Em um dos principais
momentos de Mister Lonely, no fim da apresentação do espetáculo de imitadores,
um dos personagens revela que ser imitador é uma profissão
de fé, pois a imitação, como chance de guardar no tempo
certas figuras que se foram (ou envelheceram), é a crença
no milagre possível. Pouco após esta fala, entretanto,
Korine filma o contracampo
do discurso, e, como em todo o restante do filme, de
forma nada sutil. Em um plano fixo e distanciado, vemos
poucas pessoas na platéia, aplaudindo desanimadas, com
exceção de um deficiente mental, que bate palmas entusiasmadamente
e se destaca. Porque, assim como as freiras mortas na
história paralela que se desenrola juntamente a esta,
Korine deixa claro que Mr. Lonely sempre
irá se pautar pelo fracasso do milagre. E essa visão
moralizante, esse fracasso explícito, que não seria
problema algum se bem tratado, acaba levando na mesma
vala os personagens e, em última instância, o próprio
filme.
Porque Korine em nenhum momento
consegue solucionar o impasse ao qual se coloca, conscientemente:
dar a seus personagens momentos de aparente poesia e
afeição e contrapô-los subitamente à sua moral negativista,
que para funcionar a contento tem de transformá-los
em fantoches. E, se tudo
que Mister
Lonely tem são
seus personagens (afinal, é um filme construído totalmente
a partir da relação entre eles), existe aí um problema.
Porque, se entendemos a existência do amor de Charlie
Chaplin por sua Marilyn Monroe, são as unhas podres em primeiro plano, o estilo
ditatorial e competitivo, os modos machistas e sua faceta
de Hitler que o filme irá colocar em
evidência. E se o sofrimento de Abraham
Lincoln ao ter de matar suas queridas ovelhas é real,
o filme está mais preocupado em frisar os recorrentes
“fuckings” na fala do imitador
do ex-presidente americano. E, ainda, se a relação entre
os personagens de Diego Luna e Samantha Morton (respectivamente, Michael Jackson e Marilyn Monroe), e a tensão sexual vinda deles poderia ser
de algum interesse, nada temos além de um imitador com
talento nos tiques de dança e uma mulher cujo vestido
levanta em câmera lenta.
Ao resolver dar a seus personagens esse registro duplo
– de objetos ao mesmo tempo de afeição e desprezo -,
com a intenção de fazer deles o exemplo da impossibilidade
dos milagres, o filme de Korine
fracassa em todas as instâncias, tanto em suas cenas
poéticas e humanas, quanto naquelas que tenta colocar
sua visão de mundo. Pois, sem a substância necessária
para que acreditemos e nos emocionemos com o sentimento
dos personagens (aquela substância que só pode existir
quando eles são compostos com algum ingrediente além
de um nome e um estereótipo colado nele), os momentos
em que a câmera tenta colar-se em suas vidas quase nunca
vão além de uma vã e falsa tentativa. E, se por
acaso alguns instantes de beleza conseguem sair daí
– a cena da matança das ovelhas, o espetáculo belo e
ridículo dos imitadores –, é sempre a instância do ridículo
que Korine irá frisar, este contracampo desleal
não apenas com os personagens (com estes, talvez o realizador
possa agir como quiser), mas principalmente com o espectador.
Não por acaso, o melhor plano do filme é o primeiro,
talvez o único cuja poesia exista e se complete sem
re-significação alguma como necessidade maior.
Mas um filme sem vida não é necessariamente um filme
sem interesse, ainda que, infelizmente, Mister
Lonely seja.
Pois, para enfatizar o ridículo de seus personagens,
estes imitadores de segunda categoria têm sempre de
serem construídos a partir de um tique tão bizarro quanto
aleatório, que nada tem a ver com o ser imitado. Além
do ex-presidente e seu “fucking”
recorrente, temos o jovem garotinho que gosta, sexualmente,
de galinhas e grandes seios de mulheres (por alguma
razão estranha, Korine um
dia achou que isso era engraçado), o Papa que não toma
banho e que transa com a Rainha Elizabeth, os Três Patetas
que fazem tudo um ao lado do outro, e por aí vai. E,
se esses são os personagens bem-construídos (ou pelo
menos aqueles que geram algumas cenas bobas e pretensamente
engraçadas), outros simplesmente revelam seu papel em
close-up – na hora em que todos os imitadores se apresentam
– para depois serem esquecidos. E assim James Dean,
Madonna e outros passam pela casa na qual
todos vivem em comunhão como bonecos sem relevância.
Para enfatizar o ridículo de seus personagens, a solução
do cineasta foi simples: ser ridículo ele mesmo. Mas
isso, no entanto, não é engraçado, e certamente não
leva às reflexões que Korine queria apresentar.
E, se ele realmente as apresenta, é porque inventa uma
história paralela com esse intuito. Pois nada justifica
o enredo das freiras e o padre na África para além da
reiteração dessa visão cínica, desse recontar a mesma
história com outras imagens. E, talvez porque recontar
seja mais fácil do que contar pela primeira vez (da
mesma forma que construir é mais difícil que reiterar),
esta parte seja a única que garanta um real interesse.
Porque nas elipses do enredo (elipses estas naturalmente
respondidas na história principal) as cenas com as freiras
parecem mais desenvoltas, soltas e bem-resolvidas. Como
destaque, a conversa do padre vivido por Werner
Herzog com um morador da região – ridícula, é claro, mas com
certo grau de espirituosidade
– e os belos planos das freiras executando o milagre:
andar de bicicleta nos céus e se divertir com essa possibilidade.
Mas, se o filme termina com quatro lições de moral seguidas
(a fala de Marilyn no ovo pintado; o corte de cabelo e a transformação
de Diego Luna; sua voz em
off e a imagem das freiras mortas na praia) é porque,
em nenhum momento, ele realmente consegue fugir de seu
ponto de chegada. E, infelizmente, todas as seqüências
parecem sofrer desse mal. Assim, ao investir em certas
soluções criativas, como o próprio tema escolhido,
algumas ambiências ou mesmo certas encenações ou posições
de câmera, a estranheza nunca consegue ultrapassar um
deslocamento indesejável. E, ao investir em lugares-comuns,
como nas câmeras lentas para enfatizar a poesia, nos
estereótipos para reiterar sua visão de mundo ou mesmo
no desenvolvimento banal ou fácil de certas seqüências,
Korine não consegue fugir do didatismo reinante. Uma pena,
pois o tema se abre para uma série de reflexões e invenções
visuais, e parece sempre possível que o
cineasta consiga alcançá-las (existe, ali, um
talento para criar imagens). Mas, sufocado por suas
pretensões bobas e pela absoluta falta de vontade de
fugir delas, Mister Lonely está sempre um ou
mais passos aquém de qualquer alcance possível.
Leonardo Levis
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