O NOME DELA É SABINE
Sandrine Bonnaire, Elle s’appelle Sabine, França, 2007

Entre todas as mudanças que a era digital instaurou no processo de realização de um filme, a maior facilidade de se produzir e finalizar imagens com um padrão de qualidade suficiente para exibição em tela grande certamente foi uma das mais interessantes. Milhares de novos diretores surgiram atraídos pela possibilidade de filmar, editar e exibir seus filmes de forma rápida, simples e barata. Conseqüentemente, das telas de cinema ao youtube, houve uma propagação de filmes mais pessoais e solitários, muitas vezes inteiramente realizados por uma pessoa só, que popularizavam na estética cinematográfica um tipo de registro que conecta o olhar do diretor com o olhar da câmera, algo que antes só podia ser encontrado com essa espontaneidade em vídeos ou super-8 familiares. É mesclando a franqueza e a proximidade de um vídeo de família com a seriedade e a consciência de uma diretora que a atriz Sandrine Bonnaire constrói O nome dela é Sabine, primeiro longa-metragem dirigido por ela. Se nas suas decisões como diretora ela  por vezes demonstra uma frieza científica (na narração em off e no uso calculado das imagens de arquivo, principalmente), é na afetividade que incorpora ao seu trabalho com a câmera que está a força do filme.

Pois a Sabine do título é a irmã da diretora. Ela carrega uma deficiência mental desde a infância e que, por muito tempo, careceu de um diagnóstico e de um tratamento específico. Para nos contar sua trajetória e nos apresentar seu presente estado, Sandrine faz uso de imagens de arquivo de diferentes épocas, de uma narração em off que nos localiza no tempo, explica as imagens e conta os fatos da vida da irmã, e de um material captado no presente, no centro de tratamento em que ela vive hoje em dia, com algumas entrevistas e longos momentos de observação. É através da sobreposição ou do encadeamento desses materiais pela montagem que a diretora cria seu discurso. Seu objetivo primordial para ser o de tenta devolver com essas imagens a existência social de sua irmã perante o mundo, valorizando-a como pessoa com sentimentos e como alguém que pode ser autônoma na vida.

Parece realmente importante para Sandrine achar sentimentos em Sabine, como se isso a afastasse de uma reificação, de uma coisificacão que a dependência de outros para sobrevivência e a dificuldade de comunicação costuma criar. Assim, Sandrine observa  sua irmã em diferentes momentos do seu dia e seleciona para o filme exatamente aqueles que ela demonstra, com falas ou expressões faciais, emoções sobre o que está fazendo. É o caso da cena em que ela está na piscina, se dizendo feliz de estar ali, ou comprando roupas demonstrando vaidade e orgulho, ou ainda tocando piano, ou assistindo a si mesma quando jovem em uma viagem com a irmã para a América. Sandrine também a entrevista com perguntas sobre o presente e o passado menos interessada no conteúdo da resposta do que na forma como ela se expressa – Sabine se comunica bem se comparado aos outros deficientes do centro de tratamento em que vive, mas sua irmã busca nela uma compreesão que exceda as palavras mecânicas. O filme não se trata, portanto, de um passeio egoísta pelo cotidiano de uma deficiente para arrancar dela alguns momentos de simplicidade bela, ao contrário, Sandrine Bonnaire faz antes essas imagens para posicionar um espelho diante da sua irmã e valorizá-la como individua  para si mesma. Não é difícil imaginar que, assim como no filme mostra-a imagens antigas de ambas em uma viagem para a América, Sandrine tenha mostrado o filme para a irmã depois de pronto. Em vários momentos da projeção Sabine mostra consciência de que está sendo filmada.

