O HOMEM DE LONDRES
Béla Tarr, A Londoni Férfi, Hungria, 2007

Um dos diretores mais radicais na opção pelo recurso do plano-seqüência, o húngaro Béla Tarr, impressiona pela maneira como seus filmes progridem como um transe coletivo, que contamina os atores, a encenação e, por conseqüência, o espectador, desde que ele se deixe envolver pelos fiapos de história disfarçados nos adágios visuais em preto e branco que o diretor cria. Em Danação, Satantango e O Homem de Londres, e talvez em outros filmes ainda não vistos, os atores parecem dizer suas falas em estado de hipnose, num ritmo que só parece existir em seu cinema – e para ser mais justo, em alguns filmes de Aleksandr Sokurov também, por coincidência, outro diretor do plano-seqüência. Essa impressão hipnótica acaba por transformar seus filmes em corpos estranhos mesmo dentro do manjado estilo de filmes de festivais.

Não é um cinema fácil de se assistir. Exige uma preparação e uma entrega a seu ritmo peculiar, que parece funcionar unicamente na Hungria rural. Claro, hoje em dia quem acompanha qualquer festival de cinema já aprendeu a identificar esse planos longos e lentos como denominadores comuns a filmes de arte, daqueles que não se deve perder. Isto faz com que um filme de Béla Tarr possa ser apreciado unicamente pelo entorno, pelo que traz de identificável com esse código já por demais digerido. O Homem de Londres seria, dentro desse raciocínio um tanto simplista, grande cinema unicamente por responder ao ritmo frenético das produções hollywoodianas com seus tempos mortos, ou melhor, fantasmagóricos. Não importa se ele consegue, com seu estilo, ampliar alguns limites na percepção do tempo, tampouco sua habilidade de encenador, isolando seus personagens solitários em planos muito abertos e esquadrinhando a tela com vigas e pilastras que dividem alguns mundos dentro desse único mundo que seu cinema tão bem explora. Sim, porque o mundo de seus filmes é habitado por fantasmas, espíritos vagantes que mal conseguem interagir com qualquer coisa palpável.

O Homem de Londres se desenvolve, à sua maneira, baseado em George Simenon, o que garante que o fiapo de história comum em seu cinema desta vez seja melhor identificado, com uma clara sucessão de acontecimentos decorrentes uns dos outros, instalando o conflito, que, como sempre, é muito mais interno do personagem do que qualquer outra coisa. Quando se esforça para seguir mais de perto a história, o filme perde parte de sua força, mas, paradoxalmente, é quando nos entrega seu grande plano, aquele que mostra uma mulher chorando. Não convém adiantar o porquê do choro, ainda mais porque no cinema de Béla Tarr, os porquês pouco importam. O que se sobressai é sua expressão, seu rosto iluminando a tela, transformando um acontecimento triste numa imagem inesquecível. Seu choro é o eco melancólico do desespero da menina que tortura o gato para se vingar da tortura psicológica que sofre da mãe em Satantango, e é assim também que se faz o cinema de Béla Tarr, talvez o diretor que mais se repita no cinema moderno – o que no caso está muito longe de uma possível acomodação. Com ecos entre os filmes, idiossincrasias que compõem um imensurável painel da solidão e do desencanto, o diretor constrói uma obra sólida e pessimista, com pequenas influências surrealistas e intenções ensaísticas sobre a condição do homem num país que ainda se ressente do passado sob a dominação soviética.

Por meio de repetições (dentro do mesmo filme, e em filmes diferentes) de situações que comentam sobre um estado de desolação do homem, Béla Tarr nos envolve num círculo em que cada filme seu só faz sentido quando contraposto, ou justaposto, a um anterior, que introduz situações e mesmo contradições que podem ou não ser reforçadas em outros filmes. Logo, imagens de um baile cruel com os preteridos em Danação, encontra seu eco no pequeno bar onde um homem toca acordeão para que dois casais trôpegos dancem freneticamente, um velho caolho tente equilibrar coisas em sua testa e um bêbado tente atrapalhar qualquer pessoa que estiver se divertindo, enquanto duas outras pessoas batem um pau, desritmadamente, em um balcão e uma mesa – imagens que se alongam quase que infinitamente em Satantango. E ambas encontram o eco na curta cena de O Homem de Londres, também em um bar, em que o velho equilibrista tem um ovo na testa, ao som do acordeão que toca a mesma música de Satantango. O velho escritor que tudo observa, mas termina por tapar sua janela para o mundo com pedaços de madeira, ficando na mais completa escuridão em Satantango, se reflete no protagonista perdido e entregue ao acaso de O Homem de Londres. A menina que tortura e mata o gato num filme, no outro, já crescida, é retirada de seu habitat, impedida de trabalhar e de ficar com a mãe. O homem que late nervoso para o cachorro até afugentá-lo em Danação é o mesmo que se envolve numa série de coisas meio que sem querer, e que luta por algo que ele mesmo não sabe o que é no novo filme. O mesmo homem que procura afugentar seu medo, lutar contra suas frustrações, desabafar contra a primeira coisa que cruza o seu caminho.

É assim que Béla Tarr vai construindo seu gigantesco painel, e nós, espectadores de festivais, ficamos esperando para ver aonde essa obra inquieta, estranha e um tanto atemporal vai chegar. Se pedimos por um cinema que trilha caminhos incertos, não podemos deixar de reverenciar esse cineasta húngaro tão maluco quanto coerente.

Sérgio Alpendre