O ESTADO DO MUNDO
Apichatpong Weerasethakul, Vicente Ferraz, Aiysha Abraham, Wang Bing, Pedro Costa e Chantal Akerman, Portugal, 2007

Encomendas para projetos coletivos em cinema são freqüentemente frustrantes. Costumam ser pequenos projetos de férias aos quais se dedica pouco tempo de pensamento e execução entre um projeto e outro. Mas, pior que as circunstâncias, são as ancoragens temáticas. É muito freqüente que a questão geral do projeto nada tenha a ver ou conjugue pouco com as preocupações de cada cineasta, e é comum ver filmes que ora desviam o percurso do assunto, ora tratam dele, por não saber, da forma mais desajeitada possível. No entanto, a mais terrível das conseqüências desses filmes coletivos aparece quando o tema geral parece sobredeterminar todo o conteúdo presente no episódio. Num filme intitulado O Estado do Mundo, o perigo só aumenta, pois, além de jogar para o terreno dos "grandes temas relevantes" na nossa sociedade, absolutamente tudo pode, de uma forma ou outra, se inscrever sob essa rubrica, do nascimento de um menino no Quênia à velhice em Vladivostok. "Estado do mundo", "estado do mundo"... Qualquer ficção, mesmo uma microficção íntima, um autodocumentário, pode revelar algo sobre "o estado do mundo": quem sabe a relação entre uma objetividade totalmente violentadora e o uso da introspecção como resistência? Ou seja, fugir da redundância nesse caso é extremamente difícil

Ao mesmo tempo, ao menos a partir do modernismo, pede-se que a arte apresente uma interface que fuja do óbvio das facilidades de decifração das obras convencionais, que apresentem, secreta ou abertamente, um outro olhar que adense a relação entre olhar de espectador/conteúdo de obra para além da simples fruição facilitada. Considerando que O Estado do Mundo fez encomenda a artistas que buscam se estabelecer fora do registro convencional – alguns deles, ao contrário, situam-se em terreno francamente experimental, ampliando os limites do cinema e desanimando as sensibilidades com olhos no passado –, é de se imaginar que, ainda que de forma inconfessa, peça-se a esses artista algo de subversão em relação ao tema proposto: um adensamento do olhar que não entregue simplesmente a evocação de um "grande tema" contemporâneo, mas elabore um terreno estético próprio que tenha sua própria consistência e não seja subsumido pela simples menção da agenda político-social-global contemporânea. Em O Estado do Mundo, Apichatpong Weerasethakul, Wang Bing, Pedro Costa e Chantal Akerman conseguem operar com destreza esse limite de operação – como, aliás, era de se esperar.

No mesmo terreno, Vicente Ferraz e Aiysha Abraham falham miseravelmente. Germano, de Ferraz, narra a dificuldade de pescadores cariocas depois que a baía da Guanabara foi poluída, entre outras coisas, pelos grandes navios (no caso um petroleiro do Iraque), destruindo o meio-ambiente e acabando com a atividade econômica da região – e com a profissão desses homens. Mas facilmente o filme se deixa inscrever na solenidade do grande versus pequeno, da grande corporação industrial que destrói o pequeno negócio artesanal, no desrespeito à ecologia, nos desempregados e subempregados do mundo inteiro, a necessidade de resistência. E nada mais. Como é comum num certo cinema convencional que afronta temas políticos, o todo da estética é subsumido por duas ou três palavras de ordem que trocam a incitação ao questionamento pela veemência da redundância. O filme da indiana Aiysha Abraham também identifica com clareza sua submissão mecânica ao projeto: estrangeiros do Nepal subempregados na Índia, fronteiras, injustiças sociais, o homem constrói uma casa mas não tem onde morar. Em registro documentário, o filme apresenta até alguns planos bonitos e inspirados, mas a estrutura não permite vôos maiores que um filmete sem gosto próprio e sem qualquer característica singularizante. Ainda sobre os dois filmes, cabe mencionar: ao passo que o filme de Abraham tem ao menos uma certa eficiência de feitura, o filme de Ferraz, apesar de Paschoal Villaboim e Babu Santana, é filmado de forma bastante constrangedora, em especial quando surge o petroleiro russo, objeto hilário entre encouraçado Potemkin e mamute siberiano.

Luminous People, o filme de Apichatpong Weerasethakul que abre O Estado do Mundo, situa-se entre a fronteira do Laos e de Tailândia, maie exatamente num barco que cruza o rio. Mas ele frustra terrivelmente quem busca um discurso claro em torno do assunto – que seria, óbvio, "as fronteiras são ruins, a união dos povos é boa, respeitando as diferenças" – e entrega vários dados que podemos integrar ou não à questão geral, sem necessariamente nos direcionar a isso: a cerimônia funeral, a ritualística ancestral, uma música sobre o pai, um cantor de hip-hop do Laos, o cansaço dos tripulantes. Mas o que toma a frente são os dados sensoriais: a forte e hipnótica sonoridade do mar revolvido pelo barco, a falta de amparos naturalistas de ambiência para unir som e imagem, a granulação da imagem e a força da cor, tudo isso imprime a Luminous People um caráter afetivo de relato pessoal de uma experiência vivida. A voz over dos personagens, como que surfando sobre as imagens, evoca naturalmente Jaguar de Jean Rouch na forma de sua construção.

