“Por
que não fizeste
de mim vosso instrumento?”
As primeiras imagens de I’m
Not There mostram um ponto-de-vista. É através
dessa câmera-alguém que vamos passando por corredores
e camarins, até subirmos a um palco e nos descobrirmos
no Royal Albert Hall, casa de espetáculos inglesa
onde Bob Dylan realizou em 1966 aquela que talvez
seja a maior gravação ao vivo da história da
música. Mas, uma vez no palco, uma vez reconhecidos os músicos da banda e o
público imerso no mar de preto que se estende pela platéia, este ponto-de-vista
cessa, e nunca será retomado como tal. Só muito mais adiante voltaremos àquele
ambiente, àquele dia histórico, mas aí através de outros olhos. Se nestas cenas
iniciais compartilhamos a visão de alguém cuja figura nunca reconhecemos, o retorno
ao Albert Hall se dará através do editor de um programa de televisão,
crítico e inquisidor ferrenho de Dylan durante esta sua turnê britânica. Todd
Haynes repete os travellings que vão
abrindo
caminho no meio da multidão e faz o crítico entrar num elevador para, de surpresa,
jogá-lo no meio do público. O ponto-de-vista agora já não é o da
platéia vista a partir do palco, mas seu completo oposto.
A figura do crítico, interpretado por Bruce Greenwood, é mais que mera desculpa
para levar a câmera ao interior do teatro. Este
personagem é o único que merece atenção exclusiva de I'm Not There sem que esteja diretamente ligado às diversas configurações
de Bob Dylan. Pouco antes de chegar às galerias, o crítico vai ao banheiro
jogar água no rosto e então sofre uma alucinação: percebe que sua persona está multiplicada
em várias outras. Pelo espelho vê outro de si mesmo na pia vizinha, um terceiro
parado à porta, um quarto saindo nu do chuveiro, um quinto urinando
nos mictórios ao lado. Primeiro, Haynes invertera a ordem natural da dramatização
e transferira para o crítico, e não para a figura do próprio músico que sobe
ao palco, a chance de apresentar ao filme o momento mais decisivo da carreira
de
Dylan. Agora, o diretor utiliza a estratégia que está na própria base de I’m Not There e a aplica num personagem
alheio a ela: não só as personalidades de Dylan aparecerão multiplicadas, mas
também a do crítico de música, mesmo que apenas por um breve instante.
Localizar, identificar e observar o comportamento de alguém
que não faça parte do espírito criativo de Bob Dylan é importante porque I’m Not There existe a partir desta
criação tanto quanto a partir da recepção que ela tem. A atenção ao espectador,
ao crítico, ao fã, é a declaração de que é de suas bases – e exclusivamente
delas – que se pode partir. Todd Haynes joga com dados biográficos e verídicos
em todos os seis perfis diferentes que monta. Todos eles se referem, em alguma
medida, a passagens conhecidas da vida do músico. Ao mesmo tempo, Haynes lhes
aplica colorações cuja natureza está distante de qualquer senso de verdade ou
fidelidade histórica. A tentativa de dar conta de um personagem de trajetória
sabida
lidando diretamente com os traços desta trajetória se equilibra com a atividade
de criação livre-especulativa sobre isto que absorvemos de Dylan ao longo dos
tempos, enquanto observadores. Destas duas forças narrativas centrais que movem I’m
Not There surge o reconhecimento de uma mesma incapacidade. Imagens como
aquelas primeiras, onde supomos ter o
ponto-de-vista do próprio Dylan, são impossíveis porque é impossível sê-lo
verdadeiramente.
