CADA UM COM SEU CINEMA
Theo Angelopoulos, Olivier Assayas, Bille August, Jane Campion, Youssef Chahine,  Chen Kaige, Michael Cimino, Ethan e Joel Coen, David Cronenberg, Luc e Jean-Pierre Dardenne, Manoel de Oliveira , Raymond Depardon, Atom Egoyan, Amos Gitai, Alejandro González Iñárritu, Hou Hsiao-hsien, Aki Kaurismäki, Abbas Kiarostami, Takeshi Kitano, Andrei Konchalovsky, Claude Lelouch, Ken Loach, Nanni Moretti, Roman Polanski, Raoul Ruiz, Walter Salles, Elia Suleiman, Tsai Ming-liang, Gus Van Sant, Lars von Trier, Wim Wenders, Wong Kar Wai Wong, Zhang Yimou, Chacun son cinéma ou Ce petit coup au cœur quand la lumière s'éteint et que le film commence, França, 2007


Como já falado por diversas vezes aqui na Contracampo, os filmes de episódio são comumente difíceis de serem avaliados como um todo, uma vez que apresentam poucas ligações entre si, fazendo prevalecer a individualidade de cada episódio em detrimento de uma complementaridade entre um e outro. Em Cada Um Com Seu Cinema, ainda que todos partam de uma premissa (ou regra) bastante fechada – falar do cinema em três minutos –, o resultado é o mesmo.  O filme não chega a conceber nenhuma idéia conjunta, e os poucos elos de ligação mais parecem coincidência de pensamento. O resultado final, um panorama composto por 33 nomes, é bastante superficial como potencial de avaliação dos 60 anos de Cannes, ou, como se pretende, de avaliação do cinema.

Desse conjunto, o que prevalece é um tom saudosista, salientando a impressão de que o cinema já não é mais o mesmo. Algumas referências claras reforçam este tom, com destaque para Fellini, Bresson, Godard e o ator Marcelo Mastroianni como os nomes mais citados. E se estes fizeram por merecer, os diretores que os citam mais parecem acreditar em suas insubstituições e na incapacidade do ressurgimento de um cinema tão forte.

Nesse quesito, o filme de Atom Egoyan, surpreende ao apostar nas novas tecnologias como capacitadoras da continuidade do cinema. Em seu episódio (Artaud Double Bill), duas pessoas trocam mensagens de texto por celulares. Elas foram ver filmes diferentes, e uma manda um vídeo do filme que está assistindo para a outra. O que à primeira vista parece bobo, se revela uma grande sacada em perceber que hoje o cinema definitivamente atravessou a barreira da sala escura e estendeu sua difusão para outros formatos exibidores, com uma propagação bastante forte. E ainda assim, como nos mostra Egoyam, é capaz de emocionar.

E se Egoyam realizou um trabalho que pouco se conecta com sua obra, a grande maioria dos diretores fez o oposto. Bons ou ruins, grande parte dos episódios são bastante reconhecíveis e facilmente enquadrados nas respectivas propostas de cinema. Gus Van Sant (First Kiss) é o mais bem sucedido ao dar continuidade ao seu trabalho com os adolescentes, incorporando-os na proposta sugerida. É no cinema (e na sala de cinema) que acontece nosso primeiro beijo. Momento de comunhão, em que realidade e ficção se conectam, há um incorporamento da tradição do cinema na vida, e uma projeção da magia daquele momento no cinema. O primeiro beijo, emblemático tanto na vida, como nos filmes, é proporcionador maior das mais gratas possibilidades do cinema: fazer-se confundir com a vida.

Tsai Ming Liang (It's a Dream) também apresenta um trabalho bastante coerente com sua obra. Aqui não há nostalgia, mas atualização da memória que se reaviva como presença. No cinema de Tsai estão presentes suas lembranças e recordações, mas de forma viva. Ainda que em quadros ou fotografias, as presenças corporais dos personagens de Tsai são vivazes e carregam junto de si a historicidade de suas vidas (ainda pulsantes) e o histórico do cinema, também pulsante.

Pulsação e força que são questionadas no cinema cerebral de Cronenberg. Em episódio (At the Suicide of the Last Jew in the World in the Last Cinema in the World) em que o “ao vivo” televisivo ganha força, o cinema é questionado quanto à sua duração: há no furo de reportagem televisivo a tentativa de suicídio do último judeu no último cinema do mundo. Brincadeira ou crítica, Cronenberg levanta a bola para as possibilidades do cinema e a interferência da televisão em seu projeto. Atento para o direcionamento da tecnologia, ele acaba deixando em aberto o futuro do cinema, pois não há tempo para o desdobramento da sua história, e o “live” é atropelado pelo fim instantâneo.

