Se
há algo que deslumbra e evoca a curiosidade a
respeito do cinema de Hong Sang-Soo é em que
medida ele faz sempre o mesmo filme: mesmo andamento
de vida cotidiana, mesma atenção aos pequenos
detalhes determinantes, mesmo uso dos dispositivos psicológicos,
mesmas cenas de sexo, bebedeira e conversa na rua. E,
mais caracteristicamente pois isso afirma um efeito
de assinatura totalmente identificável pela singularidade
do procedimento , o efeito de espelho que se dá
entre dois momentos distintos do filme. É cativante
a maneira como ele reconstrói o tempo inteiro
o mesmo imaginário de personagens de 30 e poucos
anos, em geral trabalhando com cinema, que por algum
motivo ou outro entram em fluxos obsessivos de desejo
que, filmados pela lente ao mesmo tempo terna e analítica
de Hong, revelam uma clarividência e um apego
ao comportamento humano raramente atingidos pelo cinema.
Há nele um misto de crueldade à maneira
de Philip Roth mas ao mesmo tempo um carinho e uma densidade
de personagem que lembra constantemente os protagonistas
rohmerianos.
Mulher na Praia começa como começa
qualquer filme de Hong, com um encontro casual. Um diretor
de cinema acha que é momento de arrematar o roteiro
para seu novo filme e chama um amigo, co-roteirista,
para viajar com ele a uma cidadezinha balneária
e lá concentrar-se no projeto. O amigo, já
tendo prometido à namorada passar os dias seguintes
com ela, sugere que a moça acompanhe os dois.
Como não poderia deixar de ser, surge uma atração
entre a moça e o diretor que vai pôr em
xeque questões de amizade, respeito, desejo,
obsessão, insegurança e tudo isso que
vem junto com as problemáticas de atração
e repulsa que dizem respeito ao homem civilizado. Conversas
tendenciosas, joguinhos egoístas, pequenas mentiras,
despistes oportunos: é mais nas delicadas minúcias
que se percebe a prolífica criatividade de Hong
Sang-Soo do que na intriga, que é sempre muito
comum, banal até. Naturalmente, haverá
uma história de amor entre homem e mulher que
acabaram de se conhecer, e como sempre no cinema de
Hong ao menos até agora , haverá um
novo acaso e a oportunidade para que a narrativa faça
com que o diretor de cinema tente reencontrar a mesma
figura feminina na pele de outra mulher. Inédito
no cinema de Hong é que essas duas mulheres finalmente
vão ter direito a um face a face que exclui
ridiculariza, na verdade a obsessão e a velhacaria
masculina.
A música singela que começa o filme dá
bem conta do registro de tom em que o filme se instala.
Toques melodiosos de piano, nada muito forte ou carregado,
tudo muito simples e doce, como a acompanhar o doce
desenrolar cotidiano das atividades triviais. Mulher
da Praia depende desse clima instalado, porque é
nessa naturalidade das coisas acontecendo meio sem querer,
meio como fruto das circunstâncias, que o filme
se oferece à fruição. Não
à toa, é comum ver pequenos dados de localização,
clima ou encontros fortuitos recebendo uma força
dramática incomum: o balançar das árvores
pelo vento, uma concha encontrada na praia, as fachadas
das construções, a linha do mar em profundidade,
um cachorro passeando com seus donos. Em sua estética
característica, Hong Sang-Soo dá conta
de duas imagens recorrendo sempre a seus elegantes planos
de conjunto que enfatizam o tempo inteiro a localização
dos personagens dentro do espaço e ao mesmo tempo
conferem um forte senso de presença do espaço
habitado no imaginário do espectador (o velho
truque do plano contínuo, aqui usado à
perfeição). Como ferramenta de linguagem
achado por Hong desde Conto de Cinema, o zoom
e os movimentos algo bruscos de câmera exercem
menos uma ênfase manipuladora na percepção
do espectador do que um mecanismo maroto de não
atribuir tanta solenidade à força do enquadramento.
Pois, ainda que o plano seja fixo na maioria das vezes,
existe toda uma exuberância de movimentos dos
personagens dentro do plano que atribuem dinamismo e
vivacidade às imagens. Hong Sang-Soo é
um desses raros cineastas, como Renoir, como Weerasethakul,
como Hou, que compõem com o mundo, mais
entrando no ritmo das coisas e das pessoas do que atribuindo
um ritmo e uma estética toda pronta a qualquer
realidade possível. O que se obtém é
uma forma talvez menos visível e identificável
do que essas imagens de grife, mas é simplesmente
porque há tanta fluidez e sintonia na relação
entre a câmera e aquilo que ela filma que todo
o esforço de manufatura fica quase invisível.
Invisibilidade a que, com muito custo, chegaram mestres
como Lubitsch, Mizoguchi ou Buñuel.
"Apesar da dificuldade em ser humano, não precisamos
nos transformar em monstros". Esse é o estribilho
do filme talvez mais belo de Hong Sang-Soo, Turning
Gate, mas que aqui também cabe como uma luva.
Pois a dimensão que mais interessa Hong Sang-Soo
é certamente uma dimensão moral que se
instala entre o querer e o fazer, entre o agir pensando
em si e ignorando os outros e o agir respeitando a convivência.
Com um adendo: o quanto o comportamento ้ guiado por
movimentos instintivos ou decididos, quanto de nossa
vida acontece por id้ia fixa ou por escolha. Tudo isso,
como não poderia deixar de ser, sem nenhuma severidade,
sem nenhum senso de fatalismo, apenas como a doce-amarga
comédia de nossos hábitos cotidianos que
a musiquinha de realejo tanto evoca. Pois, se há
uma genialidade especialmente adorável no cinema
de Hong, é essa forma irreverente (tomada no
sentido literal, "sem reverência") de inscrever
tudo que acontece no mundo como seguindo, parafraseando
Galvão dos Novos Baianos, a "lei natural dos
encontros", a sustentabilíssima leveza do ser,
o instinto e o comportamento humano como comédia
de enganos. Mulher na Praia confirma e renova
o vigor de Hong Sang-Soo como um dos mais decisivos
cineastas contemporâneos.
Ruy Gardnier
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