VALENTE
Neil Jordan, The Brave One, EUA/Austrália, 2007

As primeiras imagens de Valente mostram recortes de prédios e letreiros luminosos, calçadas, sarjetas, gente se cruzando apressadamente, um pequeno painel da Nova York dos dias de hoje. O filtro destas imagens é dado pela voz em off de Erica Bain, locutora de um programa de rádio chamado “Caminhada pela Rua”, misto de crônica urbana e confissão memorial da apresentadora. Mais que os textos em que lamenta o estado cada vez menos acolhedor da cidade ou a falta que sente da tartaruga que criara na infância, Erica capta propriamente os sons deste lugar, armada com um gravador e um microfone. Pela Times Square, no metrô, nas quadras de basquete a céu aberto, ela vai constituindo este inventário da vibração nova-iorquina, e aos poucos tomando seu partido, até que vire, ela mesma, mais um de seus ruídos. A distância entre a simples captura e a total imersão (ao ponto de se tornar aquilo que, até então, apenas se observava) é justamente a que Neil Jordan percorre em seu filme.

Essa Nova York de Valente, por exemplo. Ela vive sob o fantasma do medo e da paranóia, está repleta de aparatos de vigilância, produz uma série de referências à Guerra no Iraque, desde a piada de um cafetão até o chamado à consciência de uma das ouvintes do programa de Erica. E, no entanto, o 11 de setembro nunca é sequer mencionado. Um bordão repetido à exaustão pela protagonista versa sobre a transformação íntima que sofrem todos aqueles que passaram por uma grande tragédia, a ponto de não mais existirem como antes, mas de fato se tornarem outras pessoas, pessoas estranhas. A marca da tragédia nas Torres Gêmeas tornou Nova York, aos olhos de Valente, uma cidade estranha. Da tragédia existem apenas alguns sinais, mas um pacto de silêncio se estabeleceu ali. A quarentena que Hollywood se impõe para tratar destes grandes traumas americanos parece ainda valer para Valente, mas apenas no caso específico da cidade em que se passa. Há uma estranheza ali, mas percebê-la enquanto tal não interessa a Neil Jordan. Mergulhar no drama da cidade exigiria, figuras similares que são, mergulhar no drama de Erica, e Valente quer delas duas, de Nova York e de sua protagonista, não mais que o espetáculo de suas novas identidades. Neil Jordan ignora as revoluções (aviões jogados contra prédios, gangues matando a pauladas os namorados com quem vivíamos muito felizes). Seu partido é o da reação.
 
Há, no fundo, um desejo de diagnóstico, mas ele nunca esconde a afetação indignada que percebemos em qualquer “análise política” feita por colunistas sociais (e socialmente responsáveis, é claro). Valente parece querer falar desse mundo pós-11 de setembro, parece querer identificar em Erica Bain o protótipo do “novo homem” surgido a partir deste marco, mas suas colocações nunca passam disso, de elementos ilustrativos colocados em cena como se objetos de decoração intelectual fossem. É como a política educacional que considera como alfabetizado todo aquele que conseguir desenhar seu próprio nome num papel: Neil Jordan vê seu trabalho como cineasta o ato de simplesmente “desenhar” na película as imagens que captura neste mundo transformado, sem que nunca precise exatamente entender o som de cada letra, o que significa a junção de duas delas numa sílaba, a força existente na formação de uma palavra. Um caso exemplar (ainda que não único, infelizmente) de um cineasta-funcional.

Assim, Valente vai amontoando estes garranchos preguiçosos sobre o estado do mundo. Diversos dispositivos eletrônicos são espalhados por Valente, celulares que transmitem vídeos, crimes sendo gravados ao vivo por câmeras portáteis, circuitos internos de vigilância, tudo isso postado como se fosse um grande e inédito achado sociológico. Não, não é. Impossível ignorar a indigência com que a montagem paralela do começo de Valente mostra o flashback de uma transa entre Erica e o namorado, equivalendo esta sensação de ser despida por seu amor à sensação de ter suas roupas íntimas cortadas pelos para-médicos que a tentam salvar depois do espancamento brutal. Impossível porque temos na memória a cena de Munique, de Steven Spielberg, em que o chefe de uma missão da Mossad faz sexo com sua mulher mas é atormentado pelas lembranças do massacre dos atletas israelenses seqüestrados, lembranças que ele nem deveria ter uma vez que não esteve lá, mas que verdadeiramente lhe pertencem. Mais que isso, diante da grandeza de A Última Noite, de Spike Lee, um filme feito no calor da tragédia e que talvez nunca seja superado em sua profundidade de percepção do trauma do 11 de setembro, e um filme que também tem boa parte de sua ação dramática desenrolada num dos túneis escuros e desertos do Central Park, com a encenação de espancamentos e ressurreições, e até mesmo com um cachorro de companhia, é impossível ignorar a displicência com que estes mesmos elementos, nas mãos de Neil Jordan, não servem para mais que a justificação de uma ordem moral retorcida.

