O cinema de Hou Hsiao-hsien
já chegou a um estágio em que mesmo seus procedimentos
artísticos mais complexos podem se dar com toda calma.
A força dos planos consiste tão-somente em captar –
de forma transitória – a luz, a duração, a energia vital
dos personagens, fornecer um suporte de inscrição para
o mundo em movimento e mudança. Embora seguindo propostas
narrativas esvaziadas dos mecanismos de adesão comuns,
os filmes de Hou (sobretudo os mais recentes) conquistam
o espectador por uma imantação à presença sensível das
coisas e das pessoas, estabelecendo uma via direta com
o sensorial e o emocional, uma vez que estes não precisam
ser mediados pela interiorização do drama. O espectador
não necessariamente se identifica com o histórico ou
o temperamento do personagem, mas antes troca energia
com ele. Não há dificuldade alguma em acompanhar os
filmes de Hou, mesmo que a trama seja mínima e as ações
dos personagens pareçam ter nascido de um pacto com
o insignificante e o efêmero. Os planos alongados de
Hou têm se tornado ainda mais leves, sem chamar atenção
para sua feitura ou para sua duração. A relação com
o tempo é serena, doce. Em Café Lumière e em
Le Voyage du Ballon Rouge, a fruição se assemelha
àquilo que em música se chama de easy listening.
Hou oferece a mise en scène de uma flutuação
prazerosa, um convidativo escoar de imagens.
Le Voyage du Ballon Rouge é livremente adaptado
do filme O Balão Vermelho, de Albert Lamourisse.
“Um filme muito antigo, de 1956”, como Song explica
ao menino Simon. Song, jovem estudante de cinema chinesa,
é a nova babá de Simon. No filme de Lamourisse, o balão
vermelho segue o menino como se fosse um cachorrinho
recém adotado. Em Le Voyage du Ballon Rouge,
o balão também possui vida própria, mas não segue Simon
como se fosse um animal de estimação. O primeiro plano
do filme mostra Simon junto à entrada do metrô, falando
com o balão, que está fora de quadro, e insistindo para
que este o acompanhe. Na rua ao lado, o movimento de
carros é constante. Simon desce para o metrô e a câmera
faz um lento tilt para cima, até encontrar o balão entre
as folhas de uma árvore. O balão desce aos poucos, seguido
por aquela sensibilidade de câmera que Mark Lee Ping
Bing (diretor de fotografia, praticamente co-autor dos
planos mais sensacionais de Hou) já instituiu como única,
inimitável. Depois vemos o balão em uma estação de metrô,
onde a câmera varia do plano geral ao plano-detalhe
de forma sempre provisória e fluida – o plano em Hou
Hsiao-hsien é um ponto de vista parcial, variável, sujeito
a reenquadramento, refocalização, ou seja, a câmera
assume sua limitação estruturante, o plano é um fragmento
do mundo e não um retângulo de imagem completo em si
mesmo.
O Balão Vermelho foi um dos principais filmes
utilizados como exemplo no célebre texto “Montagem Proibida”,
de André Bazin. Sua defesa se baseava no fato de que
Lamourisse filmara o menino e o balão sempre no mesmo
plano, valorizando a co-presença dos dois no interior
de um registro contínuo. Através desse registro, o balão
e o menino, embora seres de espécies diferentes, partilhavam
um mesmo regime de luz e duração, uma mesma imagem –
uma imagem de mesmo teor ontológico. Para Bazin, não
importava se o movimento do balão dependia de alguma
peripécia ou trucagem: importava constatar sua presença
concreta, fisicamente apreendida em contigüidade à presença
igualmente concreta do menino, isto é, sem a intervenção
ludibriadora da montagem. Hou, em Le Voyage du Ballon
Rouge, vai bagunçar essa percepção. A começar pelo
fato de que o balão e o menino praticamente não dividem
o mesmo quadro ao longo do filme (ao menos não da maneira
exaltada por Bazin em O Balão Vermelho). Antes
de fazer menino e balão ocuparem o mesmo campo, Hou
instaura uma relação dinâmica entre campo e fora-de-campo
– que se expande para concreto/abstrato, ótica/imaginário.
