Na impressionante seqüência
inicial de Homens na Terra temos uma série de
planos que movem-se pelo mar em busca da terra. O movimento
faz intuir um olhar que avança na paisagem. A real
presença do dono deste olhar – o barco dos cientistas
expedicionários – é confirmada pelo primeiro plano “neutro” do
filme: um plano que mostra uma foca olhando desconfiada
na direção da câmera e mergulhando no mar em seguida.
Cria-se aí a tensão que o filme dedica-se a construir:
algo se aproxima, algo do que os animais e, em última
instância, a própria terra, desconfiam e tentam se
proteger.
Não supõe-se ponto de partida para este barco. Ele aparece desde o início no
campo do filme – o mar e as terras da Groelândia – como esta presença desbravadora,
que converte-se em máquina invasora pela reação dos animais do continente e pela
postura da câmera, que assume o lado da natureza local – para a qual tudo o que
não é ela seria necessariamente estrangeiro. Observamos tudo, portanto, como
se os seres humanos e seus empreendimentos nos fossem também estranhos, como
se pudéssemos compartilhar durante o tempo de projeção outro status de
existência que não o da civilização. E é este movimento do filme seu statement formal
e conceitual.
A vaga narratividade não esconde o desejo primordial de Homens na Terra:
o de simplesmente se instalar naquele espaço para criar mediações de sentido
entre a natureza e os humanos que a desconhecem. O filme se assemelha, de fato,
bastante a uma vídeo-instalação; seu desenrolar numa sala de cinema cria uma
situação espectatorial limítrofe, na qual a não-ação que domina as imagens obriga
a um torpor imersivo, sem o qual a rejeição vem rápida e fácil. Pois o ponto
de vista que Michel cria não é subjetivo e não suscita identificação ou inserção,
ele é uma espécie de petição de princípio, resultado de uma arquitetura conceitual – com
a qual torna-se necessário compactuar em alguma medida.
Uma vez situados junto à natureza, observamos a aproximação progressiva dos homens
na terra. Os trajes e utensílios que portam contribuem para aumentar a distância
entre eles e o mundo que visitam: a descontinuidade é radical e a oposição frontal
que a decupagem constrói situa-os em lados diametralmente opostos. Do lado do
mar, da fronteira externa, os estrangeiros que avançam, do lado da terra, uma
vastidão
habitada e regida por minerais, vegetais e animais.
Em sua aproximação de um
devir imemorial, não seria exagero dizer que Ariane Michel inventa um universo à parte,
no qual a Terra passa a ser uma idéia humana (toda a imagem domesticada que fazemos
da natureza e dos animais) e todo território verdadeiramente selvagem, um mundo
simplesmente intangível.
A sensação de desconhecido que o filme traz, de criação de um ambiente outro
que deve ser experenciado através de sua lógica própria, suscita o maravilhamento
de estar diante de algo absolutamente inaudito. Homens na Terra é simultânea
e indistintamente uma instalação, um documentário observacional, um filme de
decupagem/montagem e um suspense enigmático.
A apreensão que o avanço paulatino
dos cientistas suscita é um misto de medo da violência e de curiosidade do contato
entre diferentes. Aos poucos, os homens tornam-se familiares e seus gestos não-agressivos
conquistam a hospitalidade da terra; o choque nunca chega a acontecer. Tampouco
a comunhão.
O dispositivo cinematográfico, opaco e oculto, mesclado ao existir da natureza,
retoma aos poucos sua antropometria e dedica aos humanos planos exclusivos, assim
como passa a escutar suas vozes, antes “inexistentes”. Mas estes vão embora sem
nunca exatamente experimentar o tempo daquele universo, sem que um contato maior
ocorra. A temporalidade particular do filme, que emula a temporalidade imaginada
para a natureza em questão, permanece bastante distanciada do tempo dos gestos
humanos. E é sempre a partir dela que os cientistas são contemplados. Há uma
aceitação e absorção gradativa do outro, um otimismo do encontro, mas a ruptura
talvez intransponível que demarca a separação entre o homem civilizado e a natureza
nunca cessa de se fazer presente.
O ponto cego do filme, o reconhecimento
de que tudo nele possui um olhar humano por trás, sobrevém como licença poética
de grande abertura para a alteridade.
Obra sutil e engenhosa, Homens na Terra provavelmente faz coro aos curtas
desconhecidos de Ariane Michel, assim como a outros de seus empreendimentos artísticos – a
julgar pelo pouco de informação que circula a seu respeito. Visto isoladamente,
ele carrega em si a potência de diálogos transversos com aventuras cinematográficas
arriscadas, como Cinco, de Abbas Kiarostami. Proposições de olhares em
dificuldade com o mundo como estas são sempre raras e, quando capazes de produzir
aventuras misteriosas, tornam-se verdadeiros territórios estrangeirados do cinema.
Tatiana Monassa
|