questões. Daí chamarmos Jia não exatamente de um “produtor” de imagens (ainda que existam pouquíssimos no cinema contemporâneo que as produzam como ele), mas sim de um reverberador, deste sujeito criativo cujo trabalho não cessa no fim da atividade de confecção da imagem, mas que pretende também impregná-la de origem e de garantir que ela se relacione a seu destino (nós, espectadores globais).

Não por acaso, em Inútil Jia Zhang-Ke filma pessoas ocidentais pela primeira vez. São as modelos francesas que Ma Ke utiliza em seu desfile na Semana da Moda de Paris, e a estilista não só as veste com as roupas que passaram meses sob a terra, como também pinta seus rostos com lama. Uma seqüência no camarim do desfile mostra as modelos conversando entre si sobre as dificuldades e as diversões de se vestir as pesadas peças conceituais de Ma Ke, e depois todo o ritual de preparação para a exibição, onde as modelos aparecem nuas, sendo produzidas pelos assistentes e pintadas pelos maquiadores. O eco destas imagens Jia encontrará muito adiante, quando o filme volta à China e se instala num povoado de Fenyang, que vive em torno de uma mina de carvão. Depois de acompanhar um dia de trabalho de uma alfaiataria que produz e conserta os uniformes dos mineiros, Inútil desce até as galerias de extração mineral, e encontra os trabalhadores no banheiro do lugar, se lavando de toda a fuligem presa ao corpo. Seus rostos estão tão cobertos de terra quanto os das modelos francesas, eles também igualmente nus, igualmente interagindo entre si à medida que se preparam para deixar o trabalho. Uma marca adicionada em Paris é removida em Fenyang, e a Jia Zhang-Ke coube o trabalho de religar estas duas pontas perdidas da experiência humana. É, em muitos sentidos, a versão documental da relação entre Zhao Tao e a bailarina russa oriental em O Mundo. Lá, nem mesmo toda a impossibilidade de comunicação entre as duas mulheres impediu seu contato íntimo, o espelhamento de suas vidas, a divisão de suas histórias. Lá, elas se abraçaram no banheiro de um bar. Aqui, em Inútil, é o olhar de Jia Zhang-Ke, grande organizador das narrativas do mundo de hoje, que faz se abraçarem as modelos francesas e os trabalhadores da mina. A reafirmação do cinema como o espaço de interação que a vida já não pode mais ser.

Rodrigo de Oliveira