mister lonely
Harmony Korine, Reino Unido/França/Irlanda/EUA, 2006

Em um dos principais momentos de Mister Lonely, no fim da apresentação do espetáculo de imitadores, um dos personagens revela que ser imitador é uma profissão de fé, pois a imitação, como chance de guardar no tempo certas figuras que se foram (ou envelheceram), é a crença no milagre possível. Pouco após esta fala, entretanto, Korine filma o contracampo do discurso, e, como em todo o restante do filme, de forma nada sutil. Em um plano fixo e distanciado, vemos poucas pessoas na platéia, aplaudindo desanimadas, com exceção de um deficiente mental, que bate palmas entusiasmadamente e se destaca. Porque, assim como as freiras mortas na história paralela que se desenrola juntamente a esta, Korine deixa claro que Mr. Lonely sempre irá se pautar pelo fracasso do milagre. E essa visão moralizante, esse fracasso explícito, que não seria problema algum se bem tratado, acaba levando na mesma vala os personagens e, em última instância, o próprio filme.

Porque Korine em nenhum momento consegue solucionar o impasse ao qual se coloca, conscientemente: dar a seus personagens momentos de aparente poesia e afeição e contrapô-los subitamente à sua moral negativista, que para funcionar a contento tem de transformá-los em fantoches. E, se tudo que Mister Lonely tem são seus personagens (afinal, é um filme construído totalmente a partir da relação entre eles), existe aí um problema. Porque, se entendemos a existência do amor de Charlie Chaplin por sua Marilyn Monroe, são as unhas podres em primeiro plano, o estilo ditatorial e competitivo, os modos machistas e sua faceta de Hitler que o filme irá colocar em evidência. E se o sofrimento de Abraham Lincoln ao ter de matar suas queridas ovelhas é real, o filme está mais preocupado em frisar os recorrentes “fuckings” na fala do imitador do ex-presidente americano. E, ainda, se a relação entre os personagens de Diego Luna e Samantha Morton (respectivamente, Michael Jackson e Marilyn Monroe), e a tensão sexual vinda deles poderia ser de algum interesse, nada temos além de um imitador com talento nos tiques de dança e uma mulher cujo vestido levanta em câmera lenta.

Ao resolver dar a seus personagens esse registro duplo – de objetos ao mesmo tempo de afeição e desprezo -, com a intenção de fazer deles o exemplo da impossibilidade dos milagres, o filme de Korine fracassa em todas as instâncias, tanto em suas cenas poéticas e humanas, quanto naquelas que tenta colocar sua visão de mundo. Pois, sem a substância necessária para que acreditemos e nos emocionemos com o sentimento dos personagens (aquela substância que só pode existir quando eles são compostos com algum ingrediente além de um nome e um estereótipo colado nele), os momentos em que a câmera tenta colar-se em suas vidas quase nunca vão além de uma vã e falsa tentativa. E, se por acaso alguns instantes de beleza conseguem sair daí – a cena da matança das ovelhas, o espetáculo belo e ridículo dos imitadores –, é sempre a instância do ridículo que Korine irá frisar, este contracampo desleal não apenas com os personagens (com estes, talvez o realizador possa agir como quiser), mas principalmente com o espectador. Não por acaso, o melhor plano do filme é o primeiro, talvez o único cuja poesia exista e se complete sem re-significação alguma como necessidade maior.

Mas um filme sem vida não é necessariamente um filme sem interesse, ainda que, infelizmente, Mister Lonely seja. Pois, para enfatizar o ridículo de seus personagens, estes imitadores de segunda categoria têm sempre de serem construídos a partir de um tique tão bizarro quanto aleatório, que nada tem a ver com o ser imitado. Além do ex-presidente e seu “fucking” recorrente, temos o jovem garotinho que gosta, sexualmente, de galinhas e grandes seios de mulheres (por alguma razão estranha, Korine um dia achou que isso era engraçado), o Papa que não toma banho e que transa com a Rainha Elizabeth, os Três Patetas que fazem tudo um ao lado do outro, e por aí vai. E, se esses são os personagens bem-construídos (ou pelo menos aqueles que geram algumas cenas bobas e pretensamente engraçadas), outros simplesmente revelam seu papel em close-up – na hora em que todos os imitadores se apresentam – para depois serem esquecidos. E assim James Dean, Madonna e outros passam pela casa na qual todos vivem em comunhão como bonecos sem relevância. Para enfatizar o ridículo de seus personagens, a solução do cineasta foi simples: ser ridículo ele mesmo. Mas isso, no entanto, não é engraçado, e certamente não leva às reflexões que Korine queria apresentar.

E, se ele realmente as apresenta, é porque inventa uma história paralela com esse intuito. Pois nada justifica o enredo das freiras e o padre na África para além da reiteração dessa visão cínica, desse recontar a mesma história com outras imagens. E, talvez porque recontar seja mais fácil do que contar pela primeira vez (da mesma forma que construir é mais difícil que reiterar), esta parte seja a única que garanta um real interesse. Porque nas elipses do enredo (elipses estas naturalmente respondidas na história principal) as cenas com as freiras parecem mais desenvoltas, soltas e bem-resolvidas. Como destaque, a conversa do padre vivido por Werner Herzog com um morador da região – ridícula, é claro, mas com certo grau de espirituosidade – e os belos planos das freiras executando o milagre: andar de bicicleta nos céus e se divertir com essa possibilidade.

Mas, se o filme termina com quatro lições de moral seguidas (a fala de Marilyn no ovo pintado; o corte de cabelo e a transformação de Diego Luna; sua voz em off e a imagem das freiras mortas na praia) é porque, em nenhum momento, ele realmente consegue fugir de seu ponto de chegada. E, infelizmente, todas as seqüências parecem sofrer desse mal. Assim, ao investir em certas soluções criativas, como o próprio tema escolhido, algumas ambiências ou mesmo certas encenações ou posições de câmera, a estranheza nunca consegue ultrapassar um deslocamento indesejável. E, ao investir em lugares-comuns, como nas câmeras lentas para enfatizar a poesia, nos estereótipos para reiterar sua visão de mundo ou mesmo no desenvolvimento banal ou fácil de certas seqüências, Korine não consegue fugir do didatismo reinante. Uma pena, pois o tema se abre para uma série de reflexões e invenções visuais, e parece sempre possível que o cineasta consiga alcançá-las (existe, ali, um talento para criar imagens). Mas, sufocado por suas pretensões bobas e pela absoluta falta de vontade de fugir delas, Mister Lonely está sempre um ou mais passos aquém de qualquer alcance possível.

Leonardo Levis