Não à toa, o músico Jude Quinn (Cate Blanchett), aquele que mais
próximo está do Bob Dylan real, não só pela aparência mas, principalmente, pela
coincidência de situações vividas por um e outro, é o primeiro a aparecer na
tela, logo após estas imagens em ponto-de-vista. E, não à toa, ele está morto
e
o que assistimos é um médico-legista fazendo sua autópsia, abrindo seu peito
e
fazendo jorrar dali seu sangue. Haynes encena a autópsia dando à seqüência uma
aparência muito semelhante àquela vista na mítica cine-reportagem americana que
supostamente documentava a autópsia de um dos alienígenas capturados em Roswell
nos anos 40.
Mas em I’m Not There, como lembra a
narração em off, “trata-se de um homem”. E parece que dele só poderemos ter aquilo
mesmo: o corpo. Por mais que tentemos investigar a natureza constitutiva deste
personagem, fuçando suas entranhas, colocando seus órgãos sob o microscópio,
seu espírito não está mais ali (porque mortes e ressurreições
fazem parte de sua própria essência – daí as inúmeras relações que Haynes faz
entre Dylan e Jesus Cristo). O Bob Dylan de I’m
Not There é aquele que pertence ao domínio do visível: o que podemos perceber
de suas letras, da força de sua performance nos palcos e na frente das
câmeras, da iconografia que se criou em seu entorno, da imagem que dele se fez
por anos e anos. É por isso que o filme não reproduz múltiplas personalidades
num ator só mas, ao contrário, reparte estas personalidades em corpos completamente
distintos, uma mulher, uma criança negra, homens de idades e
aparências diversas. Não se trata aqui de uma questão de esquizofrenia, mas de
anatomia.
E a maneira de I’m Not
There se ligar a este corpo é tomando parte dele, reproduzindo-o, para eventualmente
transbordá-lo. Em Velvet
Goldmine, o filme de Todd Haynes mais próximo deste aqui, o diretor dividira
a narrativa à Cidadão Kane, ecoando
diversos depoimentos entre si para que se construísse a imagem de um pop star
de personalidade completamente fugidia. O condutor destes depoimentos era um
jornalista, esta mesma instância observadora que I’m Not There traz em si. Mas o personagem de Christian Bale em Goldmine, ao mesmo tempo em que funcionava
como o inventariante da memória do músico inspirado em David Bowie
era também, ele mesmo, integrante desta memória. Coadjuvante, nunca conhecido
mas sempre presente, Bale participara de vários dos momentos que seus entrevistados
relatam. Essa dupla natureza, a do biógrafo de um tempo que é, ao mesmo tempo,
testemunha ocular e participante ativo da História, não está presente num só personagem
de I’m Not There: ela é o
próprio filme.
Na mais arrebatadora das personalidades de Dylan, ouvimos o Billy the Kid feito
por Richard Gere contar que sua vida de fora-da-lei, em que se apresenta para
cada pessoa que conhece com um nome diferente, em que pode chegar e sair dos
lugares sem nunca se obrigar a criar laços, em que vive sempre no trajeto entre
uma paragem e outra, lhe proporciona uma situação única. “É como ter o ontem,
o hoje e o amanhã na mesma sala”, diz ele. É como acumular as
experiências vividas através do tempo num mesmo e inquebrável espaço. Se a
impressão narrativa de I’m Not There é a
de fluxo constante (nomes diferentes, em lugares diferentes, sempre no trajeto
entre uma e outra coisa) é porque Haynes consegue fazer do filme esta “mesma
sala”, e ali dentro o ontem, o hoje e o amanhã explodem, se contaminam, se interpenetram,
sempre protegidos por esta consciência de corpo, por esta carne que os envolve
pela montagem associativa, não-linear, uma montagem que
propaga idéias, nunca as sintetiza.
