Entre todas as mudanças que
a era digital instaurou no processo de realização de
um filme, a maior facilidade de se produzir e finalizar
imagens com um padrão de qualidade suficiente para exibição
em tela grande certamente foi uma das mais interessantes.
Milhares de novos diretores surgiram atraídos pela possibilidade
de filmar, editar e exibir seus filmes de forma rápida,
simples e barata. Conseqüentemente, das telas de cinema
ao youtube, houve uma propagação
de filmes mais pessoais e solitários, muitas vezes inteiramente
realizados por uma pessoa só, que popularizavam na estética
cinematográfica um tipo de registro que conecta o olhar
do diretor com o olhar da câmera, algo que antes só
podia ser encontrado com essa espontaneidade em vídeos
ou super-8 familiares. É mesclando a franqueza e a proximidade
de um vídeo de família com a seriedade e a consciência
de uma diretora que a atriz Sandrine Bonnaire constrói O
nome dela é Sabine, primeiro
longa-metragem dirigido por ela. Se nas suas decisões
como diretora ela por vezes demonstra uma frieza científica
(na narração em off
e no uso calculado das imagens de arquivo, principalmente),
é na afetividade que incorpora ao seu trabalho com a
câmera que está a força do filme.
Pois a Sabine do título é
a irmã da diretora. Ela carrega uma deficiência mental
desde a infância e que, por muito tempo, careceu de
um diagnóstico e de um tratamento específico. Para nos
contar sua trajetória e nos apresentar seu presente
estado, Sandrine faz uso de
imagens de arquivo de diferentes épocas, de uma narração
em off que nos localiza no tempo, explica as imagens e conta os fatos da vida da irmã, e de um
material captado no presente, no centro de tratamento
em que ela vive hoje em dia, com algumas entrevistas
e longos momentos de observação. É através da sobreposição
ou do encadeamento desses materiais pela montagem que
a diretora cria seu discurso. Seu objetivo primordial
para ser o de tenta devolver com essas imagens a existência
social de sua irmã perante o mundo, valorizando-a como
pessoa com sentimentos e como alguém que pode ser autônoma
na vida.
Parece realmente importante para Sandrine
achar sentimentos em Sabine,
como se isso a afastasse de uma reificação,
de uma coisificacão que a
dependência de outros para sobrevivência e a dificuldade
de comunicação costuma criar. Assim, Sandrine
observa sua irmã em diferentes
momentos do seu dia e seleciona para o filme exatamente
aqueles que ela demonstra, com falas ou expressões faciais,
emoções sobre o que está fazendo. É o caso da cena em
que ela está na piscina, se dizendo feliz de estar ali,
ou comprando roupas demonstrando vaidade e orgulho,
ou ainda tocando piano, ou assistindo a si mesma quando
jovem em uma viagem com a irmã para a América. Sandrine
também a entrevista com perguntas sobre o presente e
o passado menos interessada no conteúdo da resposta
do que na forma como ela se expressa – Sabine
se comunica bem se comparado aos outros deficientes
do centro de tratamento em que vive, mas sua irmã busca
nela uma compreesão que exceda
as palavras mecânicas. O filme não se trata, portanto,
de um passeio egoísta pelo cotidiano de uma deficiente
para arrancar dela alguns momentos de simplicidade bela,
ao contrário, Sandrine Bonnaire
faz antes essas imagens para posicionar um espelho diante
da sua irmã e valorizá-la como individua
para si mesma. Não é difícil imaginar
que, assim como no filme mostra-a imagens antigas de
ambas em uma viagem para a América, Sandrine
tenha mostrado o filme para a irmã depois de pronto.
Em vários momentos da projeção Sabine
mostra consciência de que está sendo filmada.
Além disso, em todas essas partes de observação e aproximação
de Sabine no filme, assistimos a um trabalho com a câmera que é decisivo. Boa parte das imagens utilizadas foi
feita pela própria atriz (Catherine Cabrol
é a outra operadora de câmera do filme), que foi capaz
de captar imagens ternas e carinhosas em todos os momentos
com a sua irmã. Sandrine Bonnaire
assume, assim, além do papel de narradora, a de personagem-câmera.
