Entre tudo aquilo que Inútil
é (um recorte transversal na relação da China com sua
própria condição econômica transitória, entre o coletivismo
e o individualismo; a soma da experiência social chinesa
através da relação que pessoas de diferentes regiões
e formações históricas estabelecem com o trabalho; a
reafirmação do documentário como o investimento de uma
fonte criadora de narrativas sobre uma realidade que,
por si só, não consegue se perceber narrativamente)
e tudo aquilo que não é (um filme que encara a utilização
social da roupa como metáfora para algum diagnóstico
sociológico qualquer ou a confirmação óbvia e errônea,
vinda do título, de que se tentará provar alguma teoria
sobre inutilidade da moda) existe ali um Jia Zhang-Ke
falando, da maneira mais direta em toda sua carreira,
da sua própria posição de reverberador das imagens de
um mundo que perdeu contato consigo mesmo.
A maior evidência está na figura da estilista Ma Ke,
principal personagem de Inútil. Seu trabalho
na moda começa nos anos 90, com o desenho de roupas
para produção em série, até o momento em que decidiu
pelo rompimento com a indústria e a criação de uma marca
própria, onde pretendia encurtar a distância entre aquele
que fabrica e aquele que utiliza uma peça de vestuário,
com coleções feitas artesanalmente em seu pequeno ateliê.
As falas de Ma apontam um contrato social quebrado pela
irrefreável capitalização da economia chinesa, onde
a roupa não era mais que a ponte entre duas pessoas
e suas respectivas histórias de vida. A estilista cita
um antigo ditado regional: “A mãe costura roupas para
que seus filhos possam viajar”. O sentimento de origem
(a maternidade) não é um valor absoluto, ao qual se
deva sempre retornar como uma espécie de reserva moral
– no que o trabalho de Ma seria uma espécie de retorno
às tradições, o que ele absolutamente não é. Aqui, a
origem só se efetiva como valor se posta em movimento
expansivo (a viagem dos filhos), onde se exige um passado
apenas para que as novas histórias possam ser vividas
plenamente dali para frente. Artisticamente, Ma Ke resolve
esta sua questão enterrando literalmente as peças que
produz, colocando as roupas sobre uma camada de terra
e deixando-as, em suas próprias palavras, se impregnar
desta origem. O destino de seu trabalho, registrado
pelo filme, é a exposição nas passarelas de Paris e
do resto do mundo.
E sempre foi de um sentimento de terrenidade
que Jia Zhang-Ke se preencheu para fazer os filmes que
fez. A cada novo trabalho, um mergulho ainda mais profundo
na natureza social e cultural chinesa, para que se fosse
tomar fôlego lá na frente já não mais dentro dos limites
continentais do país, mas em tudo aquilo que dissesse
respeito à humanidade em sua coincidente ocorrência
no mundo: vivemos todos no mesmo tempo, dividimos todos,
em alguma medida, as mesmas questões. Daí chamarmos
Jia não exatamente de um “produtor” de imagens (ainda
que existam pouquíssimos no cinema contemporâneo que
as produzam como ele), mas sim de um reverberador, deste
sujeito criativo cujo trabalho não cessa no fim da atividade
de confecção da imagem, mas que pretende também impregná-la
de origem e de garantir que ela se relacione a seu destino
(nós, espectadores globais).
Não por acaso, em Inútil Jia Zhang-Ke
filma pessoas ocidentais pela primeira vez. São as modelos
francesas que Ma Ke utiliza em seu desfile na Semana
da Moda de Paris, e a estilista não só as veste com
as roupas que passaram meses sob a terra, como também
pinta seus rostos com lama. Uma seqüência no camarim
do desfile mostra as modelos conversando entre si sobre
as dificuldades e as diversões de se vestir as pesadas
peças conceituais de Ma Ke, e depois todo o ritual de
preparação para a exibição, onde as modelos aparecem
nuas, sendo produzidas pelos assistentes e pintadas
pelos maquiadores. O eco destas imagens Jia encontrará
muito adiante, quando o filme volta à China e se instala
num povoado de Fenyang, que vive em torno de uma mina
de carvão. Depois de acompanhar um dia de trabalho de
uma alfaiataria que produz e conserta os uniformes dos
mineiros, Inútil desce até as galerias de extração
mineral, e encontra os trabalhadores no banheiro do
lugar, se lavando de toda a fuligem presa ao corpo.
Seus rostos estão tão cobertos de terra quanto os das
modelos francesas, eles também igualmente nus, igualmente
interagindo entre si à medida que se preparam para deixar
o trabalho. Uma marca adicionada em Paris é removida
em Fenyang, e a Jia Zhang-Ke coube o trabalho de religar
estas duas pontas perdidas da experiência humana. É,
em muitos sentidos, a versão documental da relação entre
Zhao Tao e a bailarina russa oriental em O Mundo. Lá,
nem mesmo toda a impossibilidade de comunicação entre
as duas mulheres impediu seu contato íntimo, o espelhamento
de suas vidas, a divisão de suas histórias. Lá, elas
se abraçaram no banheiro de um bar. Aqui, em Inútil,
é o olhar de Jia Zhang-Ke, grande organizador das narrativas
do mundo de hoje, que faz se abraçarem as modelos francesas
e os trabalhadores da mina. A reafirmação do cinema
como o espaço de interação que a vida já não pode mais
ser.
Rodrigo de Oliveira
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