E aí, repleta de contradição e caos (como bem diz um dos Dylans), reside a maior
questão de I’m
Not There. Há uma recorrência nas personalidades apresentadas. Cada um a
sua maneira, todos os personagens estão atravessando uma crise criativa, e ela
se baseia fundamentalmente num confronto moral entre a postura de um artista
e
sua inserção no mundo. O pequeno Woody Guthrie (Marcus Carl Franklin) canta a
vida dos vagabundos, dos trens onde pegam carona para cruzar o país vivendo de
bebida e sonho, mas é chamado à responsabilidade por uma senhora que não
entende como alguém que possua a sensibilidade dele possa se perder nesse tipo
de relato da banalidade quando o mundo está prestes a explodir lá fora. Ela insiste
que o menino “cante seu próprio tempo”, e é exatamente esta obrigação
que reverberará em Jack Rollins (Christian Bale) e Jude Quinn (Blanchett), quando
o compromisso de um artista com as questões do mundo em que vive estará sufocado
pelo rótulo da “canção de protesto” e de um ativismo político
automático. Robbie (Heath Ledger) é um ator que fez sucesso interpretando Jack
Rollins no cinema e que agora vê sua vida familiar transtornada pela maneira
como as transformações que a carreira lhe
provocou não encontram espaço no universo estável em que vivia. Por fim, o poeta
Arthur Rimbaud (Ben Whishaw) está sendo interrogado
num tribunal que lembra as audiências anticomunistas do período macarthista americano.
Lá, ele defende a idéia de que a criação deve ser evitada, porque fatalmente
levará a uma má interpretação, num processo eterno e imutável de
falta de correspondência entre aquilo que o artista imagina e a maneira como
o
produto desta imaginação será visto.
Este percurso temático que conecta os personagens é todo
dito às claras, de maneira bem explícita. É dado pela reencenação de diversos
momentos da vida de Dylan (uma famosa entrevista durante a turnê inglesa de 1966,
registrada por D.A. Pennebaker em Don’t
Look Back), pela ligação direta entre a invenção de uma determinada
situação e a referência a alguma imagem já associada à figura do músico (um passeio
de Robbie e sua mulher pela rua repete a foto da capa do
disco The Freewheelin’ Bob Dylan, de
1963, em que vemos Bob ao lado de Suze Rotolo, sua esposa na época) ou pela
associação entre o momento encenado pelo filme e as músicas que Dylan estava
compondo nesta mesma época (o falso documentário protagonizado por Jack Rollins
mostra o ex-músico de protesto convertido à fé cristã cantando “Pressing On” na
igreja em que é pastor, música gravada pela primeira vez num disco chamado Saved, de 1980, em cuja capa vemos o dedo
de Deus iluminando uma série de mãos que se estendem em sua direção). Por bonitos
que sejam, estes momentos nunca deixam de soar como uma espécie de
dívida com o real, uma obrigação de dar conta de um personagem da maneira como
ele se apresentou, uma tentativa de apreendê-lo em sua própria língua, por suas
próprias palavras, pela religação das imagens que ele mesmo produziu. Estes momentos
nunca deixam
de parecer uma autópsia.
E ainda assim, mesmo ali naqueles exemplos, I’m
Not
There é completamente
insubmisso ao tratamento biográfico estrito. Todd
Haynes está, como já fizera em Longe do
Paraíso, trabalhando com o reflexo da imagem original de alguma coisa (lá o
melodrama sirkiano, aqui a iconografia pop-histórica), com um gênero estabelecido
para ela e que modula sua construção, e preenchendo-o de sentidos rigorosamente
contemporâneos, com um modo de enxergar a produção visual que
está contaminado pela experiência do homem de agora. Haynes é, ele também, um
personagem desta crise moral: no momento em que um diretor for chamado a defender
seu
projeto de cinema diante do mundo, o que ele dirá? Que “provas” apresentará em
sua defesa?
É isto que torna o segmento de Billy the Kid em I’m Not There tão poderoso. As referências à vida
de Bob Dylan estão lá, as citações às letras de música e às capas de
disco também. Há até mesmo uma conexão entre o fora-da-lei e o personagem do
menino Woody Guthrie, que reaparece e dá um sentido de círculo
fechado à narrativa, no encontro do mais novo com o mais velho dos rostos de
Dylan. Mas tudo o que antes era esclarecimento agora é, como no próprio nome
da
cidade, puro enigma. Riddle é um lugar de sonho e desespero, divididos em porções
iguais.
