Claude
Chabrol sempre foi um amante da caricatura. Alternando
desde o começo de sua carreira entre retratos
em profundidade (Os Primos, Nas Garras do
Vício) e as linhas aberrantes da superfície
(As Simplórias), Chabrol desenha ainda
e sempre sua comédia humana, sabendo que a alma
humana se desenha sempre entre a singularidade dos acontecimentos
únicos e o automatismo dos comportamentos repetitivos.
Daí que um momento não necessariamente
exclui o outro, mas complementa. Em Uma Moça
Dividida em Dois, o diretor trabalha com atores
mais famosos por seu valor como imagem do que pela abrangência
e sutileza de seus dotes dramáticos, e o casting
é perfeito para realizar seu filme mais desavergonhadamente
zombeteiro, mais mordaz dos últimos anos.
Mais do que uma história de mistério –
que é a ancoragem que Chabrol utiliza para estruturar
muitos de seus filmes já desde os anos 60 –,
Uma Moça Dividida em Dois se estrutura
como um estudo de personagem a partir de um estudo de
caso. Assim, vemos um pronunciado descompromisso com
a narrativa como desenrolar de uma história.
Aqui, ela serve única e exclusivamente para revelar
os aspectos de personalidade das criaturas que habitam
esse mundo e nada mais. Se há uma das coisas
que se deveria elogiar mais em Chabrol é essa
determinação em achar o foco dramático
de seu filme e, seguindo-o à risca, eliminar
tudo que não disser respeito a ele. Isso se imprime
nos filmes como uma fluidez soberba que, associada à
idéia de comentário psicológico-social,
nos dá a deliciosa percepção de
que aquilo que estamos presenciando, no fundo, é
a dança dos comportamentos meio patológicos,
meio convencionais, sempre curiosíssimos. que
a sociedade apresenta de seus segmentos mais altos aos
mais baixos.
Seguindo a classificação dada por Balzac
a sua obra, Uma Moça Dividida em Dois inscrever-se-ia
como um estudo de costumes nas "Cenas da vida provinciana".
O filme observa comportamentos da aristocracia de província
– aqui, Lyon – e sabe desenvolver muito bem o misto
de opulência e visão restrita que comumente
caracteriza cidades prósperas que não
são grandes centros. Aqui, a história
se desenvolve entre Charles Saint-Denis, um escritor
bem-sucedido de meia-idade (François Berléand),
Gabrielle, uma jovem deslumbrante que trabalha como
a moça da meteorologia num jornal televisivo
local (Ludivine Sagnier) e Paul, ou "filho Gaudens",
um herdeiro milionário que não faz nada
da vida (Benoît Magimel). Charles, homem casado
com reputação pública de libertino,
se interessa por Gabrielle, que logo apaixona-se perdidamente
por ele. O herdeiro Gaudens, que já nutria intenso
ódio pelo escritor, passa a considerar-se apaixonado
pela moça – não sem muita afetação
de criança mimada – e transforma esse capricho
em idéia fixa. Dentro desse esboço dramático,
percebe-se claramente, há espaço para
um olhar pronunciado pelos afetos destruidores, por
sensações que nascem como pequenas veleidades
e ganham dimensões fatais que de partida ninguém
poderia imaginar – pois, claro, o desenlace é
trágico.
Quase todo filme de Chabrol pode ser interpretado como
uma sátira (ao menos segundo a acepção
de Frye, em que os espectadores sentem os personagens
como sendo menos livres que ele), mas Uma Moça
Dividida em Dois não dá muito espaço
para que não se veja o filme de outra
forma (geralmente Chabrol faz com que seus filmes operem
no duplo registro de drama – ou mistério – e
sátira). Para além dos efeitos de imagem
dos personagens, a caracterização coloca
os personagens freqüentemente em ridículo,
pelo excesso de pompa dado à situações,
pelo exagero das circunstâncias, por olhares libidinosos
fora de lugar – como os da irmã de Paul –, mas
acima de tudo porque o filme faz questão de jamais
nos mostrar por que motivos os personagens são
movidos pelas paixões que os dominam. É
com tanta gratuidade que Gabrielle entrega-se perdidamente
a Charles, é com mais gratuidade ainda que o
filho Gaudens deposita toda sua felicidade na posse
de Gabrielle, é com tanto desprendimento que
Charles abusa e abandona a menina deslumbrada, que o
filme produz mesmo uma certa agressividade no brusco
das situações.
Se Uma Moça Dividida em Dois singulariza-se
dentro da obra de Claude Chabrol, é pela enorme
crueldade com que exibe insegurança, egoísmo,
capricho e orgulho em seus personagens, e observa como
muito naturalmente esses sentimentos se transformam
em devoção e amor "genuíno" provocados
pelo ócio ou por qualquer dispositivo mental,
naturalmente humano demasiado humano. Pois se há
algo que divide a moça em dois, não é
a serra do mágico na metafórica cena final,
mas o laço invisível que separa os sentimentos
das razões que motivaram os sentimentos. Esse
comportamento tão comum, aqui tão friamente
transformado em outra coisa, é a matéria-prima
para Chabrol fazer um de seus filmes mais centrados,
de esbelta velocidade e composição (aqui,
uma profusão de espelhos para dividir seus personagens
em dois ou mais), e, se não se destaca em profundidade
de análise, farta-se na profunda análise
de superfície. Como Imamura, Buñuel ou
Stroheim, Chabrol é um naturalista e ama observar
os descaminhos dos homens e das mulheres.
Ruy Gardnier
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