Dentre
os diretores da nouvelle vague, sabe-se facilmente
quem é aquele cuja estética mais se assimila
à visão de mundo de Honoré de Balzac.
Pela precisão no comentário social, pelo
retrato distanciado e arguto, atingindo por vezes a
fria caricatura reveladora, o prêmio vai facilmente
a Claude Chabrol. Em se tratando de Jacques Rivette,
somos mais tentados a observar a sensualidade com a
qual a luz se instala, o envolvente comportamento dos
atores sempre irrepreensível , a
permanente sensação de instalação
no espaço, o gosto sempre presente de uma afetividade
do espaço, e a atuação e a intriga
vividos como um jogo. O que então Rivette busca
encontrar em Balzac, a partir de quem já fizera
um de seus filmes mais impressionantes (A Bela Intrigante)?
Certamente não é a idéia de um
retrato da vida parisiense, de ontem como de hoje, tampouco
a idéia de comentário social que, se não
é inexistente em seus filmes, ocupa um papel
bastante restrito, jamais servindo como mola propulsora.
Não Toque no Machado, apropriando-se de
A Duquesa de Langeais, tem acima de tudo uma
prioridade de adaptação: o registro impiedoso
de uma guerra vivida como jogo, tratando-se o jogo das
reproduções individuais de comportamentos
de classe ou casta (o que é extremamente balzaquiano)
mas também das próprias convenções
sociais vistas como reprodução do mesmo
procedimento em situações diferentes.
Trabalho do negativo, da crítica, num cineasta
em que tudo parece gritar positividade? Como Manoel
de Oliveira, Jacques Rivette sabe tirar proveito, charme
e gozo mesmo de procedimentos que se trata de perspectivar
como automáticos, históricos, passados,
e fazer com que mesmo um certo olhar de fora aumente
a intensidade da ação dramática.
Crucial no processo é o abrir-se e o fechar-se
das cortinas. Não Toque no Machado respeita
a ordem não-cronológica dos acontecimentos
do livro de Balzac, mas cria uma rima inexistente em
duas situações da trama: é uma
cortina que se abre e se fecha para permitir uma última
conversa irreconciliável entre os dois amantes,
e uma outra que acaba sendo mesma cortina
se abre para que a câmera penetre nos aposentos
da aristocracia do Faubourg Saint-Germain. O que, no
mínimo, permite a interpolação:
seria a alta sociedade parisiense um claustro, estaria
o mundano tão imbricado com o religioso? O que
definitivamente o filme faz é nos instalar na
ficção considerando aqueles dois lugares
como claros regimes de visibilidades e invisibilidades,
que a esse respeito funcionam da mesma forma
não à toa, logo depois que a Duquesa de
Langeais puxa conversa pela primeira vez com o General
de Montriveau, dois olhares fofoqueiros aparecem numa
sala reservada para observar a conversa dos dois. Nas
duas situações, ainda que as respostas
sejam diferentes, o que domina é o reino das
aparências, e os personagens obedecem a um jogo
preestabelecido, inclusive em suas pequenas subversões
e deslizes.
Nesse seio, o que poderia advir quando surge um interesse
inesperado de uma duquesa que deseja exercer o jogo
da sedução por um homem que, nunca tendo
participado dos jogos de sociedade, encara, bronco do
jeito que é, com literalidade aquilo que era
para ser fruído unicamente pelas entrelinhas?
No caso de uma saída social impossível
afinal a duquesa é casada , trata-se
de uma situação que só põe
os dois a perder. Uma guerra para a qual os dois têm
uma enorme potência ofensiva, mas uma total ausência
de retaguarda. Sendo cada um inexperiente a seu modo
nos jogos do amor, ambos alternam em situações
de ridículo e enlevo, por vezes de um instante
a outro. Terreno pantanoso em que a fragilidade de um
é a habilidade do outro, a duquesa e o general
vão se destruir mutuamente sem mesmo desejar
chegar a tal ponto. Aí, uma operação
decisiva da parte de Rivette: se Balzac busca fazer
da Duquesa de Langeais a expressão mais exata
de uma aristocracia em que até os vícios
são cheios de pequenez e portanto nada admiráveis,
o cineasta, à maneira dos ultra-românticos,
acredita naquela história da amor impossível,
realizável apenas no plano das idéias,
ou consagrado táo-somente pela morte. Nova adesão
ao terreno de Oliveira, que durante um bom tempo (Amor
de Perdição, Francisca, Le
Soulier de satin) só tratou disso. Em seu
duplo registro de obra simultaneamante distante e próxima,
distanciada da trama por operações de
mise-en-scène e ao mesmo tempo próxima
dela pela intensidade dos sofrimentos, encontramos no
máximo A Carta (La Lettre, 1999)
como principal paradigma.
"Águia contra águia", declara
o General de Montriveau quando percebe que a duquesa
não vai se render a seus encantos. Se a primeira
parte do filme pode ser compreendida como uma primeira
etapa de reconhecimento e de negociações,
a segunda é definitivamente um conflito de desejos
e humilhações. Além de um ritual
de visibilidades, esse processo inteiro é uma
melodia, o arguto princípio de que, considerados
dois temas unidos, o que segue é um desenvolvimento
lógico e harmônico da união uma
vez estabelecida. E Jacques Rivette é um grande
ritmista, modulando o tempo das situações
e as elipses com cartelas que, mais que dizer o tempo
transcorrido entre dois momentos, imprime uma característica
de necessidade, não sem um certo humor advindo
da sensação de automatismo que daí
decorre.
Ao se falar de ritmo, é natural que se fale do
ritmo de atuação do casal de protagonistas,
interpretado por Jeanne Balibar e Guillaume Depardieu.
Mesmo porque Não Toque no Machado é
um caso raro de filme que é pensado primeiro
para ter os dois contracenando, e em seguida para se
ter uma história. O que é decisivo na
forma como os dois atuam juntos é a total incongruência
dos processos, que responde em termos dramáticos
de forma inteiramente harmônica ao descompasso
entre dois mundos, duas sensibilidades, duas pessoas
que não partilham nenhum laço comum. Aos
gestos largos, teatrais e inteiramente calculados de
Jeanne Balibar correspondem movimentos bruscos, intuitivos,
ensimesmados de Guillaume Depardieu. Curiosamente, no
desequilíbrio, a união funciona
em termos cênicos, pois no dramático a
separação será inevitável.
"Não toque no machado" é um
conselho demandando prudência. Romper limites,
afinal, sempre tem um preço, e para Rivette isso
fatalmente significa complôs, ligações
misteriosas, sociedades subterrâneas. No entanto,
requisitar o complô também implica em tocar
o Machado, em responder com uma situação
extrema a um gesto extremo. Nessa guerra, pouco se cuidou
de proteger os flancos antes de atacar, e a partir de
um momento seria inevitável que as conseqüências
fossem fatais. A questão é qe mesmo a
declaração de guerra, o limite extremo,
faz parte das regras de visibilidade, das necessidades
de honra que uma posição social obriga.
O filme só dá essa guinada no final, quando
o "vencedor" ouve que deve lembrar-se do amor
"como um poema", como um instante de beleza
vivido há algum tempo e depois rememorado apenas
como memória. O olhar desse "vitorioso"
revela tudo: há coisas que se controla nesse
mundo, há coisas que não. E por mais que
o poder aparente ter forças, os valores têm
mais poder do que qualquer indivíduo, por mais
forte que seja. E nesse leve e destruidor desnível
entre poderes Rivette constrói seu filme, tão
impiedoso quanto apaixonante. E trágico, como
os amores impossíveis.
Ruy Gardnier
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