Que Imagem para a História?
Eis a pergunta que Sokurov
se faz em seus filmes sobre grandes ditadores do século
XX. As letras maiúsculas designam o peso que ele confere
a ambas, Imagem e História. O modo de representação,
porém, estabelece um sentido de grandiosidade ambíguo,
privilegiando o recorte microscópico em detrimento da
encenação dos acontecimentos épicos. A visão histórica,
em Sokurov, se reconstrói
a partir daquilo que a princípio não estava destinado
à memória coletiva. Uma cena de O
Sol ilustra à perfeição a estratégia do diretor: o imperador Hirohito, apaixonado por biologia marinha, observa um raro
espécime de caranguejo no microscópio e o descreve em
minúcias para seu assistente. Detendo-se sobre os últimos
dias de poder de Hirohito,
da mesma forma que já fizera com Hitler em Moloch e Lênin em Taurus,
Sokurov assume essa mesma
postura de observador motivado simultaneamente pelo
gesto científico e pelo fetichismo. Ele sublinha os
cacoetes de Hirohito, os hábitos,
a respiração, a compleição física. Sokurov
é um colecionador de personagens históricos; sua trilogia
é seu hobby, seu álbum de figuras icônicas – igual ao
que Hirohito possui, com imagens
de Chaplin, Garbo, Bogart e outros
astros de Hollywood. As imagens de O
Sol (captadas em HD) se aproximam de um sépia que
reforça a impressão de um álbum de fotografias antigas
folheado com muito cuidado por Sokurov.
Em sua maior parte, o filme foi rodado dentro de estúdio,
como a demarcar o espaço de uma relação íntima com a
História – ou de um laboratório privado para o diretor
se entregar a seu “lazer sério”. Ele alcança agora o
que Moloch só esboçava: a poesia e a patologia da
História guardadas em uma mesma textura, uma mesma luz.
E não são apenas os personagens históricos que se tornam
alvos de fetiche, mas também os objetos sobre os quais
o tempo depositou sua marca, sua espessura, algum signo
forte do passado, algo que distinga aquele objeto como
pertencente a uma época que se foi. Abundam em O
Sol os planos-detalhe
sobre objetos de antiquário, desde pratos de cerâmica
até abotoadeiras, luvas e embalagens do chocolate Hershey’s (um presente do general MacArthur
ao imperador Hirohito: vemos
o Japão pop em embrião). O lado museólogo
de Sokurov já havia
ganho seu tour de force em Arca Russa,
mas em O Sol
o desejo de reter objetos antigos na frente da câmera
adquire o aspecto de um manifesto a favor da beleza
dessas peças arqueológicas, esses detalhes das épocas
passadas. O próprio Hirohito
é tratado dessa forma, como uma peça cuja beleza devemos
aprender a apreciar ao longo do filme. A opção por apanhar
o imperador às vésperas de sua capitulação é evidente:
Sokurov filma o estatuto de
um ser em processo de mutação. O deus deverá ser homem,
pôr os pés no chão, aprender a abrir uma porta sem esperar
que um súdito o faça por ele.
Arca Russa,
filme que consistia num único plano de mais de 90 minutos,
levava ao paroxismo uma recusa às transformações da
História. O filme rechaçava a montagem, o corte, condenava
o caráter de rupturas drásticas que caracterizaria os
processos históricos após o momento (o século XIX) que
ele estabelecia como fim da era preciosa da humanidade.
Em O Sol,
a montagem está presente, mas é curioso como, sobretudo
nas primeiras cenas do filme, leves fusões fazem a transição
de um plano a outro, e não cortes secos. O amortecimento
das passagens de plano adia as transformações a caminho,
dilata o crepúsculo do poder de Hirohito.
O filme inteiro é essa dilatação, um prolongamento dos
últimos raios do “sol” – com o detalhe de que, num determinado
momento, Hirohito se descobre
gostando de não precisar mais ser deus. Como MacArthur
observa, ele parece uma criança. O imperador,
visto de perto, é um pequeno ser cheio de manias
engraçadas. Os dois encontros do famoso general americano
com Hirohito são preciosos,
representam o ápice de uma construção que começa já
na primeira seqüência do filme: o protagonista é visto
por alguém através de uma fresta. Essa cena se repete
em outras ocasiões, até que chegamos no momento em que
é a vez de MacArthur observar Hirohito pela
fresta da porta, seu rosto tomado por uma curiosidade
reservada. Esse admirador secreto localiza, no filme,
o próprio olhar de Sokurov
em relação a seus personagens tiranos. A decadência
da soberania lhe fascina mais que a qualquer outro cineasta
vivo. E esse fascínio agora rende um filme exuberante,
uma obra que encontra a interseção ideal entre a frieza,
a força e a doce fragilidade de seu protagonista.
Existe um aspecto da estética de Sokurov,
um tipo de densidade da imagem, que magnetiza o olhar
mesmo em seus filmes menos interessantes – um efeito-Sokurov
que sempre encanta, por exemplo, o espectador de primeira
viagem. Mas se houve facilidade no uso desse efeito
em alguns de seus filmes, aqui eles estão adequados
ao conceito e até comedidos – mas não menos marcantes.
Como não se embasbacar com aquele plano do faisão espelhando
os soldados curvados em reverência à saída do imperador
em seu carro? No decorrer dessa cena, o trajeto de Hirohito
até a casa de MacArthur é um verdadeiro
choque estético. O mundo interior do protagonista,
que até ali o filme nos tinha dado a conhecer,
se colide com o exterior devastado pela guerra. Mas
as cenas externas são também mergulhos
a um porão obscuro. Um teto de chumbo permanece
sobre o filme. Além dessa cena e do jantar com MacArthur,
existem dois outros momentos antológicos: o abraço lento
e tímido de Hirohito
em sua mulher, já no final, e o ataque aéreo promovido
por bestas do apocalipse, pesadelo em meio a seu país
incendiado, cena que se desenvolve como uma animação
que estranhamente se assemelha a algumas partes de O
Castelo Animado de Miyazaki.
Dá para incluir também no pacote de antologia
o momento em que Hirohito posa para fotos. Os soldados
americanos exclamam: "Esse cara parece o Charlie
Chaplin!". Uma incrível abordagem do homem
e do mito. Pensávamos que Sokurov deixaria de nos interessar, mas O Sol trouxe à sua obra uma nova potência
e um novo mistério.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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