LA LEÓN
Santiago Otheguy, La León, Argentina/França, 2006

Quando um filme como Tropa de Elite coloca como sua primeira informação na tela uma cartela que explica que a “psicologia moderna” já não considera o caráter de um homem como produto de sua experiência de vida íntima, mas sim a partir do que nele for provocado pelo ambiente em que vive, isto parece nos desviar para uma idéia de condicionamento anterior à própria lógica do cinema – está nos domínios da psicologia, e não nos domínios da construção da imagem, a capacidade de reprodução de certas situações sociais/pessoais vistas em determinados filmes. Esta supremacia do meio sobre o homem não pode, evidentemente, chegar ao cinema como uma dinâmica pura: é sempre um condicionamento de segunda mão. La León trabalha exatamente sobre esta evidência.

Seria de se imaginar que toda a secura narrativa, que todo o silêncio e alongamento do tempo dos planos, que toda a estática e rarefação emocional das situações fossem atribuídas à La León pelo ambiente em que se instala – desse modo, a câmera reagiria àquela modelação do caráter da mesma maneira que Álvaro, o protagonista, ou qualquer outro dos personagens vivendo ali (reforçado mais ainda pela presença de diversos não-atores, habitantes naturais da ilha fluvial na região da Bacia do Paraná onde o filme é rodado, pessoas que não estariam “atuando” este condicionamento, mas vivendo-o propriamente). Mas a intermediação da câmera é, por si, uma reinstalação da dinâmica homem-meio, a partir de um modelo que é só seu. Se há alguém aqui a construir um caráter, esse alguém é o próprio La León, que cria um meio cinematográfico muito particular, a partir de um meio natural cheio de suas especificidades e questões.

De maneira que a secura, o silêncio, o preto-e-branco, todo o repertório de registro de que Santiago Otheguy se utiliza, não é mera assimilação do repertório natural da ilha. É sim o investimento preciso e consciente do diretor sobre aquilo que quer retirar do lugar. La León tem um foco bastante direto. Desde muito antes do que possamos perceber, o filme já começa a opor closes de Álvaro e seu maior desafeto, Turu. Mesmo em situações dramáticas em que os dois não estejam interagindo, a coordenação entre planos de seus rostos já estabelece um diálogo, cujo desdobramento só saberemos mais adiante. Enquadrados na mesma imagem (como na bela seqüência em que Álvaro toma uma ducha após o jogo de futebol enquanto Turu se penteia diante da pia, e que termina com um plano do reflexo dos dois convivendo na moldura do espelho), é como se o confronto, e o posterior relacionamento curto e turbulento dos dois, não lhes pertencesse exatamente, mas fosse mais uma das manifestações deste universo da ilha.

La León percebe uma relação entre estas pessoas e a natureza que escapa da hierarquia radical. Este ambiente tábula-rasa, sobre o qual temos poucas informações ou contextualizações históricas, está tão disponível a ser construído quanto a ajudar a construir. Há uma interdependência fascinante ali. A homossexualidade de Álvaro nunca é constrangida pela ilha, pelo contrário. Sua latência parece potencializada pelas situações ali acontecidas. A presença de um grupo de paraguaios imigrantes dedicados ao corte de madeira desperta em Álvaro o desejo por um dos trabalhadores, e este desejo só aparece no ato do trabalho, no transporte da madeira através da ilha, como se a equação da atração de um homem por outro só se resolvesse com a adição da terra. É o que talvez explique que Álvaro transe com um sujeito no meio do mato, mesmo quando havia a possibilidade de se fecharem no pequeno barco em que o homem estava. Mas a sexualidade só se completa no contato com a natureza, com os corpos nus no meio das árvores e folhas.

E não só o sexo. A sensação de complementaridade é geral. Isolada do resto da Argentina (e do mundo) pelo emaranhado de rios e afluentes, aquela pequena comunidade vive em regime de franca organicidade com a ilha. Santiago Otheguy percebe uma movimentação particular provocada pelo vento na plantação de um tipo de graveto típico do lugar, e depois reproduz este mesmo movimento numa partida de futebol, mantendo a câmera fixa frontal ao gol enquanto os jogadores saem e entram no quadro de acordo com a dinâmica do jogo. Nem a tentativa de ocultação de um crime, cometido por agentes exteriores a ilha, poderá ser bem sucedida. Desovado no rio, o corpo do homem assassinado eventualmente reaparecerá, uma vez que as águas baixem.

A sensibilidade de percepção de todo este regime de interações é o que retira a agenda estética de La León do simples fetiche observacionista. Instalado no interior de um universo particular, longe do aforismo psicológico, é do contato íntimo com estas pessoas e estes espaços por onde circulam que o filme vai armando sua idéia de caráter. Não tanto o caráter de Álvaro, Turu, dos paraguaios ou dos companheiros do jogo de futebol, nem muito menos da extensão interminável dos rios, da floresta densa, das lavouras, do vento e da chuva sempre presentes. Mas o caráter de sua própria condição de retrato parcial e condicionante de uma determinada encenação da realidade, e da possibilidade, materializada em La León, de aliar esta condição a uma parcela muito generosa de franqueza e entrega.

Rodrigo de Oliveira

 

 





Álvaro (Jorge Román) ao lado de um imigrante paraguaio:
a vida só se completa no contato direto com a natureza