Poucas vezes se vê ela inserida na imagem durante o
filme, mas, a partir do momento que Sabine
se dirige a irmã olhando para a câmera e obtendo uma resposta, passamos
a associar diretamente o olhar da diretora com o olhar
que está criando aquelas imagens. É interessante pensar
que a decisão de evitar aparecer na frente da câmera
conseguiu ampliar a importância de sua presença atrás
dela. A câmera fala (a voz de Sandrine
vem sempre de trás dela) e interage, não apenas vê,
tornando O nome dela é Sabine
em um filme extremamente pessoal por ser quase um filme
em primeira-pessoa. O constante paralelo da montagem
– entre as imagens do presente e as do passado – aumenta
o significado fraternal que atribuímos ao olhar da câmera,
pois vemos que, antes de ser estabelecida a
relação documentarista-objeto, o mesmo tom carinhoso
e interessado se fazia presente no ato despretensioso
de filmar a família em uma viagem ou no cotidiano.
Ao mesmo tempo, essas mesmas imagens de arquivo constantemente
presentes para ilustrar o passado de Sabine,
descrito pela narração, trazem uma idéia de nostalgia
que não faz bem ao filme. Em determinado momento, tem-se
a idéia de que o interesse da diretora é somente resgatar
a irmã do passado (mais comunicativa e autônoma) e substituir
a atual na nossa percepção – como se quisesse dizer:
“é essa imagem da minha irmã que eu conservo na minha
cabeça e gostaria que vocês também a vissem assim”.
Mas é também graças à ausência dessas imagens familiares
de Sabine que entendemos o
tamanho do afastamento e do trauma que foi o período
dela no hospital psiquiátrico. Esse trecho de sua vida
é relatado pela irmã com uma cartela preta que, em letras
brancas, lê-se “5 anos em um
hospital psiquiátrico”. O impacto de uma tela preta
em um filme repleto de imagens significativas nos mostra
como nesse tempo houve um total desaparecimento do motivo
do filme (Sabine e sua relação com a irmã), e como o seu reaparecimento
depois desse tempo criou um trauma ao qual o filme se
refere o tempo todo.
Pois O nome dela é Sabine
também é um filme que busca uma cura para o trauma
de sua diretora, quase que um pedido de desculpas dela
para a irmã por a ter deixado no hospital por tanto
tempo. Durante o período em que esteve lá, Sabine
agravou seu estado e passou a ser fortemente medicada,
o que pode ter sido algo decisivo para a piora
de seu quadro clínico. Embora tente justificar suas
decisões em diversos momentos, Sandrine
tem a coragem de assumir a responsabilidade do acontecimento
(sua família é composta de 11 filhos que mal são citados),
atentando com o seu filme para a necessidade de centros
de tratamentos especiais que entendam e tratem as doenças
individualmente. Sua intenção com esse acerto de contas
com o passado parece ser o enfrentamento das conseqüências
de uma decisão, fazendo com que a busca por um lugar
em que a irmã possa ser tratada corretamente, por um
diagnóstico preciso de sua condição e por um melhor
entendimento de como ela pode viver melhor estejam presentes
como parte de um processo no filme.
Não se pode dizer que Sandrine
Bonnaire criou alguma expectativa
com esse filme sobre uma possível carreira de diretora.
Tudo nele é muito pessoal e frágil, claramente feito
por alguém que não conhece a linguagem do cinema a fundo.
De certa forma, é provavelmente desse “cinema por quem
não sabe fazer cinema” que surgem os momentos belos
do filme, em que um protocolo de direção é colocado
de lado para sobrar apenas o olhar de uma irmã para
outra. O título do filme, por sua vez, reitera a vontade
da imagem de ressaltar que Sabine
é uma pessoa e não um objeto. Se antes todos conhecíamos
o nome Sandrine Bonnaire, agora também conhecemos (e não esqueceremos) o nome
de sua irmã: Sabine Bonnaire.
Bernardo Barcellos
|