MULHER NA PRAIA
Hong Sang-Soo, Haebyonui yoin,
Coréia do Sul, 2006

Se há algo que deslumbra e evoca a curiosidade a respeito do cinema de Hong Sang-Soo é em que medida ele faz sempre o mesmo filme: mesmo andamento de vida cotidiana, mesma atenção aos pequenos detalhes determinantes, mesmo uso dos dispositivos psicológicos, mesmas cenas de sexo, bebedeira e conversa na rua. E, mais caracteristicamente – pois isso afirma um efeito de assinatura totalmente identificável pela singularidade do procedimento –, o efeito de espelho que se dá entre dois momentos distintos do filme. É cativante a maneira como ele reconstrói o tempo inteiro o mesmo imaginário de personagens de 30 e poucos anos, em geral trabalhando com cinema, que por algum motivo ou outro entram em fluxos obsessivos de desejo que, filmados pela lente ao mesmo tempo terna e analítica de Hong, revelam uma clarividência e um apego ao comportamento humano raramente atingidos pelo cinema. Há nele um misto de crueldade à maneira de Philip Roth mas ao mesmo tempo um carinho e uma densidade de personagem que lembra constantemente os protagonistas rohmerianos.

Mulher na Praia começa como começa qualquer filme de Hong, com um encontro casual. Um diretor de cinema acha que é momento de arrematar o roteiro para seu novo filme e chama um amigo, co-roteirista, para viajar com ele a uma cidadezinha balneária e lá concentrar-se no projeto. O amigo, já tendo prometido à namorada passar os dias seguintes com ela, sugere que a moça acompanhe os dois. Como não poderia deixar de ser, surge uma atração entre a moça e o diretor que vai pôr em xeque questões de amizade, respeito, desejo, obsessão, insegurança e tudo isso que vem junto com as problemáticas de atração e repulsa que dizem respeito ao homem civilizado. Conversas tendenciosas, joguinhos egoístas, pequenas mentiras, despistes oportunos: é mais nas delicadas minúcias que se percebe a prolífica criatividade de Hong Sang-Soo do que na intriga, que é sempre muito comum, banal até. Naturalmente, haverá uma história de amor entre homem e mulher que acabaram de se conhecer, e como sempre no cinema de Hong – ao menos até agora –, haverá um novo acaso e a oportunidade para que a narrativa faça com que o diretor de cinema tente reencontrar a mesma figura feminina na pele de outra mulher. Inédito no cinema de Hong é que essas duas mulheres finalmente vão ter direito a um face a face que exclui – ridiculariza, na verdade – a obsessão e a velhacaria masculina.

A música singela que começa o filme dá bem conta do registro de tom em que o filme se instala. Toques melodiosos de piano, nada muito forte ou carregado, tudo muito simples e doce, como a acompanhar o doce desenrolar cotidiano das atividades triviais. Mulher da Praia depende desse clima instalado, porque é nessa naturalidade das coisas acontecendo meio sem querer, meio como fruto das circunstâncias, que o filme se oferece à fruição. Não à toa, é comum ver pequenos dados de localização, clima ou encontros fortuitos recebendo uma força dramática incomum: o balançar das árvores pelo vento, uma concha encontrada na praia, as fachadas das construções, a linha do mar em profundidade, um cachorro passeando com seus donos. Em sua estética característica, Hong Sang-Soo dá conta de duas imagens recorrendo sempre a seus elegantes planos de conjunto que enfatizam o tempo inteiro a localização dos personagens dentro do espaço e ao mesmo tempo conferem um forte senso de presença do espaço habitado no imaginário do espectador (o velho truque do plano contínuo, aqui usado à perfeição). Como ferramenta de linguagem achado por Hong desde Conto de Cinema, o zoom e os movimentos algo bruscos de câmera exercem menos uma ênfase manipuladora na percepção do espectador do que um mecanismo maroto de não atribuir tanta solenidade à força do enquadramento. Pois, ainda que o plano seja fixo na maioria das vezes, existe toda uma exuberância de movimentos dos personagens dentro do plano que atribuem dinamismo e vivacidade às imagens. Hong Sang-Soo é um desses raros cineastas, como Renoir, como Weerasethakul, como Hou, que compõem com o mundo, mais entrando no ritmo das coisas e das pessoas do que atribuindo um ritmo e uma estética toda pronta a qualquer realidade possível. O que se obtém é uma forma talvez menos visível e identificável do que essas imagens de grife, mas é simplesmente porque há tanta fluidez e sintonia na relação entre a câmera e aquilo que ela filma que todo o esforço de manufatura fica quase invisível. Invisibilidade a que, com muito custo, chegaram mestres como Lubitsch, Mizoguchi ou Buñuel.

"Apesar da dificuldade em ser humano, não precisamos nos transformar em monstros". Esse é o estribilho do filme talvez mais belo de Hong Sang-Soo, Turning Gate, mas que aqui também cabe como uma luva. Pois a dimensão que mais interessa Hong Sang-Soo é certamente uma dimensão moral que se instala entre o querer e o fazer, entre o agir pensando em si e ignorando os outros e o agir respeitando a convivência. Com um adendo: o quanto o comportamento ้ guiado por movimentos instintivos ou decididos, quanto de nossa vida acontece por id้ia fixa ou por escolha. Tudo isso, como não poderia deixar de ser, sem nenhuma severidade, sem nenhum senso de fatalismo, apenas como a doce-amarga comédia de nossos hábitos cotidianos que a musiquinha de realejo tanto evoca. Pois, se há uma genialidade especialmente adorável no cinema de Hong, é essa forma irreverente (tomada no sentido literal, "sem reverência") de inscrever tudo que acontece no mundo como seguindo, parafraseando Galvão dos Novos Baianos, a "lei natural dos encontros", a sustentabilíssima leveza do ser, o instinto e o comportamento humano como comédia de enganos. Mulher na Praia confirma e renova o vigor de Hong Sang-Soo como um dos mais decisivos cineastas contemporâneos.


Ruy Gardnier

 

 





O encontro


O detalhe


O face a face (Mulher na Praia de Hong Sang-Soo)