UMA MOÇA DIVIDIDA EM DOIS
Claude Chabrol, La Fille coupée en deux,
França/Alemanha, 2006

Claude Chabrol sempre foi um amante da caricatura. Alternando desde o começo de sua carreira entre retratos em profundidade (Os Primos, Nas Garras do Vício) e as linhas aberrantes da superfície (As Simplórias), Chabrol desenha ainda e sempre sua comédia humana, sabendo que a alma humana se desenha sempre entre a singularidade dos acontecimentos únicos e o automatismo dos comportamentos repetitivos. Daí que um momento não necessariamente exclui o outro, mas complementa. Em Uma Moça Dividida em Dois, o diretor trabalha com atores mais famosos por seu valor como imagem do que pela abrangência e sutileza de seus dotes dramáticos, e o casting é perfeito para realizar seu filme mais desavergonhadamente zombeteiro, mais mordaz dos últimos anos.

Mais do que uma história de mistério – que é a ancoragem que Chabrol utiliza para estruturar muitos de seus filmes já desde os anos 60 –, Uma Moça Dividida em Dois se estrutura como um estudo de personagem a partir de um estudo de caso. Assim, vemos um pronunciado descompromisso com a narrativa como desenrolar de uma história. Aqui, ela serve única e exclusivamente para revelar os aspectos de personalidade das criaturas que habitam esse mundo e nada mais. Se há uma das coisas que se deveria elogiar mais em Chabrol é essa determinação em achar o foco dramático de seu filme e, seguindo-o à risca, eliminar tudo que não disser respeito a ele. Isso se imprime nos filmes como uma fluidez soberba que, associada à idéia de comentário psicológico-social, nos dá a deliciosa percepção de que aquilo que estamos presenciando, no fundo, é a dança dos comportamentos meio patológicos, meio convencionais, sempre curiosíssimos. que a sociedade apresenta de seus segmentos mais altos aos mais baixos.

Seguindo a classificação dada por Balzac a sua obra, Uma Moça Dividida em Dois inscrever-se-ia como um estudo de costumes nas "Cenas da vida provinciana". O filme observa comportamentos da aristocracia de província – aqui, Lyon – e sabe desenvolver muito bem o misto de opulência e visão restrita que comumente caracteriza cidades prósperas que não são grandes centros. Aqui, a história se desenvolve entre Charles Saint-Denis, um escritor bem-sucedido de meia-idade (François Berléand), Gabrielle, uma jovem deslumbrante que trabalha como a moça da meteorologia num jornal televisivo local (Ludivine Sagnier) e Paul, ou "filho Gaudens", um herdeiro milionário que não faz nada da vida (Benoît Magimel). Charles, homem casado com reputação pública de libertino, se interessa por Gabrielle, que logo apaixona-se perdidamente por ele. O herdeiro Gaudens, que já nutria intenso ódio pelo escritor, passa a considerar-se apaixonado pela moça – não sem muita afetação de criança mimada – e transforma esse capricho em idéia fixa. Dentro desse esboço dramático, percebe-se claramente, há espaço para um olhar pronunciado pelos afetos destruidores, por sensações que nascem como pequenas veleidades e ganham dimensões fatais que de partida ninguém poderia imaginar – pois, claro, o desenlace é trágico.

Quase todo filme de Chabrol pode ser interpretado como uma sátira (ao menos segundo a acepção de Frye, em que os espectadores sentem os personagens como sendo menos livres que ele), mas Uma Moça Dividida em Dois não dá muito espaço para que não se veja o filme de outra forma (geralmente Chabrol faz com que seus filmes operem no duplo registro de drama – ou mistério – e sátira). Para além dos efeitos de imagem dos personagens, a caracterização coloca os personagens freqüentemente em ridículo, pelo excesso de pompa dado à situações, pelo exagero das circunstâncias, por olhares libidinosos fora de lugar – como os da irmã de Paul –, mas acima de tudo porque o filme faz questão de jamais nos mostrar por que motivos os personagens são movidos pelas paixões que os dominam. É com tanta gratuidade que Gabrielle entrega-se perdidamente a Charles, é com mais gratuidade ainda que o filho Gaudens deposita toda sua felicidade na posse de Gabrielle, é com tanto desprendimento que Charles abusa e abandona a menina deslumbrada, que o filme produz mesmo uma certa agressividade no brusco das situações.

Se Uma Moça Dividida em Dois singulariza-se dentro da obra de Claude Chabrol, é pela enorme crueldade com que exibe insegurança, egoísmo, capricho e orgulho em seus personagens, e observa como muito naturalmente esses sentimentos se transformam em devoção e amor "genuíno" provocados pelo ócio ou por qualquer dispositivo mental, naturalmente humano demasiado humano. Pois se há algo que divide a moça em dois, não é a serra do mágico na metafórica cena final, mas o laço invisível que separa os sentimentos das razões que motivaram os sentimentos. Esse comportamento tão comum, aqui tão friamente transformado em outra coisa, é a matéria-prima para Chabrol fazer um de seus filmes mais centrados, de esbelta velocidade e composição (aqui, uma profusão de espelhos para dividir seus personagens em dois ou mais), e, se não se destaca em profundidade de análise, farta-se na profunda análise de superfície. Como Imamura, Buñuel ou Stroheim, Chabrol é um naturalista e ama observar os descaminhos dos homens e das mulheres.


Ruy Gardnier

 

 





O agudo senso de traço na caricatura...


...e o dividir-se em vários da moça
(Uma Moça Dividida em Dois de Claude Chabrol)