VIAGEM A DARJEELING
Wes Anderson, The Darjeeling Limited, EUA, 2007

Deparamo-nos mais uma vez frente ao universo peculiar de Wes Anderson com seu novo Viagem a Darjeeling, que confirma a tendência do diretor a construir um cinema cheio de cacoetes e de personagens esquisitos habitantes de um aquário ultra estiloso que é o mundinho de brinquedo, bem como lugar de enfrentar traumas familiares, que Anderson cria.

Desta vez o espaço-base para a existência do universo de Anderson não foram os Estados Unidos, mas uma viagem de trem em um outro país, em outro continente. Ao que parece, desde A Vida Marinha com Steve Zissou existe um vislumbre da possibilidade do expurgo a partir do abandono do espaço de origem desse universo no qual se constitui a obra de Anderson. Em A Vida Marinha, embarcamos numa expedição marítima e, mesmo sendo o mar um lugar em que não se ancora, lugar de passagem e instabilidade, já se dá aí uma espécie de fuga do lar, que é também uma busca de algo. Em Viagem a Darjeeling boa parte desse expurgo se dá também numa situação de passagem, uma viagem de trem, mas só se concretiza de fato quando o filme (e os personagens) chega a uma outra terra firme (a Índia) e vivenciam nela uma experiência real. É bem verdade que, grosso modo, as narrativas tanto de Steve Zissou quanto de Darjeeling tratam de filhos desconhecidos ou abandonados em busca de seus pais, portanto, ao mesmo tempo em que é preciso sair do lugar de origem e se “arriscar pelo mundo”, é necessária (pode-se dizer obsessiva) a busca pela figura paterna/materna, o que também se relaciona com uma noção de origem, de proveniência.
 
Entretanto, arriscar-se não é exatamente uma boa palavra a se empregar quando se trata de Anderson, que é certamente uma mente com potência para criar simpáticos e belos momentos em seus filmes, mas de tão preso às suas obsessões quanto os seus personagens, acaba não dando conta do recado. É que Wes Anderson anda cometendo o grave erro de só olhar para dentro de si e não enxergar o mundo, o que é contraditório em sua obra, porque exatamente a partir do momento em que ele sente a necessidade de viajar, de levar seu universo e personagens para os mares e trilhos afora é quando ele parece perder a referência de visão de mundo, de um olhar para as coisas que é, além de interessante, importante para qualquer artista. Na verdade, esse movimento de fechar-se em si pode, sim, condizer com os fatos dos filmes, dependendo de como eles forem tratados, porque sair pelo mar ou trilhos do mundo pode ser uma forma de buscar liberdade e desapego, mas também, e é o que Anderson parece fazer, é um jeito fácil de isolar os personagens: em alto mar ou num vagão de trem. Quanto a Rushmore e a Os Excêntricos Tenenbaums, o diretor situa seus personagens em duas das instituições mais importantes (e sufocantes) da sociedade americana – que são a escola e a família –, visto que o ambiente/ espaço em que o primeiro e o segundo se passam são, respectivamente, uma high-school e a mansão dos Tenenbaums. Entretanto, essas referências pareciam ainda lhe dar qualquer parâmetro para observar o mundo e permitir-se ser tocado por ele de alguma forma.

Tentando um tom menos genérico e buscando entrar mais no filme (porque ele merece, sim, alguma atenção, respeito e cuidado), existem elementos que devem ser destacados, pro bom e pro ruim. Toda a preocupação com a cenografia e a caracterização do mundo e dos personagens chega a torná-las tão detalhistas e singulares quanto, por vezes, irritantes. Os movimentos de câmera repetitivos como tiques nervosos, desnecessários, parecem mesmo serem admitidos como TOC e não como um trabalho decente com a linguagem cinematográfica, de mise-en-scène ou algo que o valha: movimentos rápidos de câmera, começar num enquadramento e ir para outro por travelling, chicote ou panorâmica, os zooms que deveriam querer ser divertidos, mas só conseguem gerar mesmo um “what the hell?!”. Mesmo quando se desce do Expresso, num grande mercado popular indiano, o diretor não se desprende de seu mundinho e, tanto quanto os contos do irmão interpretado por Jason Schwartzman são uma ficção autobiográfica de meia tigela para resolver seus traumas e obsessões, assim também se mostra este filme de Anderson.

Apenas se entrevê algum desprendimento quando os três irmãos falham em salvar a vida de um dos menininhos indianos que atravessavam um rio e este morre afogado nos braços de Peter (Adrian Brody). Eles, então, junto às crianças sobreviventes, levam o corpo do menino a seu povoado/ tribo de origem e, aí sim, a partir de tal experiência, parece surgir algum olhar interessante e bonito, mais livre e verdadeiro, sem muitos disfarces e fantasias pra se travestir de algo que não lembre a realidade. Um dos momentos mais bonitos do filme é quando os irmãos finalmente vão se despedir do povoado indiano, depois de terem participado da cremação e de todo o ritual de despedida do menino morto. Eles andam até detrás do ônibus (pois a porta está do outro lado do ônibus, de modo que a câmera não a vê, e esta está posicionada próxima ao olhar dos indianos, que vêem os irmãos partirem) e o irmão interpretado por Adrien Broody, depois de ter saído de quadro por detrás do ônibus, volta rápida e discretamente e direciona o olhar para seu contra-plano/ câmera/ indianos. Neste momento o personagem tem um brilho nos olhos e esse olhar deve ser um dos únicos do filme que não está contaminado por cinismos, máscaras ou medos da vida. É apenas um detalhe, que pode ter sido pensado e bem sacado por Wes Anderson ou pode ter sido um ato brilhante na atuação de Broody. Seu olhar para a câmera/indianos é complexo; tem vida e parece finalmente deparar-se com esta. Logo em seguida, quando os irmãos entram no ônibus, ainda é possível ver o quê de melancolia trazido no olhar de Peter (Broody). Este pequeno momento é importante porque talvez até salve o filme de ser irrelevante (junto com o que sobra de positivo da criatividade e do gosto por criar que há em Anderson).

Outra coisa que marca o filme são os momentos “é fácil ser bonitinho com música indie fofinha e câmera lenta”, que viram outro cacoete fácil e cansam. Só que o último momento em que isso ocorre tem algo a mais: os personagens percebem que só conseguirão pegar o trem se correrem bastante e para isso têm que se desprender de suas malas-fardos-fetiche-nostalgia que são quase um personagem no filme. Largar essas malas e correr, livres para embarcarem no trem é um ato de coragem, libertação e superação para os irmãos e também um ato de desprendimento, ainda que não seja um grande feito do diretor para o filme (esteticamente falando). O que se espera é que este ato de largar as malas kitsch e pesadas possa significar um futuro desprendimento para a obra de Anderson, que certamente é um cara talentoso que se perdeu nas suas obsessões e ficou preso, com tanto medo da vida e do mundo quanto seus personagens.

Viagem a Darjeeling, apesar de ser uma confirmação na obra do diretor, mais um traçado no caminho dum cineasta que tornou suas visões e formas – passíveis de inventividade e interesse – numa repetição chata, travada e previsível, traz belos momentos na aldeia indiana, na volta/olhar de Adrian Brody e nas malas jogadas no fim. É verdade que tais momentos não fazem com que Darjeeling seja realmente bom, mas ao menos me permitem dizer que ainda verei o próximo filme de Wes Anderson.

Luisa Marques