Como já falado por diversas
vezes aqui na Contracampo, os filmes de episódio são
comumente difíceis de serem avaliados como um todo,
uma vez que apresentam poucas ligações entre si, fazendo
prevalecer a individualidade de cada episódio em detrimento
de uma complementaridade entre um e outro. Em Cada
Um Com Seu Cinema, ainda que todos partam de
uma premissa (ou regra) bastante fechada – falar do
cinema em três minutos –, o resultado é o mesmo. O
filme não chega a conceber nenhuma idéia conjunta,
e os poucos elos de ligação mais parecem coincidência
de pensamento. O resultado final, um panorama composto
por 33 nomes, é bastante
superficial como potencial de avaliação dos 60 anos
de Cannes, ou, como se pretende, de avaliação do cinema.
Desse conjunto, o que prevalece é um tom saudosista, salientando a impressão
de que o cinema já não é mais o mesmo. Algumas referências claras reforçam este
tom, com destaque para Fellini, Bresson, Godard e o ator Marcelo Mastroianni
como os nomes mais citados. E se estes fizeram por merecer, os diretores que
os citam mais parecem acreditar em suas insubstituições e na incapacidade do
ressurgimento de um cinema tão forte.
Nesse quesito, o filme de Atom Egoyan, surpreende ao apostar nas novas tecnologias
como capacitadoras da continuidade do cinema. Em seu episódio (Artaud Double
Bill), duas pessoas trocam mensagens de texto por celulares. Elas foram ver
filmes diferentes, e uma manda um vídeo do filme que está assistindo para a outra.
O que à primeira vista parece bobo, se revela uma grande sacada em perceber que
hoje o cinema definitivamente atravessou a barreira da sala escura e estendeu
sua difusão para outros formatos exibidores, com uma propagação bastante forte.
E ainda assim, como nos mostra Egoyam, é capaz de emocionar.
E se Egoyam realizou um trabalho que pouco se conecta com sua obra, a grande
maioria dos diretores fez o oposto. Bons ou ruins, grande parte dos episódios
são bastante reconhecíveis e facilmente enquadrados nas respectivas propostas
de cinema. Gus Van Sant (First Kiss) é o mais bem sucedido ao dar continuidade
ao seu trabalho com os adolescentes, incorporando-os na proposta sugerida. É no
cinema (e na sala de cinema) que acontece nosso primeiro beijo. Momento de comunhão,
em que realidade e ficção se conectam, há um incorporamento da tradição do cinema
na vida, e uma projeção da magia daquele momento no cinema. O primeiro beijo,
emblemático tanto na vida, como nos filmes, é proporcionador maior das mais gratas
possibilidades do cinema: fazer-se confundir com a vida.
Tsai Ming Liang (It's a Dream) também apresenta um trabalho bastante coerente
com sua obra. Aqui não há nostalgia, mas atualização da memória que se reaviva
como presença. No cinema de Tsai estão presentes suas lembranças e recordações,
mas de forma viva. Ainda que em quadros ou fotografias, as presenças corporais
dos personagens de Tsai são vivazes e carregam junto de si a historicidade de
suas vidas (ainda pulsantes) e o histórico do cinema, também pulsante.
Pulsação e força que são questionadas no cinema cerebral de Cronenberg. Em episódio
(At the Suicide of the Last Jew in the World in the Last Cinema in the World)
em que o “ao vivo” televisivo ganha força, o cinema é questionado quanto à sua
duração: há no furo de reportagem televisivo a tentativa de suicídio do último
judeu no último cinema do mundo. Brincadeira ou crítica, Cronenberg levanta a
bola para as possibilidades do cinema e a interferência da televisão em seu projeto.
Atento para o direcionamento da tecnologia, ele acaba deixando em aberto o futuro
do cinema, pois não há tempo para o desdobramento da sua história, e o “live” é atropelado
pelo fim instantâneo.
Já Morretti (Diaro di uno Spettatore), outro no time dos que realizaram
seu episódio no contexto de sua obra, opta pela comédia. Começamos com o diretor/ator
sentado no cinema. Ao início da projeção, seu grito: “Foco!”. E então começam
os risos, no episódio mais bem-humorado do filme. Moretti coloca toda paixão
que dedica a seu trabalho expressa em algumas pequenas cenas que simula nos 3
minutos. Por fim, a constatação de que seu cinema não atende exatamente as demandas
da sociedade (de seu filho, inclusive), mas que, ainda assim, permanece válido,
cavucando espaços para operações e entendimentos que exigem um tempo específico.
