People
– Histórias de Nova York, como o próprio
título em português sugere, é um
filme painel. Escolhe cinco tramas narrativas, compostas
de um ou mais personagens, para traçar um panorama
da sociedade americana do pós 11 de setembro.
E atenção, pós 11 de setembro mesmo,
e não apenas a sugestão dos desdobramentos
do ataque feito aos EUA. O filme começa com uma
cartela nos localizando temporalmente, "setembro
de 2002", e com imagens que nos localizam espacialmente:
Nova York. As referências aos atentados também
estão presentes. Enfim, toda a construção
do filme é feita a partir do ocorrido, finalmente
assumindo os ataques como elemento propulsor da história
narrada, com forte ponto de interferência no cotidiano
americano.
O filme parte de algumas escolhas previsíveis,
a começar pela escolha dos personagens-tipos:
um segurança indiano, um casal em crise com um
filho problemático, uma decoradora de bolos freqüentadora
da alta sociedade, um esquisito nerd e uma velhinha
simpática já desgastada pela repetição
da rotina. Não exatamente óbvios, mas
emblemáticos de uma sociedade que parece estar
compreendida nessas cinco pequenas narrativas.
People é um filme fraco, com argumentações
frágeis e elementos mal trabalhados. Mas, no
entanto, ganha quando se diferencia um mínimo
dos filmes-painéis e totalizantes que têm
povoado o cinema ultimamente (Crash, de Paul
Haggis é o exemplo máximo). O diretor
Danny Leiner abre uma nova perspectiva no cinema para
a compreensão dos desdobramentos na sociedade
americana assolada pelos atentados. O filme ainda que
trabalhe com uma situação sintomática
– e é ciente disso – não fica tentando
estabelecer relações de causa e conseqüência
das mais arbitrárias possíveis. As atitudes
nunca são justificadas na diegese do filme, nem
no imaginário do personagem (ou do espectador).
Leiner trata seus personagens como conseqüências
sim de uma situação que se instala, mas
não se sente obrigado em localizar as causas.
Pelo contrário, trabalha essa questão
da causa, do elemento justificador de mazelas, de maneira
bastante interessante. Em determinado momento do filme
um personagem pergunta a outro: Qual o seu problema?
E a resposta: Não sei. E o diretor Danny Leiner
assume que em People os personagens também
desconhecem o elemento causador de um estado de latência,
que os mantém aflitos, assumindo que este mais
do que ser justificado, não existe enquanto fato
descolado. Toma como partido que a indigestão
instalada na sociedade é ocasionada por uma problemática
ampla e complexa.
No entanto, os méritos de People acabam
por aqui. Os conflitos dos personagens são mal
desenvolvidos, assumindo que não interessam enquanto
indivíduos, mas apenas como fantoches de um partido
a ser explanado. O casal em crise não consegue
transar, pois nunca está tranqüilo devido
ao seu filho criança que bate nos colegas de
escola e tem comportamento dificílimo. Nada demais
até então, mas a história se limita
aí. O filme abre mão de investigar e explorar
esse conflito de maneira mais aprofundada. O mesmo se
dá com a decoradora de bolos. Personagem que
está inserida na alta sociedade, mas que não
consegue se localizar exatamente. Mais pela estranheza
do funcionamento de um sistema, do que pela dificuldade
de entrada nas maiores mansões.
E poderíamos discorrer situações
semelhantes para os demais personagens: todos estão
apenas em função dessa espécie
de defesa, ou simplesmente do painel que quer ser pintado
por Leiner. Tudo bem, se a opção é
esta, o diretor tem todo o direito. No entanto, há
elementos comprometedores. E neste sentido o final do
filme é catastrófico. Se em um primeiro
momento o diretor opta por apenas olhar para seus personagens,
sem se envolver em demasiado em sua interioridade, preservando
apenas os fatos acontecidos, no momento posterior usa
das artimanhas mais baratas de sedução
do espectador. Uma musiquinha tocante, tomadas especiais,
como as da velhinha vendo a mudança na rotina
do marido, ou do segurança indiano revelando
para o amigo, com lágrimas nos olhos, seu arrependimento
em trair sua esposa. Uma construção formal
claramente dirigida para a comoção.
Ainda há no filme o emblema do aniversário
de 1 ano. No dia 11 de setembro de 2002 os personagens
parecem encontrar a solução de seus problemas,
ou ao menos a forma de contorná-los. O porquê
disso acontecer exatamente nesta data permanece em aberto,
para não dizer que é extremente injustificado
e sem pé, nem cabeça.
People, em última instância, é
mais um daqueles filmes repletos de boa vontade e de
uma ansiedade em compreender a fase conseguinte do pós-11/09
no cotidiano americano. Vale lembrar que na primeira
parte do filme, os personagens reiteram a rotina presente
e remetem a uma mudança que não aconteceu.
Se o 11 de setembro foi por um lado um fenômeno
sociológico e político, tomado como marco
histórico, na esfera do particular parece mais
uma data comemorativa de uma nova fase que pareceu instalada,
mas que na prática continua com as mesmas sentenças.
Em People, se as sentenças são
outras em relação as abordagens convencionais,
quebrando com o fetiche do 11/09 e deixando de lado
as relações causais, dando vida aos personagens
que agora podem conturbar-se com anseios individuais
sem saber o porquê, a construção
formal e a levada do filme apontam para uma tradição
já desgastada e sem força no panorama
cinematográfico contemporâneo.
Raphael Mesquita
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