O BANHEIRO DO PAPA
Enrique Fernández e César Charlone, El baño del Papa, Uruguai/Brasil, 2007

Em 1988, quando a trama de O Banheiro do Papa se realiza, ainda era possível falar na divisão entre mundos, e neste cenário o povo uruguaio estaria incontornavelmente destinado ao Terceiro. Há realmente algo de intrinsecamente metafórico nesta visita do Papa (este agente do mundo desenvolvido e iluminado) que provoca tanta expectativa na população local, um sonho destinado ao fracasso desde o momento em que surge. Diz-se, em algum momento da parte final do filme, que "o Papa não sabe o mal que fez", mas desconta-se a culpa da ascensão primeiro-mundista sobre a América Latina devastada: o que deu errado no plano de todos os moradores da população de Melo, cidade da fronteira Brasil-Uruguai, foi que todas as dívidas adquiridas para comprar um arsenal de comida a ser vendida aos milhares de fiéis brasileiros que iriam assistir a missa papal ali não puderam nunca ser pagas porque os brasileiros simplesmente não apareceram. Neste pequeno conto moral do fim dos anos 80, os latinos se prejudicam entre si, e não cabe outro papel ao mundo desenvolvido senão passar a mão em nossa cabeça devota e pouco funcional.

O que torna O Banheiro do Papa menos calculista neste retrato do espírito latino é que, por boa parte de sua duração, Enrique Fernández e César Charlone abandonam qualquer discurso identitário de fundo antropológico ou o que quer que seja e se dedicam a encenar estes momentos que ligam as ações dos personagens a seu destino continental. Uma série de situações serão forjadas para que todo o corolário de nossa "alma" seja atestado: um povo pobre mas cheio de esperança, bruto e ignorante, por vezes até infantil em sua crença, mas inegavelmente forte, resistente, trabalhador incansável. O olhar, "de dentro", retira estas características do exotismo. Um paralelo talvez exista entre o que este filme diga a respeito da idéia de popular no Uruguai e o que Dois Filhos de Francisco dizia sobre a mesma coisa no Brasil. Há um espaço próprio de manifestação espontânea do popular, e ele é recuperado com bastante integridade pelos dois filmes: estaremos nas casas apertadas, velhas e feias, nos cômodos sem porta, nos chãos de terra batida, e por mais que se tente dourar a pílula do sonho (efetivamente conquistado no filme de Breno Silveira, mas aqui apenas projetado e nunca concluído), há algo na imanência daquele estado de pobreza e dificuldade que é impossível ignorar e que, visto assim de frente e sem meias-verdades e sets construídos em estúdio, talvez diga muito mais sobre aqueles personagens que a encenação de seus traços conhecidos pelos almanaques.

Difícil, por exemplo, não perceber com um sorriso melancólico a seqüência em que O Banheiro do Papa permite que Beto, seu protagonista, realize na imagem aquilo que a realidade de sua trama torna cada vez mais distante. Trabalhando no contrabando de produtos de consumo entre Melo e uma cidade brasileira da fronteira, Beto precisa pedalar 60 quilômetros a cada viagem, em uma bicicleta já velha e pedindo aposentadoria. Sujeito à perseguição dos milicos que guardam a aduana (e do tipo corrupto e escroque que, evidentemente, não faltaria aqui), Beto sonha com uma motocicleta, e quando Fernández e Charlone lhe proporcionam este pequeno momento de fantasia, não há brilho dourado e filtro laranja na câmera que baste para expressar a alegria do sujeito.

Mas o brilho ensolarado só existe porque todo o resto é nublado, saturação de cinzas sobre cinzas. E assim, O Banheiro do Papa não deixa de corresponder às expectativas da intelligentsia ocidental desenvolvida. Há uma marca estética que os realizadores do Terceiro Mundo usam com propriedade única, e que agora começa a ser importada pelo cinema do Primeiro Mundo (que outra contribuição Alfonso Cuarón poderia dar a Filhos da Esperança, por exemplo, se não aquele seu mais famoso plano-seqüência com câmera na mão pelo meio do tiroteio, como se só no ombro de um latino-americano uma câmera pudesse se alojar com a harmonia certa e justa?). É a esse chamado ao jeito específico que temos de filmar nossas próprias tragédias que O Banheiro do Papa cede. Quando finalmente todo o plano de enriquecimento e saída da pobreza for frustrado, Fernández e Charlone não resistirão à super-dramatização, aos planos sérios e estáticos à Sebastião Salgado, onde os personagens pobres e tristes posam no primeiro plano, mantendo relação direta com a câmera, enquanto o cenário do desencanto se espalha pelo fundo do quadro (no caso, pilhas e pilhas de comida nunca comercializada), enquanto o narrador da televisão, em toda sua miopia social, insiste que o evento levaria o país e a população de Melo a um "futuro glorioso".

E tudo isto talvez não depusesse tanto contra o filme não fosse o fato de que em 1988 todos estes conceitos parecessem perfeitamente aplicáveis – e justos – mas que agora, quando O Banheiro do Papa aparece, já estejam completamente obsoletos. E não há nada no filme de Fernández e Charlone que nos faça pensar num filme de época. A urgência do registro, a montagem ágil, o trabalho de pós-produção que transforma cores, tudo ali nos aponta para o agora. Mas agora, em 2007, O Banheiro do Papa não consegue evitar a sensação de que está vinte anos atrasado.

Rodrigo de Oliveira

 

 





Beto (César Troncoso) vive o sonho impossível: nem todo brilho esperançoso esconde o anacronismo de O Banheiro do Papa