Já Morretti (Diaro di uno Spettatore), outro no time dos que realizaram seu episódio no contexto de sua obra, opta pela comédia. Começamos com o diretor/ator sentado no cinema. Ao início da projeção, seu grito: “Foco!”. E então começam os risos, no episódio mais bem-humorado do filme. Moretti coloca toda paixão que dedica a seu trabalho expressa em algumas pequenas cenas que simula nos 3 minutos. Por fim, a constatação de que seu cinema não atende exatamente as demandas da sociedade (de seu filho, inclusive), mas que, ainda assim, permanece válido, cavucando espaços para operações e entendimentos que exigem um tempo específico. Moretti, ainda que avise o filho que seus filmes “não são exatamente parecidos” com Matrix 2 (o desejo do garoto), não deixa de acreditar e apostar na heterogeneidade do cinema, dando a cada filme o seu espaço.

Espaço preenchido por figuras as mais diversas. O cinema como espaço congregador de etnias e ideologias distintas. Espaço capaz de aglomerar focos opostos com humor e sutileza. Assim é Manoel de Oliveira (Rencontre Unique), que vê na barriga saliente do camarada Papa João XXIII e do camarada Nikita Kruschev a grande identificação entre os dois. Com excelente humor, Oliveira faz da brincadeira (que aparentemente se distancia da proposta original), o episódio mais surpreendente, revelando-se para além de sua primeira camada, fazendo graça com sua superfície.

Outros também optaram por episódios em que o humor se sobressai (como a piada sem graça de Polanski – Cinéma Erotique – ou o diálogo com o slapstick de Elia Suleiman – Irtebak); outros recorreram a experiências vivenciadas, fazendo filmes bastante pessoais (Cinéma de Boulevard, de Lelouch e 47 Ans Après,de Chahine), mas a grande maioria apelou para episódios melancólicos e pretensamente cativantes. Win Wenders (War in Peace) aproveitou que estava na África e filmou a pobreza indo ao cinema. Iñárritu (Anna), que inicialmente parece surpreender com um episódio sutil e bonito, logo faz jus ao ditado (e à sua fama): se não caga na entrada, caga na saída. Seu plano-seqüência é afetado por sua mão pesada, reiterativa e desnecessária. Kitano (One Fine Day) tenta comover mostrando a insistência de um velhinho em assistir a um filme no lugar mais improvável de se existir um cinema. Mas de comovente o episódio não tem nada, revelando-se extremamente enfadonho. Os irmãos Dardenne (Dans l'Obscurité), por sua vez, apelam para o sentimentalismo barato, digno da mais fajuta campanha publicitária. O cinema capaz de alterar o destino, fazendo com que um ladrão seja cativado (numa situação inusitada) pela paixão que se dedica aos filmes. Pra concluir, só faltou o slogan explicativo.

Os muito outros episódios, impossíveis aqui de serem contemplados, vêm agregar volume ao filme, que se revela muito mais uma brincadeira de adivinhação: identificar o realizador, ver que muitas vezes nossos preferidos não realizam o que esperamos e ver diretores que não apostamos saírem-se bem nessa proposta. Dos que fogem à regra, três destaques: Walter Salles (A 8 944 km de Cannes), que parece não ter entendido o que era pra ser feito, colocando os desinteressantes Caju e Castanha puxando o saco de Gilles Jacob, presidente do festival; Amos Gitaï (Le Dibbouk de Haifa), que constrange ao fazer de seu episódio um instrumento ideológico e político (absolutamente vazio); e Hou Hsiao-Hsien (The Electric Princess House), talvez o mais enigmático episódio. Iniciado com um olhar observacional (com uma leve movimentação de câmera que troca por diversas vezes seu interesse, numa bela simulação do olhar humano) avança por trás de uma cortina vermelha para encontrar uma sala vazia e destruída, com a projeção de crianças andando em carrinhos de bate-bate, no filme Mouchette, de Bresson. Se saudosista, a iniciativa é fracassada. Se pulsante, crendo que no cinema estão depositadas todas as possibilidades, fantasias, sonhos e memórias da vida, uma obra-prima. Mas em se tratando do cineasta, quem o decifra?

Cada Um Com Seu Cinema está longe de provocar o tal frio na barriga que antecede a exibição de um filme. Ainda assim, não deixa de ser uma brincadeira divertida, com raros momentos em que podemos constatar o porque de tamanha paixão.

Raphael Mesquita