Trabalhar com metalinguagem,
referências ou mesmo se discutir o cinema dentro do
filme sempre foi tentação de muitos cineastas. Amor
e Outros Desastres completa uma lista inumerável
de filmes em que o cinema é utilizado como fomentador
de questões, como a vida em Hollywod, a magia de se
fazer cinema, a fantasia existente nos filmes, os personagens
históricos e conhecidos ou o prazer de se assistir
a um filme. Alek Keshishian se utiliza com bom-humor
de algumas das possibilidades proporcionadas pelas
variações do cinema.
Partimos da personagem Emily Jackson, ou Jacks, como é conhecida pelos amigos.
Extremamente carismática no papel, Brittany Murphy reproduz com algum sucesso
o jeitinho gracioso da bonequinha de luxo de Audrey Hepburn. O filme de Blake
Edwards é presente não só como referência explícita – pois as roupas, sapatos,
corte de cabelo, são exatamente iguais ao de Holly Golightly (a personagem de
Audrey) –, como também por citação: Jacks e Peter (seu amigo gay) adoram ver Bonequinha
de Luxo na televisão. Num filme que não pretende mais do que divertir, a
personagem Jacks não tem nenhuma função de atualizar o personagem, debater as
mesmas questões ou fazer uso crítico dele. Usa apenas do carisma criado por Audrey
Hepburn como atrativo para o personagem. E o que vemos na tela é uma Brittany
Murphy desfilando pelo filme com bastante espontaneidade e graça, fazendo com
que rememoremos à figura de Audrey, ao mesmo tempo em que nos divertimos com
suas trapalhadas inconseqüentes (é especialmente engraçada a seqüência em que
Jacks, bêbada, recusa o beijo de Paolo, afirmando que ele estava bêbado).
O que Alek Keshishian faz é utilizar a persona da Holly Golightly de Audrey Hepburn.
Uma vez que se coloca um distanciamento histórico da personagem do filme de Blake
Edwars, é possível se retrabalhar a imagem, sendo esta já bastante familiar.
Parte-se do princípio que todos conhecem a personagem citada, e então se reproduz
esta imagem, incorporando-a em outro contexto. Junto da imagem, vêm uma série
de formulações que remetem ao filme passado. Mas, curiosamente, nunca pensamos
em Jacks como garota de programa (como é Holly), porque o que ficou pra história
não foi a profissão da garota, e sim o seu jeito gracioso. Ciente da potência
dessa imagem, Keshishian apenas deixa que seu personagem aja de maneira semelhante
(uma vez ornamentado), em um trabalho que se completa automaticamente.
Mas o trabalho com a imagem não é apenas advindo de personagens históricos. Uma
vez que o filme começa a dialogar com a idéia de se fazer um filme – a partir
do roteiro que Peter escreve e a produção que se inicia – Alek Keshishian trabalha
também a persona de atores atualmente famosos. Peter é obrigado a ceder aos apelos
publicitários do produtor de seu filme, e vê seus personagens sendo interpretados
por atores célebres, a partir de um desejo que não era o seu. E aqui as personas
de Gwyneth Paltrow e de Orlando Bloom são repensadas menos por suas individualidades
e mais pela repercussão de suas imagens. Ciente disso, Keshishian se apropria
com perspicácia do elenco, criando situações cômicas.
A auto-referencialidade não está presente exclusivamente no trabalho de atores
e personagens. A própria estrutura do filme (ou de se fazer um filme) é trabalhada
com humor. Jacks e Peter estão dentro de um táxi, quando se pegam fazendo lamentações
amorosas. Jacks então comenta que se aquela situação fosse cena de um filme,
certamente estaria tocando um violino para aumentar o drama. E, claro, o que
estávamos ouvindo (ainda que sem reparar) era um violino, que só ganha presença
quando é rapidamente retirado. Naquele momento, é a fala diegética da personagem
que dita a estrutura do filme. Mas a seqüência não termina aí e temos um corte
e, em um plano mais aberto, assim que o carro vira a esquina, a música recomeça.
Afinal, Amor e Outros Desastres é uma comédia romântica e há de trabalhar
com as ferramentas conhecidas.
Mas é justamente nas ferramentas conhecidas que o filme tropeça, com diálogos
fracos e situações amorosas insignificantes. A própria premissa narrativa é bastante
desinteressante: Jacks vive querendo arrumar um namorado para Peter, sem se dar
conta que interfere na vida amorosa do amigo, mas não se preocupa em interferir
na sua própria, assumindo que seu namoro não vai bem. Há, portanto, momentos
tediosos, sobretudo quando Jacks se faz passar por boa samaritana e quer contemplar
a todos com seus ouvidos pacientes. A estrutura de sitcom é explorada
na forma e no conteúdo. Na forma há uma (re)construção interessante de cenários,
composições e enquadramentos, que dialogam e reproduzem a lógica televisiva.
O que é aparentemente uma influência negativa, logo se revela uma brincadeira
com um gênero. O conteúdo, no entanto, reproduz situações também típicas das sitcoms,
mas o resultado é menos satisfatório, faltando a pegada das melhores séries com
as quais os filmes pretende dialogar (Friends, Sex and the City,
entre outras). Amor e Outros Desastres não deixa, ainda no entanto, de
entreter. E se o diálogo é com a televisão e com a passagem fugidia que esta
provoca (restando a diversão momentânea), o filme é muito bem sucedido em sua
investida.
Raphael Mesquita
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