Moretti, ainda que avise o filho que seus filmes “não são exatamente parecidos” com Matrix
2 (o desejo do garoto), não deixa de acreditar e apostar na heterogeneidade
do cinema, dando a cada filme o seu espaço.
Espaço preenchido por figuras as mais diversas. O cinema como espaço congregador
de etnias e ideologias distintas. Espaço capaz de aglomerar focos opostos com
humor e sutileza. Assim é Manoel de Oliveira (Rencontre Unique), que vê na
barriga saliente do camarada Papa João XXIII e do camarada Nikita Kruschev a
grande identificação entre os dois. Com excelente humor, Oliveira faz da brincadeira
(que aparentemente se distancia da proposta original), o episódio mais surpreendente,
revelando-se para além de sua primeira camada, fazendo graça com sua superfície.
Outros também optaram por episódios em que o humor se sobressai (como a piada
sem graça de Polanski – Cinéma Erotique – ou o diálogo com o slapstick de
Elia Suleiman – Irtebak); outros recorreram a experiências vivenciadas,
fazendo filmes bastante pessoais (Cinéma de Boulevard, de Lelouch e 47
Ans Après,de Chahine), mas a grande maioria apelou para episódios
melancólicos e pretensamente cativantes. Win Wenders (War in Peace) aproveitou
que estava na África e filmou a pobreza indo ao cinema. Iñárritu (Anna),
que inicialmente parece surpreender com um episódio sutil e bonito, logo faz
jus ao ditado (e à sua fama): se não caga na entrada, caga na saída. Seu plano-seqüência é afetado
por sua mão pesada, reiterativa e desnecessária. Kitano (One Fine Day)
tenta comover mostrando a insistência de um velhinho em assistir a um filme no
lugar mais improvável de se existir um cinema. Mas de comovente o episódio não
tem nada, revelando-se extremamente enfadonho. Os irmãos Dardenne (Dans l'Obscurité),
por sua vez, apelam para o sentimentalismo barato, digno da mais fajuta campanha
publicitária. O cinema capaz de alterar o destino, fazendo com que um ladrão
seja cativado (numa situação inusitada) pela paixão que se dedica aos filmes.
Pra concluir, só faltou o slogan explicativo.
Os muito outros episódios, impossíveis aqui de serem contemplados, vêm agregar
volume ao filme, que se revela muito mais uma brincadeira de adivinhação: identificar
o realizador, ver que muitas vezes nossos preferidos não realizam o que esperamos
e ver diretores que não apostamos saírem-se bem nessa proposta. Dos que fogem à regra,
três destaques: Walter Salles (A 8 944 km de Cannes), que parece não ter
entendido o que era pra ser feito, colocando os desinteressantes Caju e Castanha
puxando o saco de Gilles Jacob, presidente do festival; Amos Gitaï (Le Dibbouk
de Haifa), que constrange ao fazer de seu episódio um instrumento ideológico
e político (absolutamente vazio); e Hou Hsiao-Hsien (The Electric Princess
House), talvez o mais enigmático episódio. Iniciado com um olhar observacional
(com uma leve movimentação de câmera que troca por diversas vezes seu interesse,
numa bela simulação do olhar humano) avança por trás de uma cortina vermelha
para encontrar uma sala vazia e destruída, com a projeção de crianças andando
em carrinhos de bate-bate, no filme Mouchette, de Bresson. Se saudosista,
a iniciativa é fracassada. Se pulsante, crendo que no cinema estão depositadas
todas as possibilidades, fantasias, sonhos e memórias da vida, uma obra-prima.
Mas em se tratando do cineasta, quem o decifra?
Cada Um Com Seu Cinema está longe de provocar o tal frio na barriga
que antecede a exibição de um filme. Ainda assim, não deixa de ser uma brincadeira
divertida, com raros momentos em que podemos constatar o porque de tamanha
paixão.
Raphael Mesquita
|