O balão, no filme de Hou, não está impresso na camada
de real assegurada pelas pessoas que partilham o quadro
com ele, mas sim no lugar do reflexo, do fora-de-campo
que se atualiza em campo, das zonas intermediárias da
representação e da visibilidade. O balão é o concreto,
é a evidência do visível, mas é também o imaginário,
o mundo alternativo onde habitam figuras e fábulas do
cinema.
Fábulas, por sinal, estão no centro do trabalho de Suzanne
(Juliette Binoche), mãe de Simon, já que ela vocaliza
espetáculos de fantoches. Suzanne é uma personagem incrivelmente
cativante em seu corre-corre diário. Ela está sempre
apressada (como o menino bem observa), sempre com o
tempo apertado entre uma atividade e outra. Quando ocorre
alguma pausa, sobra uma ponta de melancolia em seu olhar.
Ela e Song se entendem bem desde o início, mas o mesmo
já não se pode dizer de sua relação com Marc, o vizinho/inquilino
do apartamento de baixo, que deve vários meses de aluguel
e ainda pede favores inconvenientes. As cenas dentro
do apartamento de Suzanne (quase todas filmadas com
a câmera num lugar de onde é possível enquadrar simultaneamente
a mesa da sala, uma parte da cozinha e a porta) são
as melhores do filme, fazendo um uso impressionante
da soma de eventos em um mesmo plano. O apartamento
exíguo e amontoado se abre como um espaço cênico de
infinitas possibilidades. Há um plano, em particular,
que ficará para a antologia de Hou: o plano em que o
afinador de piano vai ao apartamento. A câmera começa
em Simon jogando Playstation, depois desliza suavemente
até a porta, assiste ao afinador se instalar ao piano
e começar seu trabalho. Ouvimos em off a discussão
de Suzanne com Marc, até que eles abrem bruscamente
a porta e a discussão invade a cena de vez. O som se
torna uma massa caótica: barulhos de videogame, briga
de Suzanne com Marc, notas saídas das teclas do piano,
ruídos de ambiente. Além de retornar a Lamourisse e
a Lumière (presença sempre implícita nas cenas de rua
e de trem filmadas por Hou), Le Voyage du Ballon
Rouge evoca, nesse momento, um terceiro cineasta
francês, igualmente importante: Maurice Pialat (também
ele um “herdeiro” de Lumière). O clímax desse plano-seqüência
de Hou lembra os momentos de bagarre dos filmes
de Pialat (em especial Loulou e Aos Nossos
Amores), um tipo de explosão repentina do personagem
e do plano que o cineasta taiwanês já apresentava também
em Adeus ao Sul e Flores de Xangai. Trata-se
de uma percepção aguda dos brotamentos internos da diegese,
dotando o plano-seqüência de um verdadeiro poder de
aspiração: o filme é tragado pelo instante, para depois
se recompor novamente, retornar à tranqüilidade de sua
duração.
O encanto de Le Voyage du Ballon Rouge é de difícil
definição, pois está diretamente relacionado à experiência
de assistir ao filme. Hou transforma uma simples cena
de Song caminhando com Simon pela calçada, ou de Suzanne
perguntando para ele como foi seu dia, em um momento
transbordante de candura. Ele mais uma vez (após a experiência
de Café Lumière, filme que celebrava o centenário
de Ozu) vai a uma terra estrangeira homenagear um cineasta
e sai de lá com uma obra-prima. Cinqüenta anos depois
de O Balão Vermelho e mais de cem anos depois
da invenção do cinematógrafo de Lumière, Le Voyage
du Ballon Rouge é um filme que situamos na extremidade
da história do cinema. Mas que possui o gosto da infância.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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