Quando um filme como Tropa
de Elite coloca como sua primeira informação
na tela uma cartela que
explica que a “psicologia moderna” já não considera o caráter de um homem como
produto de sua experiência de vida íntima, mas sim a partir do que nele for provocado
pelo ambiente em que vive, isto parece nos desviar para uma idéia de condicionamento
anterior à própria lógica do cinema – está nos domínios da
psicologia, e não nos domínios da construção da imagem, a capacidade de reprodução
de certas situações sociais/pessoais vistas em determinados filmes. Esta supremacia
do meio sobre o homem não pode, evidentemente, chegar ao cinema como
uma dinâmica pura: é sempre um condicionamento de segunda mão. La León trabalha exatamente sobre esta
evidência.
Seria de se imaginar que toda a secura narrativa, que todo o
silêncio e alongamento do tempo dos planos, que toda a estática e rarefação emocional
das situações fossem atribuídas à La
León pelo ambiente em que se instala – desse modo, a câmera reagiria àquela
modelação do caráter da mesma maneira que Álvaro, o protagonista, ou qualquer
outro dos personagens vivendo ali (reforçado mais ainda pela presença de diversos
não-atores, habitantes naturais da ilha fluvial na região da Bacia do
Paraná onde o filme é rodado, pessoas que não estariam “atuando” este condicionamento,
mas vivendo-o propriamente). Mas a intermediação da câmera é,
por si, uma reinstalação da dinâmica homem-meio, a partir de um modelo que é só seu.
Se há alguém aqui a construir um caráter, esse alguém é o próprio La León, que cria um meio
cinematográfico muito particular, a partir de um meio natural cheio de suas especificidades
e questões.
De maneira que a secura, o silêncio, o preto-e-branco, todo
o repertório de registro de que Santiago Otheguy se utiliza, não é mera
assimilação do repertório natural da ilha. É sim o investimento preciso e consciente
do diretor sobre aquilo que quer retirar do lugar. La León tem um foco bastante direto. Desde
muito antes do que possamos perceber, o filme já começa a opor closes de Álvaro
e seu maior desafeto, Turu. Mesmo em situações dramáticas em que os dois
não estejam interagindo, a coordenação entre planos de seus rostos já estabelece
um diálogo, cujo desdobramento só saberemos mais adiante. Enquadrados na mesma
imagem (como na bela seqüência em que Álvaro toma uma
ducha após o jogo de futebol enquanto Turu se penteia diante da pia, e que termina
com um plano do reflexo dos dois convivendo na moldura do espelho), é como se
o confronto, e o posterior relacionamento curto e turbulento dos dois,
não lhes pertencesse exatamente, mas fosse mais uma das manifestações deste universo
da ilha.
La León percebe
uma relação entre estas pessoas e a natureza que escapa da hierarquia radical.
Este ambiente tábula-rasa, sobre o qual temos poucas informações ou
contextualizações históricas, está tão disponível a ser construído quanto a ajudar
a construir. Há uma interdependência fascinante ali. A homossexualidade
de Álvaro nunca é constrangida pela ilha, pelo contrário. Sua latência parece
potencializada pelas situações ali acontecidas. A presença de um grupo de paraguaios
imigrantes dedicados ao corte de madeira desperta em Álvaro o desejo por um dos
trabalhadores, e este desejo só aparece no ato do trabalho, no transporte da
madeira através da ilha, como se a equação da atração de um homem
por outro só se resolvesse com a adição da terra. É o que talvez explique que Álvaro
transe com um sujeito no meio do mato, mesmo quando havia a possibilidade de
se fecharem no pequeno barco em que o homem estava. Mas a
sexualidade só se completa no contato com a natureza, com os corpos nus no meio
das árvores e folhas.
E não só o sexo. A sensação de complementaridade é geral. Isolada do resto da
Argentina (e do mundo) pelo emaranhado de rios e afluentes, aquela pequena comunidade
vive em regime de franca organicidade com a ilha. Santiago Otheguy percebe uma
movimentação particular provocada pelo vento na plantação de um tipo de graveto
típico do lugar, e depois reproduz este mesmo movimento numa partida de futebol,
mantendo a câmera fixa frontal ao gol enquanto os jogadores saem e entram no
quadro de acordo com a dinâmica do jogo. Nem a
tentativa de ocultação de um crime, cometido por agentes exteriores a ilha,
poderá ser bem sucedida. Desovado no rio, o corpo do homem assassinado eventualmente
reaparecerá, uma vez que as águas baixem.
A sensibilidade de percepção de todo este regime de
interações é o que retira a agenda estética de La León do simples fetiche observacionista. Instalado no interior
de um universo particular, longe do aforismo psicológico, é do contato íntimo
com estas pessoas e estes espaços por onde circulam que o filme vai armando sua
idéia de caráter. Não tanto o caráter de Álvaro, Turu, dos paraguaios ou dos
companheiros do jogo de futebol, nem muito menos da extensão interminável dos
rios, da floresta densa, das lavouras, do vento e da chuva sempre presentes.
Mas o caráter de sua própria condição de retrato parcial e condicionante de uma
determinada encenação da realidade, e da possibilidade, materializada em La León, de aliar esta condição a uma
parcela muito generosa de franqueza e entrega.
Rodrigo de Oliveira
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