LE VOYAGE DU BALLON ROUGE
Hou Hsiao-hsien, França, 2007
 

O cinema de Hou Hsiao-hsien já chegou a um estágio em que mesmo seus procedimentos artísticos mais complexos podem se dar com toda calma. A força dos planos consiste tão-somente em captar – de forma transitória – a luz, a duração, a energia vital dos personagens, fornecer um suporte de inscrição para o mundo em movimento e mudança. Embora seguindo propostas narrativas esvaziadas dos mecanismos de adesão comuns, os filmes de Hou (sobretudo os mais recentes) conquistam o espectador por uma imantação à presença sensível das coisas e das pessoas, estabelecendo uma via direta com o sensorial e o emocional, uma vez que estes não precisam ser mediados pela interiorização do drama. O espectador não necessariamente se identifica com o histórico ou o temperamento do personagem, mas antes troca energia com ele. Não há dificuldade alguma em acompanhar os filmes de Hou, mesmo que a trama seja mínima e as ações dos personagens pareçam ter nascido de um pacto com o insignificante e o efêmero. Os planos alongados de Hou têm se tornado ainda mais leves, sem chamar atenção para sua feitura ou para sua duração. A relação com o tempo é serena, doce. Em Café Lumière e em Le Voyage du Ballon Rouge, a fruição se assemelha àquilo que em música se chama de easy listening. Hou oferece a mise en scène de uma flutuação prazerosa, um convidativo escoar de imagens.

Le Voyage du Ballon Rouge
é livremente adaptado do filme O Balão Vermelho, de Albert Lamourisse. “Um filme muito antigo, de 1956”, como Song explica ao menino Simon. Song, jovem estudante de cinema chinesa, é a nova babá de Simon. No filme de Lamourisse, o balão vermelho segue o menino como se fosse um cachorrinho recém adotado. Em Le Voyage du Ballon Rouge, o balão também possui vida própria, mas não segue Simon como se fosse um animal de estimação. O primeiro plano do filme mostra Simon junto à entrada do metrô, falando com o balão, que está fora de quadro, e insistindo para que este o acompanhe. Na rua ao lado, o movimento de carros é constante. Simon desce para o metrô e a câmera faz um lento tilt para cima, até encontrar o balão entre as folhas de uma árvore. O balão desce aos poucos, seguido por aquela sensibilidade de câmera que Mark Lee Ping Bing (diretor de fotografia, praticamente co-autor dos planos mais sensacionais de Hou) já instituiu como única, inimitável. Depois vemos o balão em uma estação de metrô, onde a câmera varia do plano geral ao plano-detalhe de forma sempre provisória e fluida – o plano em Hou Hsiao-hsien é um ponto de vista parcial, variável, sujeito a reenquadramento, refocalização, ou seja, a câmera assume sua limitação estruturante, o plano é um fragmento do mundo e não um retângulo de imagem completo em si mesmo.

O Balão Vermelho foi um dos principais filmes utilizados como exemplo no célebre texto “Montagem Proibida”, de André Bazin. Sua defesa se baseava no fato de que Lamourisse filmara o menino e o balão sempre no mesmo plano, valorizando a co-presença dos dois no interior de um registro contínuo. Através desse registro, o balão e o menino, embora seres de espécies diferentes, partilhavam um mesmo regime de luz e duração, uma mesma imagem – uma imagem de mesmo teor ontológico. Para Bazin, não importava se o movimento do balão dependia de alguma peripécia ou trucagem: importava constatar sua presença concreta, fisicamente apreendida em contigüidade à presença igualmente concreta do menino, isto é, sem a intervenção ludibriadora da montagem. Hou, em Le Voyage du Ballon Rouge, vai bagunçar essa percepção. A começar pelo fato de que o balão e o menino praticamente não dividem o mesmo quadro ao longo do filme (ao menos não da maneira exaltada por Bazin em O Balão Vermelho). Antes de fazer menino e balão ocuparem o mesmo campo, Hou instaura uma relação dinâmica entre campo e fora-de-campo – que se expande para concreto/abstrato, ótica/imaginário. O balão, no filme de Hou, não está impresso na camada de real assegurada pelas pessoas que partilham o quadro com ele, mas sim no lugar do reflexo, do fora-de-campo que se atualiza em campo, das zonas intermediárias da representação e da visibilidade. O balão é o concreto, é a evidência do visível, mas é também o imaginário, o mundo alternativo onde habitam figuras e fábulas do cinema.

Fábulas, por sinal, estão no centro do trabalho de Suzanne (Juliette Binoche), mãe de Simon, já que ela vocaliza espetáculos de fantoches. Suzanne é uma personagem incrivelmente cativante em seu corre-corre diário. Ela está sempre apressada (como o menino bem observa), sempre com o tempo apertado entre uma atividade e outra. Quando ocorre alguma pausa, sobra uma ponta de melancolia em seu olhar. Ela e Song se entendem bem desde o início, mas o mesmo já não se pode dizer de sua relação com Marc, o vizinho/inquilino do apartamento de baixo, que deve vários meses de aluguel e ainda pede favores inconvenientes. As cenas dentro do apartamento de Suzanne (quase todas filmadas com a câmera num lugar de onde é possível enquadrar simultaneamente a mesa da sala, uma parte da cozinha e a porta) são as melhores do filme, fazendo um uso impressionante da soma de eventos em um mesmo plano. O apartamento exíguo e amontoado se abre como um espaço cênico de infinitas possibilidades. Há um plano, em particular, que ficará para a antologia de Hou: o plano em que o afinador de piano vai ao apartamento. A câmera começa em Simon jogando Playstation, depois desliza suavemente até a porta, assiste ao afinador se instalar ao piano e começar seu trabalho. Ouvimos em off a discussão de Suzanne com Marc, até que eles abrem bruscamente a porta e a discussão invade a cena de vez. O som se torna uma massa caótica: barulhos de videogame, briga de Suzanne com Marc, notas saídas das teclas do piano, ruídos de ambiente. Além de retornar a Lamourisse e a Lumière (presença sempre implícita nas cenas de rua e de trem filmadas por Hou), Le Voyage du Ballon Rouge evoca, nesse momento, um terceiro cineasta francês, igualmente importante: Maurice Pialat (também ele um “herdeiro” de Lumière). O clímax desse plano-seqüência de Hou lembra os momentos de bagarre dos filmes de Pialat (em especial Loulou e Aos Nossos Amores), um tipo de explosão repentina do personagem e do plano que o cineasta taiwanês já apresentava também em Adeus ao Sul e Flores de Xangai. Trata-se de uma percepção aguda dos brotamentos internos da diegese, dotando o plano-seqüência de um verdadeiro poder de aspiração: o filme é tragado pelo instante, para depois se recompor novamente, retornar à tranqüilidade de sua duração.

O encanto de Le Voyage du Ballon Rouge é de difícil definição, pois está diretamente relacionado à experiência de assistir ao filme. Hou transforma uma simples cena de Song caminhando com Simon pela calçada, ou de Suzanne perguntando para ele como foi seu dia, em um momento transbordante de candura. Ele mais uma vez (após a experiência de Café Lumière, filme que celebrava o centenário de Ozu) vai a uma terra estrangeira homenagear um cineasta e sai de lá com uma obra-prima. Cinqüenta anos depois de O Balão Vermelho e mais de cem anos depois da invenção do cinematógrafo de Lumière, Le Voyage du Ballon Rouge é um filme que situamos na extremidade da história do cinema. Mas que possui o gosto da infância.

Luiz Carlos Oliveira Jr.


 







Song acompanhada de Simon e de sua câmera