Silenciosa Luz é o terceiro longa-metragem de Carlos Reygadas.
É um alívio para quem, como eu, havia saído estupefato
de Japão e depois se decepcionado com Batalha no Céu. Reygadas ameaçava tornar
sua herança tarkovskiana de
planos longos e elaborados um mero virtuosismo sem calor,
sem atrativos a não ser a verificação de um talento
dele como cineasta. O que era estranhamento e magnificência
em Japão de repente se tornava um conjunto
de manobras calculadas e estéreis em Batalha
no Céu – imagens que pesavam de forma auto-reverencial.
Mas agora, com Silenciosa Luz, a força retorna, o estranhamento
se duplica e, ao menos nas partes essenciais do filme,
escapa à mão pesada. No fundo, um aspecto de Reygadas
continua muito presente, ou melhor, confirma-se como
gesto estruturante: a beleza
dos filmes tem sempre de negociar com seu egocentrismo.
Se há uma manobra que se repete nos três filmes, é um
plano em que a câmera ocupa o epicentro da cena. Em
Japão, isso se dava no plano final, o travelling inebriante sobre o trilho
do trem, ao som de “Cantus
in Memory of Benjamin Britten” de Arvo Pärt, com a câmera girando
360º, lentamente, transbordante de tanta vontade de
síntese e maravilhamento – uma guinada conscientemente rumo ao sublime. Batalha no Céu tinha aquela horripilante cena da câmera saindo do
quarto do casal, rodando o mundo ao redor deles e retornando
ao quarto, percurso no qual se dava uma elipse. Silenciosa
Luz, por fim, repete a dose, no plano em que Johan,
logo após confessar a um amigo seu caso extraconjugal,
fica dando voltas em torno da câmera com sua caminhonete,
embalado pela música que canta sorridente. Johan está
apaixonado, e o bonito desse plano – interrompido no
momento certo, um pouco antes de descambar no exibicionismo
– é nos assegurar de sua paixão.
O filme é ambientado no norte do México, onde Johan
mora com a mulher e os filhos numa fazenda em meio a
uma comunidade de menonitas
imigrantes. A idéia de microcosmo imerso num mundo que
extravasa seus limites pode parecer uma premissa fácil
para Reygadas trabalhar seu
gosto por deslocamentos e estranhamentos. Mas seu desejo
maior é buscar a partir disso uma dramaturgia particular.
Ele instala um universo e, através das pessoas que habitam
esse universo, estabelece uma modalidade de representação
com regras próprias. Um drama metafísico que pede a
construção marcada de cada plano, cada seqüência – como
quem rege uma galáxia e não apenas um filme (no que
isso tem de bom e de prejudicial à nossa fruição de
tamanha megalomania). Bresson
e Dreyer estão na base dessa
dramaturgia, sem dúvida, mas o investimento singular
de Reygadas, seu passo adiante, pode ser verificado, por exemplo,
na belíssima cena da família de Johan na piscina. Aquele
sentimento de duração, de pulsação da natureza na pele
dos personagens, de materialidade da experiência com
o instante, o cineasta mexicano filma sem recorrer a
nenhum mestre. As imagens que compõem essa cena trazem
um teor de evanescência
que – saudavelmente – destoa da solenidade reinante
no filme. No último momento da seqüência, quando a mulher
de Johan deixa cair uma lágrima (ela sabe que ele tem
uma amante), Reygadas não
se contém e faz um travelling no quadro
desfocado e vazio, até achar
uma flor em detalhe. Um certo deslumbramento pelo “filmar
bonito” que já poderia ter sido superado, mas que não
compromete a verdade do filme.
No primeiro encontro que vemos de Johan com Marianne,
sua amante, a câmera acompanha os passos dele em direção
a ela quase à altura do chão. Johan percorre um campo
florido e acha Marianne no alto de uma pedra. Eles se
beijam demoradamente, se abraçam, e o sol se irradia
na imagem como flair, como “acidente”
fotográfico, aqueles flocos de luz que vazam para dentro
do campo visual, uma espécie de sobra da luz. O amor
de Johan e Marianne é inscrito nessa ordem sagrada da
luminosidade, da primavera, do sublime. Um cinema no
limiar da sacralidade, feito
de aparições e milagres, mas também de elementos da
physis, de estremecimentos da terra. Um cinema categoria peso-pesado,
com imagens que são blocos maciços, imagens com o estrondo
das carretas que cruzam a estrada na cena em que Esther,
a esposa de Johan, pede para que ele pare o carro, sob
uma chuva melodramática. Antes, há um campo-contracampo
em eixo de 180º dentro do carro em movimento. Toda vez
que corta de Johan para Esther,
vemos trajetos conflitantes, uma estrada que vai e outra
que vem. As gotas de chuva, por seu turno, pesam, a
vida pesa sobre os personagens, o céu é enorme e também
pesa. A cena de Esther desfalecendo
em lágrimas ao lado de uma árvore é triste e emocionante.
Como todos os mais belos momentos do cinema de Reygadas,
a vitalidade do plano se arrisca no paradoxo de se tornar
insustentável. Sufocante e liberador, o choro de Esther se
multiplica com a chuva que respinga na câmera. Percebemos
então, por analogia, que o flair
das cenas ensolaradas tem um valor a mais. Aqueles flocos
de luz têm um profundo significado acrescido ao efeito
estético: eles são os respingos do sol, a benção dos
amantes, da mesma forma que as gotas de chuva são suas
lágrimas.
Uma primavera, uma chuva torrencial, uma violenta passagem
do interior para o exterior que deflagra o inverno e
a neve, elipses indeterminadas. Silenciosa Luz tem esse desejo de ocupar
as quatro estações, erguer perante nossos olhos um mundo
pleno de suas virtudes e conflitos, mudanças, passagens.
A forma (um tanto esquemática,
é preciso reconhecer) como o filme começa e termina
revela um pouco desse desejo de plenitude, de obra acabada.
A lágrima que Marianne deixa sobre o rosto de Esther
na cena do velório, no entanto, é a reconquista do enigma
da arte para além de maneirismos. Prevemos o decorrer
da cena, sobretudo porque conhecemos sua referência
explícita, Ordet de Dreyer, e
ficamos à espera de um milagre. Mas mesmo assim, mesmo
previsível, o milagre nos arrebata, como uma epifania
às avessas. Se Reygadas souber conviver com seu talento, teremos outras fascinantes
experiências de cinema pela frente.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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