Em 1988, quando a trama de O Banheiro do Papa se realiza, ainda era possível falar na divisão
entre mundos, e neste cenário o povo uruguaio estaria
incontornavelmente
destinado ao Terceiro. Há realmente algo de intrinsecamente metafórico nesta
visita do Papa (este agente do mundo desenvolvido e iluminado) que provoca tanta
expectativa na população local, um sonho destinado ao fracasso desde o momento
em que surge. Diz-se, em algum momento da parte final do filme, que "o
Papa não sabe o mal que fez", mas desconta-se a culpa da ascensão primeiro-mundista
sobre a América Latina devastada: o que deu errado no plano de todos os moradores
da população de Melo, cidade da fronteira Brasil-Uruguai,
foi que todas as dívidas adquiridas para comprar um arsenal de comida a ser vendida
aos milhares de fiéis brasileiros que iriam assistir a missa papal ali
não puderam nunca ser pagas porque os brasileiros simplesmente não apareceram.
Neste pequeno conto moral do fim dos anos 80, os latinos se prejudicam entre
si, e não cabe outro papel ao mundo desenvolvido senão passar a mão em nossa
cabeça devota e pouco funcional.
O que torna O Banheiro
do Papa menos calculista neste retrato do espírito latino é que, por boa
parte de sua duração, Enrique Fernández e César Charlone abandonam qualquer discurso
identitário de fundo antropológico ou o que quer que seja e se dedicam a encenar
estes momentos que ligam as ações dos personagens a seu destino continental.
Uma série de situações serão forjadas para que todo o corolário de
nossa "alma" seja atestado: um povo pobre mas cheio de esperança, bruto e ignorante,
por vezes até infantil em sua crença, mas inegavelmente forte, resistente, trabalhador
incansável. O olhar, "de dentro", retira estas
características do exotismo. Um paralelo talvez exista entre o que este filme
diga a respeito da idéia de popular no Uruguai e o que Dois Filhos de Francisco dizia sobre a mesma coisa no Brasil. Há um
espaço próprio de manifestação espontânea do popular, e ele é recuperado com
bastante integridade pelos dois filmes: estaremos nas casas apertadas, velhas
e
feias, nos cômodos sem porta, nos chãos de terra batida, e por mais que se tente
dourar a pílula do sonho (efetivamente conquistado no filme de Breno Silveira,
mas aqui apenas projetado e nunca concluído), há algo na imanência daquele estado
de pobreza e dificuldade que é impossível ignorar e que, visto assim de frente
e sem meias-verdades e sets construídos em estúdio, talvez diga muito mais sobre
aqueles personagens que a encenação de seus traços conhecidos
pelos almanaques.
Difícil, por exemplo, não perceber com um sorriso
melancólico a seqüência em que O Banheiro
do Papa permite que Beto, seu protagonista, realize na imagem aquilo que
a realidade de sua trama torna cada vez mais distante. Trabalhando no contrabando
de produtos de consumo entre Melo e uma cidade brasileira da fronteira, Beto
precisa pedalar 60 quilômetros a cada viagem, em uma bicicleta já velha e pedindo
aposentadoria. Sujeito à perseguição dos milicos que guardam a aduana (e do tipo
corrupto e escroque que, evidentemente, não faltaria aqui), Beto sonha com uma
motocicleta, e quando Fernández e Charlone lhe proporcionam este pequeno momento
de fantasia, não há brilho dourado e filtro laranja na câmera que baste para
expressar a alegria do sujeito.
Mas o brilho ensolarado só existe porque todo o resto é nublado, saturação de
cinzas sobre cinzas. E assim, O Banheiro do Papa não deixa de corresponder às expectativas da intelligentsia ocidental desenvolvida.
Há uma marca estética que os realizadores do Terceiro Mundo usam com
propriedade única, e que agora começa a ser importada pelo cinema do Primeiro
Mundo (que outra contribuição Alfonso Cuarón poderia dar a Filhos da Esperança, por exemplo, se não aquele seu mais famoso
plano-seqüência com câmera na mão pelo meio do tiroteio, como se só no ombro
de
um latino-americano uma câmera pudesse se alojar com a harmonia certa e justa?). É a
esse chamado ao jeito específico que temos de filmar nossas próprias
tragédias que O Banheiro do Papa cede.
Quando finalmente todo o plano de enriquecimento e saída da pobreza for frustrado,
Fernández e Charlone não resistirão à super-dramatização, aos planos
sérios e estáticos à Sebastião Salgado, onde os personagens pobres e tristes
posam no primeiro plano, mantendo relação direta
com a câmera, enquanto o cenário do desencanto se espalha pelo fundo do quadro
(no caso, pilhas e pilhas de comida nunca comercializada), enquanto o narrador
da televisão, em toda sua miopia social, insiste que o evento levaria o país
e
a população de Melo a um "futuro glorioso".
E tudo isto talvez não depusesse tanto contra o filme não fosse o fato de que
em 1988 todos estes conceitos parecessem perfeitamente
aplicáveis – e justos – mas que agora, quando O Banheiro do Papa aparece, já estejam completamente obsoletos. E
não há nada no filme de Fernández e Charlone que nos faça pensar num filme de época.
A urgência do registro, a montagem ágil, o trabalho de pós-produção que transforma
cores, tudo ali nos aponta para o agora. Mas agora, em 2007, O Banheiro do Papa não consegue evitar
a
sensação de que está vinte anos atrasado.
Rodrigo de Oliveira
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