Além disso, em todas essas partes de observação e aproximação de Sabine no filme, assistimos a um trabalho com a câmera que é decisivo. Boa parte das imagens utilizadas foi feita pela própria atriz (Catherine Cabrol é a outra operadora de câmera do filme), que foi capaz de captar imagens ternas e carinhosas em todos os momentos com a sua irmã. Sandrine Bonnaire assume, assim, além do papel de narradora, a de personagem-câmera. Poucas vezes se vê ela inserida na imagem durante o filme, mas, a partir do momento que Sabine se dirige a irmã olhando para a câmera e obtendo uma resposta, passamos a associar diretamente o olhar da diretora com o olhar que está criando aquelas imagens. É interessante pensar que a decisão de evitar aparecer na frente da câmera conseguiu ampliar a importância de sua presença atrás dela. A câmera fala (a voz de Sandrine vem sempre de trás dela) e interage, não apenas vê, tornando O nome dela é Sabine em um filme extremamente pessoal por ser quase um filme em primeira-pessoa. O constante paralelo da montagem – entre as imagens do presente e as do passado – aumenta o significado fraternal que atribuímos ao olhar da câmera, pois vemos que, antes de ser estabelecida a relação documentarista-objeto, o mesmo tom carinhoso e interessado se fazia presente no ato despretensioso de filmar a família em uma viagem ou no cotidiano.

Ao mesmo tempo, essas mesmas imagens de arquivo constantemente presentes para ilustrar o passado de Sabine, descrito pela narração, trazem uma idéia de nostalgia que não faz bem ao filme. Em determinado momento, tem-se a idéia de que o interesse da diretora é somente resgatar a irmã do passado (mais comunicativa e autônoma) e substituir a atual na nossa percepção – como se quisesse dizer: “é essa imagem da minha irmã que eu conservo na minha cabeça e gostaria que vocês também a vissem assim”. Mas é também graças à ausência dessas imagens familiares de Sabine que entendemos o tamanho do afastamento e do trauma que foi o período dela no hospital psiquiátrico. Esse trecho de sua vida é relatado pela irmã com uma cartela preta que, em letras brancas, lê-se “5 anos em um hospital psiquiátrico”. O impacto de uma tela preta em um filme repleto de imagens significativas nos mostra como nesse tempo houve um total desaparecimento do motivo do filme (Sabine e sua relação com a irmã), e como o seu reaparecimento depois desse tempo criou um trauma ao qual o filme se refere o tempo todo.

Pois O nome dela é Sabine também é um filme que busca uma cura para o trauma de sua diretora, quase que um pedido de desculpas dela para a irmã por a ter deixado no hospital por tanto tempo. Durante o período em que esteve lá, Sabine agravou seu estado e passou a ser fortemente medicada, o que pode ter sido algo decisivo para a piora de seu quadro clínico. Embora tente justificar suas decisões em diversos momentos, Sandrine tem a coragem de assumir a responsabilidade do acontecimento (sua família é composta de 11 filhos que mal são citados), atentando com o seu filme para a necessidade de centros de tratamentos especiais que entendam e tratem as doenças individualmente. Sua intenção com esse acerto de contas com o passado parece ser o enfrentamento das conseqüências de uma decisão, fazendo com que a busca por um lugar em que a irmã possa ser tratada corretamente, por um diagnóstico preciso de sua condição e por um melhor entendimento de como ela pode viver melhor estejam presentes como parte de um processo no filme.
Não se pode dizer que Sandrine Bonnaire criou alguma expectativa com esse filme sobre uma possível carreira de diretora. Tudo nele é muito pessoal e frágil, claramente feito por alguém que não conhece a linguagem do cinema a fundo. De certa forma, é provavelmente desse “cinema por quem não sabe fazer cinema” que surgem os momentos belos do filme, em que um protocolo de direção é colocado de lado para sobrar apenas o olhar de uma irmã para outra. O título do filme, por sua vez, reitera a vontade da imagem de ressaltar que Sabine é uma pessoa e não um objeto. Se antes todos conhecíamos o nome Sandrine Bonnaire, agora também conhecemos (e não esqueceremos) o nome de sua irmã: Sabine Bonnaire.

Bernardo Barcellos