I’m Not, I’m Not Here, I’m
Not There. O jogo de letras na seqüência de créditos
do filme cria essa série de sintagmas e justapõe por
instantes nomes e sobrenomes de atores distintos. O
procedimento evoca a operação principal de Todd Haynes:
a realização de um retrato sem contornos fechados e
sem traços firmes, no movimento e no vazio, na abstração
e no caos. Menos um gesto picassiano do que pollockiano.
O resultado são narrativas entrelaçadas que remetem
umas às outras, deixando claro que os diversos personagens
são habitados pelo mesmo espírito. Um espírito sem
forma prévia e imbuído de um desejo constante de afirmação
e de invenção.
As “muitas vidas” de Bob Dylan, que servem de inspiração para o filme – junto
com suas músicas – dão então origem a tipos mais ou menos reconhecíveis: o rockeiro
controverso, o ator mulherengo, o garoto negro talentoso, o caubói justo, o gênio
incompreendido, o poeta maldito. Neste caleidoscópio de personas, em que os comportamentos
de cada uma delas por vezes se confundem, para se distanciar em seguida, temos
uma espécie de “tradução” da postura de um artista de não se deixar capturar,
seja pelas manobras da indústria cultural, seja por uma multidão ávida por ídolos.
A constante reconfiguração de identidade, embora esbarre ela mesma em ícones
facilmente apreensíveis, responde igualmente à extensão do gesto de criação a
si mesmo. Não apenas a música deve ser reinventada – a exemplo da introdução
das guitarras elétricas ou da mudança de uma perspectiva político-social nas
letras para uma perspectiva lírico-pessoal –, como a própria imagem de si. Pela
potência absoluta desta postura, não basta a Todd Haynes encenar a história de
Bob Dylan através de diferentes personagens, é preciso colocar diante da câmera
seres diversos; é preciso múltiplos atores.
Se a premissa por si só poderia correr o risco de tornar-se uma composição didática
sobre a prática de uma “estética de si”, nas mãos de Haynes ela ganha a dimensão
de um empreendimento conceitual cuja viabilização só poderia se dar em termos
operísticos e monumentais. Porque seu Bob Dylan é o exemplo magnífico de um artista
absoluto: aquele que se dilui em sua própria obra, que cria para perder-se na
criação, num jogo de esconde-esconde que encarna a recusa sistemática em se deixar
localizar e identificar. Por isso é preciso também encontrá-lo (nos fatos biográficos
marcantes) e perdê-lo (nos delírios ficcionais e metafóricos do filme) o tempo
todo.
Na colagem de formas – jornal televisivo, docudrama, documentário, ficção cinematográfica –, I’m
Not There como que multiplica suas fontes investigativas, suas frentes de
ataque, para quem sabe cercar o objeto da busca, encurralá-lo em todas as saídas
do labirinto. No entanto, o desejo primordial nunca é apreendê-lo – pois desde
o início (desde os créditos?) é assumida a impossibilidade de um porto seguro –,
mas celebrá-lo a partir dele mesmo, colar-se a ele. O filme toma, pois, para
si esta vontade de ser multiforme, indefinível e intempestivo, mergulhado em
música, confundindo tudo, fugindo de tudo. Alimenta-se da cultura pop (de todos
os seus signos e fantasias) para ser devolvido a ela como objeto de consumo fetichista:
o filme-acontecimento sobre Bob Dylan.
Essa dimensão warholiana da iniciativa de Todd Haynes coroa sua preocupação em
retrabalhar signos artísticos, culturais e sociais ao longo de sua carreira,
sempre a partir de sua sensibilidade particular. Embora I’m Not There incorpore
um devir-Dylan, ou um desejo de fundir-se à sua música e à sua recriação do mundo,
ele nunca deixa de ser parte do universo do diretor e de fazer coro à sua grande
questão: a inadequação do indivíduo ao seu entorno, a não-submissão a padrões
de comportamento. E este “eco” encontrado no músico se expande ainda mais justamente
pela identificação com o procedimento artístico de retroalimentação entre obra
e sociedade.
I’m Not There é, portanto, um filme que não cabe em si. Todos os
seus movimentos internos, de imagens e de sons, transbordam uns em direção
aos outros, numa celebração em que a melancolia dos percalços enfrentados
por esse herói haynesiano emblemático (no caso, a rejeição pelos fãs e
pela imprensa de suas mutações, ou o inabalável desejo do coletivo de domesticá-lo,
enquadrá-lo em seus padrões “artísticos”) é um dado menor diante da grandiosidade
da cruzada. Tempo-espaço do mundo e tempo-espaço artístico (musical ou
cinematográfico) se curto-circuitam e se fendem no processo: sobre o precipício,
a subjetividade de um “trapezista”, como diz um dos Dylans do filme – tanto
a de Haynes/Dylan, arquiteto do impensável, quanto a de seu espectador,
necessariamente um detetive apaixonado pelo enigma.
Tatiana Monassa
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