Em Brutality Factory, Wang Bing trata da tortura contra os "contra-revolucionários" no nomento de recrudescimento que foi a Revolução Cultural da segunda metade dos anos 60 na China. Vemos, em imagens um tanto banais, a tortura mental e física contra uma mulher que deve denunciar seu marido. No entanto, aos poucos, a percepção muda: pela forma de filmar, pelos enquadramentos que dão mais atenção à instalação no espaço do que efetivamente nos acontecimentos, pela persistência mais no trabalho dos torturadores do que na ação da tortura, o filme varia o ponto de vista e, via título, chama a atenção para o fato de que a brutalidade é uma indústria como qualquer outro, com seus operários, seus espaços, seus procedimentos burocráticos repetitivos. Se algumas imagens ressoam mal pelo aspecto de redundância (o tema da tortura, a sensação de intensidade dada pelo sofrimento da mulher torturada), a forma como Wang Bing filma o espaço, forçosamente de trabalho, é, como em A Oeste dos Trilhos, impressionante. Resta um longo plano final, do presente, daquele espaço sendo demolido, que instaura uma distância histórica entre momentos distintos da história chinesa e mostra como o espaço, que carrega em si todo o traço das populações e mentalidades que nele viveram, é também modificável, deformável, assim como os pensamentos e os tempos.

Tarrafal, de Pedro Costa, lida com habitação, exílio, marginalidade, questão dos estrangeiros na Europa. Quem viu Juventude em Marcha naturalmente vai reconhecer procedimentos semelhantes de enquadramento, iluminação, e mesmo identificar o personagem principal do filme, Ventura, aqui em papel secundário. Mas, vendo com mais cuidado, Tarrafal tem um clima inteiramente diferente e, ainda que o filme evoque a monumental obra anterior (mas quem censuraria Picasso por continuar em outros quadros os procedimentos das Demoiselles d'Avignon?), o ritmo e as situações são muito mais fragmentados – até plano com menos de dez segundos tem! –, e, mais do que a melancolia e a dor de ser obrigado a fazer um movimento que vai redundar na estagnação, aqui vive-se uma ligação com a terra natal em modo mais evocativo e um sentimento mais forte de ação, até de resistência ("O meu corpo só enterram no Tarrafal", diz o protagonista Zé Alberto, notificado pelo governo de Portugal a abandonar sua casa em Fontainhas). Resta que reatar contato com as magníficas construções visuais de Pedro Costa permanece sempre uma das experiências mais intensas no cinema contemporâneo.

Por fim, Chantal Akerman realiza com Tombée de nuit en Shangai um filme que, a partir de uma estratégia incrivelmente fácil porém certeira – registrar as modificações da China contemporânea pelas gigantescas projeções sobre prédios que transformam-se em telas multicoloridas para spots publicitários –, dissolve o geral no particular e o particular no geral. Pois, ainda que o título situe o filme e que acreditemos que aquelas imagens, daquela forma, só podem acontecer na China, o filme fornece, pelos dados de som e imagem, referências que nos fazem saltitar do Japão à Jamaica, da Europa aos Estados Unidos, da música clássica de outros séculos à música pop do século XX, da Mona Lisa às animações hi-tech, revelando a partir de um dispositivo simples toda a superposição de tempos e espaços, comportamentos e culturas típicos dos dias de hoje. O genial do filme de Chantal Akerman é que ela utiliza a duração do plano para simplesmente registrar, sem nos direcionar ao discurso. Se, ao final, o filme corrobora enunciados verdadeiros porém já terrivelmente batidos – o "tudo ao mesmo tempo agora" que a tecnologia permite –, ele deixa apenas a realidade fazê-lo, utilizando a câmera apenas através de sua virtude passiva de registro. Mas o filme faz muito mais que isso: pela persistência da imagem (último plano fixo de dez minutos), somos ao mesmo tempo remetidos a três instâncias diferentes, as imagens que passam ser a realidade da percepção, os prédios que são irrealizados pela imagem (são mais percebidos como tela de inscrição do que por sua materialidade e função primordial) e, em extra-campo total, a realidade sensível da vida das pessoas que ocupam os apartamentos e escritórios desses prédios, detalhes infinitesimais dentro do cenário bigger than life dessa Metropolis (impossível deixar de pensar na imagem da cidade hi-tech do filme de Fritz Lang) saída da ficção e instaurada como realidade sensível. Se o filme de Chantal Akerman é o único que consegue de fato sair do dado local e responder com o vigor que pedem as poderosas palavras "estado" e "mundo" – ou, trocando em miúdos, é o único filme que de fato incorporou de forma completa a demanda do projeto –, ao mesmo tempo ele oferece dados imersivos de percepção que constróem uma experiência que ultrapassa em muito a simples questão da temática geral. E que, portanto, ganha nas duas frentes.


Ruy Gardnier

 

 



O Estado do Mundo e os suspeitos de sempre:

Luminous People, de Apichatpong Weerasethakul


Brutality Factory, de Wang Bing


Tarrafal, de Pedro Costa


Tombée de nuit en Shangai, de Chantal Akerman