SILENCIOSA LUZ
Carlos Reygadas, Stellet Licht, México/França/Holanda, 2007

Silenciosa Luz é o terceiro longa-metragem de Carlos Reygadas. É um alívio para quem, como eu, havia saído estupefato de Japão e depois se decepcionado com Batalha no Céu. Reygadas ameaçava tornar sua herança tarkovskiana de planos longos e elaborados um mero virtuosismo sem calor, sem atrativos a não ser a verificação de um talento dele como cineasta. O que era estranhamento e magnificência em Japão de repente se tornava um conjunto de manobras calculadas e estéreis em Batalha no Céu – imagens que pesavam de forma auto-reverencial. Mas agora, com Silenciosa Luz, a força retorna, o estranhamento se duplica e, ao menos nas partes essenciais do filme, escapa à mão pesada. No fundo, um aspecto de Reygadas continua muito presente, ou melhor, confirma-se como gesto estruturante: a beleza dos filmes tem sempre de negociar com seu egocentrismo. Se há uma manobra que se repete nos três filmes, é um plano em que a câmera ocupa o epicentro da cena. Em Japão, isso se dava no plano final, o travelling inebriante sobre o trilho do trem, ao som de “Cantus in Memory of Benjamin Britten” de Arvo Pärt, com a câmera girando 360º, lentamente, transbordante de tanta vontade de síntese e maravilhamento – uma guinada conscientemente rumo ao sublime. Batalha no Céu tinha aquela horripilante cena da câmera saindo do quarto do casal, rodando o mundo ao redor deles e retornando ao quarto, percurso no qual se dava uma elipse. Silenciosa Luz, por fim, repete a dose, no plano em que Johan, logo após confessar a um amigo seu caso extraconjugal, fica dando voltas em torno da câmera com sua caminhonete, embalado pela música que canta sorridente. Johan está apaixonado, e o bonito desse plano – interrompido no momento certo, um pouco antes de descambar no exibicionismo – é nos assegurar de sua paixão.

O filme é ambientado no norte do México, onde Johan mora com a mulher e os filhos numa fazenda em meio a uma comunidade de menonitas imigrantes. A idéia de microcosmo imerso num mundo que extravasa seus limites pode parecer uma premissa fácil para Reygadas trabalhar seu gosto por deslocamentos e estranhamentos. Mas seu desejo maior é buscar a partir disso uma dramaturgia particular. Ele instala um universo e, através das pessoas que habitam esse universo, estabelece uma modalidade de representação com regras próprias. Um drama metafísico que pede a construção marcada de cada plano, cada seqüência – como quem rege uma galáxia e não apenas um filme (no que isso tem de bom e de prejudicial à nossa fruição de tamanha megalomania). Bresson e Dreyer estão na base dessa dramaturgia, sem dúvida, mas o investimento singular de Reygadas, seu passo adiante, pode ser verificado, por exemplo, na belíssima cena da família de Johan na piscina. Aquele sentimento de duração, de pulsação da natureza na pele dos personagens, de materialidade da experiência com o instante, o cineasta mexicano filma sem recorrer a nenhum mestre. As imagens que compõem essa cena trazem um teor de evanescência que – saudavelmente – destoa da solenidade reinante no filme. No último momento da seqüência, quando a mulher de Johan deixa cair uma lágrima (ela sabe que ele tem uma amante), Reygadas não se contém e faz um travelling no quadro desfocado e vazio, até achar uma flor em detalhe. Um certo deslumbramento pelo “filmar bonito” que já poderia ter sido superado, mas que não compromete a verdade do filme.  

No primeiro encontro que vemos de Johan com Marianne, sua amante, a câmera acompanha os passos dele em direção a ela quase à altura do chão. Johan percorre um campo florido e acha Marianne no alto de uma pedra. Eles se beijam demoradamente, se abraçam, e o sol se irradia na imagem como flair, como “acidente” fotográfico, aqueles flocos de luz que vazam para dentro do campo visual, uma espécie de sobra da luz. O amor de Johan e Marianne é inscrito nessa ordem sagrada da luminosidade, da primavera, do sublime. Um cinema no limiar da sacralidade, feito de aparições e milagres, mas também de elementos da physis, de estremecimentos da terra. Um cinema categoria peso-pesado, com imagens que são blocos maciços, imagens com o estrondo das carretas que cruzam a estrada na cena em que Esther, a esposa de Johan, pede para que ele pare o carro, sob uma chuva melodramática. Antes, há um campo-contracampo em eixo de 180º dentro do carro em movimento. Toda vez que corta de Johan para Esther, vemos trajetos conflitantes, uma estrada que vai e outra que vem. As gotas de chuva, por seu turno, pesam, a vida pesa sobre os personagens, o céu é enorme e também pesa. A cena de Esther desfalecendo em lágrimas ao lado de uma árvore é triste e emocionante. Como todos os mais belos momentos do cinema de Reygadas, a vitalidade do plano se arrisca no paradoxo de se tornar insustentável. Sufocante e liberador, o choro de Esther se multiplica com a chuva que respinga na câmera. Percebemos então, por analogia, que o flair das cenas ensolaradas tem um valor a mais. Aqueles flocos de luz têm um profundo significado acrescido ao efeito estético: eles são os respingos do sol, a benção dos amantes, da mesma forma que as gotas de chuva são suas lágrimas.

Uma primavera, uma chuva torrencial, uma violenta passagem do interior para o exterior que deflagra o inverno e a neve, elipses indeterminadas. Silenciosa Luz tem esse desejo de ocupar as quatro estações, erguer perante nossos olhos um mundo pleno de suas virtudes e conflitos, mudanças, passagens. A forma (um tanto esquemática, é preciso reconhecer) como o filme começa e termina revela um pouco desse desejo de plenitude, de obra acabada. A lágrima que Marianne deixa sobre o rosto de Esther na cena do velório, no entanto, é a reconquista do enigma da arte para além de maneirismos. Prevemos o decorrer da cena, sobretudo porque conhecemos sua referência explícita, Ordet de Dreyer, e ficamos à espera de um milagre. Mas mesmo assim, mesmo previsível, o milagre nos arrebata, como uma epifania às avessas. Se Reygadas souber conviver com seu talento, teremos outras fascinantes experiências de cinema pela frente.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 








Johan, um amigo e duas filhas percebem a chegada de
Marianne (fora de campo) em cena crucial de Silenciosa Luz