As crianças da cidade vivem a adrenalina do Halloween, e estão todas fantasiadas.
Ao mesmo tempo, o anúncio de que uma estrada cortará o povoado ao
meio e destruirá metade da floresta local dá início a uma onda de suicídios.
Um
dos mortos era responsável pelo zoológico da cidade, e sua ausência acaba causando
a fuga de todos os animais das jaulas. Perplexo, Billy the Kid sai de seu isolamento
numa
cabana no meio do mato e decide encarar o pandemônio. Cavalgando na
direção da cidade, enxerga no horizonte, sobre a copa das árvores, as imagens
da destruição de uma guerra qualquer, vistas como se fossem reportagens de
televisão. Assim Riddle aparece diante de seus olhos: no coreto, uma banda canta
o funeral de uma das suicidas, uma menina cujo cadáver está de pé sobre o palanque,
de olhos assustadoramente abertos, enquanto metade das pessoas tenta fugir e
a outra assiste atônita ao espetáculo mórbido, todos misturados entre avestruzes,
girafas e crianças em trajes de festa. A imagem do crítico de
música retorna, e o mesmo ator interpreta o carrasco de Billy, Pat Garrett, que
até aquele momento acreditava ter matado o fora-da-lei.
É o fim do mundo. O encerramento de um ciclo, o apocalipse
de uma história que se sustentara até ali mas que, atingida em sua própria base,
desabara. Billy the Kid até tenta se rebelar contra a fatalidade da
construção da estrada e a conseqüente destruição de Riddle, mas não pode fazer
muito a não ser fugir ele também. Um mundo se parte, e a única resposta
possível é a criação de outro. I’m Not
There não é um filme sobre Bob Dylan, mas um filme sobre as ruínas de sua
imagem. Sobre todos os universos pessoais criados por ele e abandonados ao primeiro
sinal da falência de sua integridade. Todd Haynes desconhece outra maneira de
se relacionar diretamente com seu tempo que não compreenda a própria
invenção deste tempo. Esta é sua resposta àquele dilema moral: Haynes filma sua
própria época porque é capaz de criá-la, é capaz de agrupar em Riddle a mais
estarrecedora representação deste mundo em que agora vivemos, este mesmo mundo
ano-2007 repleto de sonho e desespero, sem nunca nos deixar esquecer que ele é apenas
isso, uma criação de alguém. A única maneira de nós, espectadores privilegiados
e primeiros observadores destas novas imagens, nos ligarmos a
estes mundos imaginários é nos tornando parte de seu corpo. Quando coloca o menino
prodígio negro, o trovador convertido, o poeta maldito, o rockeiro rebelde, o
ator transformado e o fora-da-lei, todos na “mesma sala”, Haynes está criando
a utopia de um mundo-Dylan. Está gerando um novo corpo a partir dos
cadáveres deixados pelo músico no caminho, um espaço onde toda a experiência
artística dele se entrelaça como talvez nunca tenhamos visto antes.
E assim, a última imagem do filme é de uma quase melancolia. É a primeira e única
vez que Bob Dylan, ele mesmo, aparece na tela. Mas o que deveria ser uma fincada
de bandeira, a demarcação da conquista deste território
que é a vida e obra do músico, não é mais que a constatação de uma jornada encerrada.
Quando o filme termina, seu poder também se torna História, também se dispõe
a
autópsias como esta que acabo de escrever. Tão próximos chegamos de
apreendê-lo, e tão rápido ele soube se desvencilhar. Porque quando I’m Not There termina, mesmo que esta última
imagem insista nisso, Bob Dylan já não está lá. Ele já se foi.
Rodrigo de Oliveira
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