NÃO TOQUE NO MACHADO
Jacques Rivette, Ne touchez pas à la hache, França/Itália, 2007

Dentre os diretores da nouvelle vague, sabe-se facilmente quem é aquele cuja estética mais se assimila à visão de mundo de Honoré de Balzac. Pela precisão no comentário social, pelo retrato distanciado e arguto, atingindo por vezes a fria caricatura reveladora, o prêmio vai facilmente a Claude Chabrol. Em se tratando de Jacques Rivette, somos mais tentados a observar a sensualidade com a qual a luz se instala, o envolvente comportamento dos atores – sempre irrepreensível –, a permanente sensação de instalação no espaço, o gosto sempre presente de uma afetividade do espaço, e a atuação e a intriga vividos como um jogo. O que então Rivette busca encontrar em Balzac, a partir de quem já fizera um de seus filmes mais impressionantes (A Bela Intrigante)? Certamente não é a idéia de um retrato da vida parisiense, de ontem como de hoje, tampouco a idéia de comentário social que, se não é inexistente em seus filmes, ocupa um papel bastante restrito, jamais servindo como mola propulsora. Não Toque no Machado, apropriando-se de A Duquesa de Langeais, tem acima de tudo uma prioridade de adaptação: o registro impiedoso de uma guerra vivida como jogo, tratando-se o jogo das reproduções individuais de comportamentos de classe ou casta (o que é extremamente balzaquiano) mas também das próprias convenções sociais vistas como reprodução do mesmo procedimento em situações diferentes. Trabalho do negativo, da crítica, num cineasta em que tudo parece gritar positividade? Como Manoel de Oliveira, Jacques Rivette sabe tirar proveito, charme e gozo mesmo de procedimentos que se trata de perspectivar como automáticos, históricos, passados, e fazer com que mesmo um certo olhar de fora aumente a intensidade da ação dramática.

Crucial no processo é o abrir-se e o fechar-se das cortinas. Não Toque no Machado respeita a ordem não-cronológica dos acontecimentos do livro de Balzac, mas cria uma rima inexistente em duas situações da trama: é uma cortina que se abre e se fecha para permitir uma última conversa irreconciliável entre os dois amantes, e uma outra – que acaba sendo mesma – cortina se abre para que a câmera penetre nos aposentos da aristocracia do Faubourg Saint-Germain. O que, no mínimo, permite a interpolação: seria a alta sociedade parisiense um claustro, estaria o mundano tão imbricado com o religioso? O que definitivamente o filme faz é nos instalar na ficção considerando aqueles dois lugares como claros regimes de visibilidades e invisibilidades, que a esse respeito funcionam da mesma forma – não à toa, logo depois que a Duquesa de Langeais puxa conversa pela primeira vez com o General de Montriveau, dois olhares fofoqueiros aparecem numa sala reservada para observar a conversa dos dois. Nas duas situações, ainda que as respostas sejam diferentes, o que domina é o reino das aparências, e os personagens obedecem a um jogo preestabelecido, inclusive em suas pequenas subversões e deslizes.

Nesse seio, o que poderia advir quando surge um interesse inesperado de uma duquesa que deseja exercer o jogo da sedução por um homem que, nunca tendo participado dos jogos de sociedade, encara, bronco do jeito que é, com literalidade aquilo que era para ser fruído unicamente pelas entrelinhas? No caso de uma saída social impossível – afinal a duquesa é casada –, trata-se de uma situação que só põe os dois a perder. Uma guerra para a qual os dois têm uma enorme potência ofensiva, mas uma total ausência de retaguarda. Sendo cada um inexperiente a seu modo nos jogos do amor, ambos alternam em situações de ridículo e enlevo, por vezes de um instante a outro. Terreno pantanoso em que a fragilidade de um é a habilidade do outro, a duquesa e o general vão se destruir mutuamente sem mesmo desejar chegar a tal ponto. Aí, uma operação decisiva da parte de Rivette: se Balzac busca fazer da Duquesa de Langeais a expressão mais exata de uma aristocracia em que até os vícios são cheios de pequenez e portanto nada admiráveis, o cineasta, à maneira dos ultra-românticos, acredita naquela história da amor impossível, realizável apenas no plano das idéias, ou consagrado táo-somente pela morte. Nova adesão ao terreno de Oliveira, que durante um bom tempo (Amor de Perdição, Francisca, Le Soulier de satin) só tratou disso. Em seu duplo registro de obra simultaneamante distante e próxima, distanciada da trama por operações de mise-en-scène e ao mesmo tempo próxima dela pela intensidade dos sofrimentos, encontramos no máximo A Carta (La Lettre, 1999) como principal paradigma.

"Águia contra águia", declara o General de Montriveau quando percebe que a duquesa não vai se render a seus encantos. Se a primeira parte do filme pode ser compreendida como uma primeira etapa de reconhecimento e de negociações, a segunda é definitivamente um conflito de desejos e humilhações. Além de um ritual de visibilidades, esse processo inteiro é uma melodia, o arguto princípio de que, considerados dois temas unidos, o que segue é um desenvolvimento lógico e harmônico da união uma vez estabelecida. E Jacques Rivette é um grande ritmista, modulando o tempo das situações e as elipses com cartelas que, mais que dizer o tempo transcorrido entre dois momentos, imprime uma característica de necessidade, não sem um certo humor advindo da sensação de automatismo que daí decorre.

Ao se falar de ritmo, é natural que se fale do ritmo de atuação do casal de protagonistas, interpretado por Jeanne Balibar e Guillaume Depardieu. Mesmo porque Não Toque no Machado é um caso raro de filme que é pensado primeiro para ter os dois contracenando, e em seguida para se ter uma história. O que é decisivo na forma como os dois atuam juntos é a total incongruência dos processos, que responde em termos dramáticos de forma inteiramente harmônica ao descompasso entre dois mundos, duas sensibilidades, duas pessoas que não partilham nenhum laço comum. Aos gestos largos, teatrais e inteiramente calculados de Jeanne Balibar correspondem movimentos bruscos, intuitivos, ensimesmados de Guillaume Depardieu. Curiosamente, no desequilíbrio, a união funciona – em termos cênicos, pois no dramático a separação será inevitável.

"Não toque no machado" é um conselho demandando prudência. Romper limites, afinal, sempre tem um preço, e para Rivette isso fatalmente significa complôs, ligações misteriosas, sociedades subterrâneas. No entanto, requisitar o complô também implica em tocar o Machado, em responder com uma situação extrema a um gesto extremo. Nessa guerra, pouco se cuidou de proteger os flancos antes de atacar, e a partir de um momento seria inevitável que as conseqüências fossem fatais. A questão é qe mesmo a declaração de guerra, o limite extremo, faz parte das regras de visibilidade, das necessidades de honra que uma posição social obriga. O filme só dá essa guinada no final, quando o "vencedor" ouve que deve lembrar-se do amor "como um poema", como um instante de beleza vivido há algum tempo e depois rememorado apenas como memória. O olhar desse "vitorioso" revela tudo: há coisas que se controla nesse mundo, há coisas que não. E por mais que o poder aparente ter forças, os valores têm mais poder do que qualquer indivíduo, por mais forte que seja. E nesse leve e destruidor desnível entre poderes Rivette constrói seu filme, tão impiedoso quanto apaixonante. E trágico, como os amores impossíveis.

Ruy Gardnier