nascido e criado
Pablo Trapero, Nacido y criado, Argentina/ Itália, 2006

A estética pessoal de Pablo Trapero foi sempre, em sua curta carreira, marcada por um delicado equilíbrio entre personagem e ambiente, advinda de uma afetuosa relação entre o protagonista e o mundo à sua volta. Ainda que seus filmes contivessem narrativas e histórias desenvolvidas, era o ato de colocar um, ou mais, personagens no mundo e observar, com carinho, o modo como esses personagens agem diante dele, que se colocava em primeiro plano. O relativo fracasso de Nascido e Criado talvez venha dessa alteração, ou mesmo inversão, de forças, para a qual o cineasta claramente não estava preparado. Existe ainda, aqui, um personagem jogado no mundo e aprendendo a se relacionar com ele (o título não poderia ser mais explicito nesse sentido), mas o filme nunca consegue se desligar do drama pessoal do protagonista, transformando-o no elemento principal. E, ao tentar desenvolver o drama através de cacoetes de profundidade dramática, revelações de roteiro, relações de montagem, o cineasta não consegue um resultado além do razoável.

Pois, se, por exemplo, há realmente uma problematização da idéia de família perfeita no início do filme, ou mesmo se a cena de sexo entre o protagonista e sua esposa carrega uma boa dose de doçura e beleza, são os rostos felizes de pai, mãe e filha, a casa limpa e branca, o café-da-manhã leite e frutas na mesa (como num ensaio publicitário) que irão se destacar. Não porque o cineasta não se interesse por corpos palpáveis e reais, mas porque esse interesse estará sempre em segundo plano diante de uma narrativa que precisa andar, sempre, e calculadamente. Assim, o drama da tragédia familiar que se seguirá a este prólogo será tão mais enfatizado quão maior for o amor e a felicidade daquelas pessoas. Nascido e Criado existe sempre dentro da contradição entre os lugares-comuns que Trapero usa para valorizar sua narrativa e seu talento natural para filmar cenas que não apenas fogem, mas se opõem a esse lugar-comum. Entretanto, como não há ironia alguma em nenhuma das duas operações, nem consciência de sua disparidade, são poucas as seqüências nas quais o talento não é engolido pelas fáceis soluções.

Portanto, quando Santiago se muda para a Patagônia – o fim do mundo, quase literalmente - disposto a superar o acidente de carro que possivelmente matou sua mulher e filha, quase nunca entraremos realmente nas profundezas dessa dor, pois os dados de tristeza que o filme coloca não fogem daqueles que esperamos em tal situação. Passar os dias em estado de apatia, vomitar de noite, sentir-se perseguido quando anda de carro, ter pequenos e incontroláveis surtos, olhar triste para baixo ou para o lado quando alguém menciona a existência de uma família. Nascido e Criado caminha lentamente nessa sucessão de lugares-comuns (há, no mínimo, uma seqüência de filme para cada um desses elementos), e, não fosse o talento de Trapero para encontrar algo real não por trás, mas juntamente a esses indícios, o interesse do filme seria ainda mais reduzido.

Mas o talento existe, e essa tristeza pré-fabricada em dramas de segunda categoria sobreviverá junto a pequenos momentos de alegria, olhares de afetividade, relações de companheirismo, e a mão-pesada da tragédia conseguirá conviver com a leveza dos relacionamentos pessoais. Existe, no olhar do diretor, uma vontade de reconhecer o que resta de vida nos caminhos não apenas de Santiago, mas de todos os habitantes de uma cidade tão fria quanto vazia. Por isso, quando não está preocupado em mostrar como seu protagonista ainda sofre, são os diversos momentos de bebedeiras, as trocas de olhares, as peças e brincadeiras e os comentários cotidianos (enfim, tudo isso que nos acostumamos a chamar de amizade) que aparecem na tela, com admirável sinceridade, conduzidos pelas músicas típicas da região – melodiosas e “para cima” - que volta e meia surgem, em momentos banais.

Para isso, contribui a capacidade de Trapero de filmar o ambiente da Patagônia, suas folhas secas, as estradas ruins, o gelo permanente, o vazio das ruas e os bares cheios. Não se trata apenas de reconhecer nessas características um equivalente ao estado de espírito desolado do protagonista, mas de perceber nelas, também, a capacidade de reverter este estado. Pois, se o frio pode ser considerado o “clima” perfeito para alguém que quer se distanciar do mundo e ficar sozinho, é também por causa dele que os companheiros de Santiago instalam-se nos bares, acolhem-se uns aos outros, unem-se, afinal. E se as paisagens secas poderiam ser sinônimos da falta de sentimento, serão elas, também, o local no qual o protagonista irá renascer e recriar-se. Esta ambigüidade com a qual Trapero filma a relação do homem com o ambiente, infelizmente, não existe no restante do filme.

Assim, belos momentos são interrompidos para que o cineasta possa fazer valer seu estudo sobre o sofrimento humano. Um triângulo amoroso é estragado por uma explosão de raiva de Santiago quando tentam tirar sua camisa e, no instante seguinte, descobrimos em seu corpo uma série de cicatrizes, depois de mais de uma hora de filme. Uma cena de bebedeira entre os amigos é seguida pela morte da mulher de um deles, como se o diretor precisasse frisar que todos os prazeres têm de conter uma grande parcela de culpa. É assim que a vida em Nascido e Criado – que o cineasta tanto sabe filmar – vai sendo minada em função de uma dramaturgia sem muito interesse, construída em cima desses calculados jogos de roteiro e montagem que apenas nos distanciam do personagem.

Pois se todas as seqüências deste último filme de Trapero fossem como a última, onde um homem e uma mulher se reencontram, às lágrimas, e nada mais precisa ser dito, onde, afinal, o cineasta transmite o sentimento captando o indizível, Nascido e Criado seria um belo filme. Mas, infelizmente, Trapero quer sempre dizer muito, dizer demais e, na maior parte das vezes, não consegue dizer nada além daquilo que, de antemão, já sabemos.

Leonardo Levis

 

 








a relação entre homem e ambiente filmada por Trapero...
é suplantada pelos lugares-comuns de seu filme.