Dennis Lehane está para a literatura
policial como um grande artesão está para o cinema
policial. O filme que Ben Affleck fez pode até ser
um policial comum, concentrado nas investigações em
torno de um mistério, mas Medo da Verdade não
soa como um filme de gênero tradicional. É um filme
desapegado dos momentos mais tensos, como se o interesse
de Affleck por aquela história não estivesse no mistério
em si. E é um pouco isso que Medo da Verdade tenta
construir. Uma narrativa cujos vai-e-vens escondem
longas cicatrizes deixadas em seus personagens. Um
tanto como Sobre Meninos e Lobos.
A América machucada porém progressiva, constantemente retratada por Lehane em
seus mistérios, é o objeto de cena mais caro ao filme. Se sobra em desleixo em
sua encenação, o filme sobrecarrega-se nos detalhes, nas pessoas, nos extras,
nas ruas, nas casas. A construção de um ambiente, da atmosfera de uma comunidade
abalada em torno do crime central, o seqüestro de uma menina de quatro anos, é um
raro momento de acerto do diretor. Toda a introdução do filme se concentra neste
aspecto, o de encontrar o clima ideal que construa uma noção de comunidade, americana
por excelência. Neste sentido, o filme de Ben Affleck é bastante inteligente,
pois constrói um painel simples, mas sincero, que julga sem agressividade, e
que está sempre ao lado daquele mundo que cria.
O ambiente é importante, porém se torna mero pano de fundo depois que o mistério
se desenvolve. É quando Affleck começa a se trair. Seguindo uma convenção de
dar espaço à trama, o filme se arrasta durante longa duração, colocando tantos
os personagens quanto aquela atmosfera de lado. É só quando os primeiros acontecimentos
mais pesados se dão em cena, que os personagens começam a ganhar seus momentos.
A partir daí ele ganha tons mais fortes, sempre quando encontra os personagens
certos. Ed Harris é a figura chave dentro do filme, pois sua representação, postura, é a
imagem perfeita do crime que se desenvolve em cena – mas não é sobre ele que
detém-se o fascínio maior. É no personagem de Casey Affleck, com sua ambigüidade,
que encontraremos um personagem verdadeiramente interessante. Primeiro, porque
a ele o filme dedicará diversos pequenos momentos, aqueles onde o filme realmente
funciona. Ele representa aquilo que existe de mais puro, o homem que irá colocar
tudo de lado em nome de fazer o certo. Mas ao mesmo tempo é de uma amargura consciente,
como quando fala sobre os quatro cabo-verdeanos assassinados no mesmo bairro
em contraponto a comoção em torno do seqüestro da menina loira e de olhos claros.
Um momento definitivo sobre o personagem é quando ao encontrar uma criança morta,
ele mata a sangue frio o assassino. Este surto de falsa justiça é encarado por
todos como o ato de um herói. Personagem e autor discordam deles. Como conseqüência,
ele irá romper com cada um que lhe apoiou no ato que cometeu.
Nem todos os pequenos momentos são funcionais. O arco dramático envolvendo a
personagem de Michelle Monaghan é constrangedor. A encenação não dá conta dela,
e muito menos a atriz faz qualquer coisa minimamente decente. Já as cenas de
ação são um caso à parte. A questão não é de serem bem ou mal filmadas. Elas
são simplesmente mal decupadas. A cena da gruta em particular é tosquíssima,
onde o que ocorre em cena não faz qualquer sentido na imagem. A seqüência do
assalto no bar também é incrivelmente sem sentido, mal construída, jogada em
cena. A importância de ambos os momentos para o filme é extrema, incluindo o
fato de que parte considerável deste se dá em torno de reconstruir o que teria
acontecido em cena na primeira delas, o que vai tornando as coisas cada vez mais
duras de engolir.
Guilherme Martins
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