Em algum momento, Erica Bain cita em seu programa uma passagem de D.H. Lawrence onde o escritor inglês diz que “a alma americana é naturalmente assassina”. Novamente, não importará a Neil Jordan mergulhar nesse conceito tão duro, perceber sua complexidade, sua amplidão. Valente é uma espécie de foto polaróide dessa alma: instantânea, corriqueira, chapada, esmaecida. Talvez fosse o caso de rejeitar o filme por sua assumida veia fascista, que considera a onda justiceira de Erica, bem encorpada por Jodie Foster, como uma limpeza étnica (todos os que não forem “puros de espírito” merecem morrer, sendo difícil disfarçar a distorção dessa idéia de pureza). Ou abominar o sopro de criatividade que Jordan parece se auto-atribuir ao retratar uma personagem pendular fazendo movimentos de pêndulo com a câmera, inclinando-a de um lado para outro sempre que a protagonista passa por algum corredor escuro ou beco sinistro, tudo acompanhado por uma trilha sonora que acentua o quão “radical” e “inventivo” aquilo é. Ou ainda ridicularizar toda a plastificação da violência, como se uma embalagem bonita fosse o bastante para ignorar a força criminosa que pulsa ali dentro (e isto serve tanto para a “assassina boa” de cabelo loiro e corte da moda como para a profusão de penduricalhos de linguagem mal-utilizados, gruas, closes, flashbacks tensos e barulhentos). Talvez fosse até preciso condenar Valente à lata de lixo da imoralidade, por sua defesa da justiça com as próprias mãos que, localizada na Nova York do Ground Zero, é de uma miopia histórica inacreditável (os terroristas são apenas os fanáticos religiosos que provocam estragos por razões que não queremos compreender, mas quando a classe média americana e branca assume o capuz do carrasco, aí tudo se justifica pelo bem à sociedade livre e democrática). Tudo isto parece bastante aplicável ao filme, mas há um problema ainda anterior.

Neil Jordan lança Valente no mesmo ano em que Paul Greengrass completou uma trilogia de espionagem com O Ultimato Bourne. Dois filmes de gênero, dois filmes que tomam parte do mesmo espírito contemporâneo, dois filmes que lidam com a obsessão americana de resolução dos problemas sociais e históricos através do assassinato (legalizado ou apenas moralmente patrocinado pelo senso comum). A trajetória de Jason Bourne se construiu em torno do momento em que ele se confrontaria com os responsáveis por sua transformação numa máquina de matar. Greengrass não realiza nenhum grande tratado pró-humanidade, e nem mesmo chega a condenar os políticos e militares americanos que propagaram e oficializaram esta obsessão. A atitude que diferencia Greengrass de Jordan é muito simples, na verdade. O Ultimato Bourne olha com absoluto espanto para este estado de coisas. Greengrass não quer evitar que seu temor com a descartabilidade da vida se manifeste. Ele está lá, sobretudo nos acessos que Bourne tem ao lembrar de seu treinamento secreto. O barulho de um tiro, o tamanho de uma explosão, o sangue de alguém espalhado no meio de uma estação de metrô, elementos tão caros ao tipo de cinema a que O Ultimato Bourne e Valente se filiam, não podem ser simplesmente jogados na tela, não num momento em que ecoam diretamente do mundo, e não apenas por serem uma simples convenção da fórmula do filme de ação. Valente deve ser repudiado exatamente por isso. Diante da imagem radical de uma pessoa apontando uma arma para a cabeça de outra e atirando sem qualquer piedade ou tremor (“por que minhas mãos não tremem?”, se pergunta Erica em diversos momentos), e diante do que isso significa no mundo de hoje, um cineasta pode fazer quase tudo – quase tudo, menos fingir que isto é algo normal. Menos filmar a morte violenta como uma banalidade, elogiando sua violência, ridicularizando sua banalidade, disfarçando tudo como se fosse um grande palco de humanidade. Valente merece repúdio porque sua suposta valentia é a manifestação da mais pura covardia diante do confronto real com o mundo que o comporta.

Rodrigo de Oliveira