HOMENS NA TERRA
Ariane Michel, Les Hommes, França, 2006

Na impressionante seqüência inicial de Homens na Terra temos uma série de planos que movem-se pelo mar em busca da terra. O movimento faz intuir um olhar que avança na paisagem. A real presença do dono deste olhar – o barco dos cientistas expedicionários – é confirmada pelo primeiro plano “neutro” do filme: um plano que mostra uma foca olhando desconfiada na direção da câmera e mergulhando no mar em seguida. Cria-se aí a tensão que o filme dedica-se a construir: algo se aproxima, algo do que os animais e, em última instância, a própria terra, desconfiam e tentam se proteger.

Não supõe-se ponto de partida para este barco. Ele aparece desde o início no campo do filme – o mar e as terras da Groelândia – como esta presença desbravadora, que converte-se em máquina invasora pela reação dos animais do continente e pela postura da câmera, que assume o lado da natureza local – para a qual tudo o que não é ela seria necessariamente estrangeiro. Observamos tudo, portanto, como se os seres humanos e seus empreendimentos nos fossem também estranhos, como se pudéssemos compartilhar durante o tempo de projeção outro status de existência que não o da civilização. E é este movimento do filme seu statement formal e conceitual.

A vaga narratividade não esconde o desejo primordial de Homens na Terra: o de simplesmente se instalar naquele espaço para criar mediações de sentido entre a natureza e os humanos que a desconhecem. O filme se assemelha, de fato, bastante a uma vídeo-instalação; seu desenrolar numa sala de cinema cria uma situação espectatorial limítrofe, na qual a não-ação que domina as imagens obriga a um torpor imersivo, sem o qual a rejeição vem rápida e fácil. Pois o ponto de vista que Michel cria não é subjetivo e não suscita identificação ou inserção, ele é uma espécie de petição de princípio, resultado de uma arquitetura conceitual – com a qual torna-se necessário compactuar em alguma medida.

Uma vez situados junto à natureza, observamos a aproximação progressiva dos homens na terra. Os trajes e utensílios que portam contribuem para aumentar a distância entre eles e o mundo que visitam: a descontinuidade é radical e a oposição frontal que a decupagem constrói situa-os em lados diametralmente opostos. Do lado do mar, da fronteira externa, os estrangeiros que avançam, do lado da terra, uma vastidão habitada e regida por minerais, vegetais e animais. Em sua aproximação de um devir imemorial, não seria exagero dizer que Ariane Michel inventa um universo à parte, no qual a Terra passa a ser uma idéia humana (toda a imagem domesticada que fazemos da natureza e dos animais) e todo território verdadeiramente selvagem, um mundo simplesmente intangível.

A sensação de desconhecido que o filme traz, de criação de um ambiente outro que deve ser experenciado através de sua lógica própria, suscita o maravilhamento de estar diante de algo absolutamente inaudito. Homens na Terra é simultânea e indistintamente uma instalação, um documentário observacional, um filme de decupagem/montagem e um suspense enigmático. A apreensão que o avanço paulatino dos cientistas suscita é um misto de medo da violência e de curiosidade do contato entre diferentes. Aos poucos, os homens tornam-se familiares e seus gestos não-agressivos conquistam a hospitalidade da terra; o choque nunca chega a acontecer. Tampouco a comunhão.

O dispositivo cinematográfico, opaco e oculto, mesclado ao existir da natureza, retoma aos poucos sua antropometria e dedica aos humanos planos exclusivos, assim como passa a escutar suas vozes, antes “inexistentes”. Mas estes vão embora sem nunca exatamente experimentar o tempo daquele universo, sem que um contato maior ocorra. A temporalidade particular do filme, que emula a temporalidade imaginada para a natureza em questão, permanece bastante distanciada do tempo dos gestos humanos. E é sempre a partir dela que os cientistas são contemplados. Há uma aceitação e absorção gradativa do outro, um otimismo do encontro, mas a ruptura talvez intransponível que demarca a separação entre o homem civilizado e a natureza nunca cessa de se fazer presente.
 
O ponto cego do filme, o reconhecimento de que tudo nele possui um olhar humano por trás, sobrevém como licença poética de grande abertura para a alteridade. Obra sutil e engenhosa, Homens na Terra provavelmente faz coro aos curtas desconhecidos de Ariane Michel, assim como a outros de seus empreendimentos artísticos – a julgar pelo pouco de informação que circula a seu respeito. Visto isoladamente, ele carrega em si a potência de diálogos transversos com aventuras cinematográficas arriscadas, como Cinco, de Abbas Kiarostami. Proposições de olhares em dificuldade com o mundo como estas são sempre raras e, quando capazes de produzir aventuras misteriosas, tornam-se verdadeiros territórios estrangeirados do cinema.

Tatiana Monassa

 

 







Entre a desmedida dos homens...


...e a medida da terra e dos animais, Ariane Michel faz um filme que busca contemplar a lógica de um universo ignorante da civilização.