O clube Paradise que serve
de cenário único para Go Go Tales é um organismo
vivo que existe com a função singular de transformar
o corpo em peça de expressão artística. Go Go Tales se
diferencia de outros filmes de Ferrara por ser todo
rodado em estúdio, um filme de Nova York, filmado na
lendária Cinecittá. Um espaço mais abstrato, portanto,
fazendo com que o cineasta abdique de sua habilidade
para captar a ambiência das suas locações. Nunca podemos
compreender de todo o Paradise, mas no meio dos seus
longos travellings (num trabalho exemplar do
fotógrafo Fabio Ciancetti), Go Go Tales nos
apresenta o que ele tem de fascinante, a aura que justifica
que seu dono/apresentador Ray Ruby (William Dafoe)
seja de tal forma devotado a mantê-lo funcionando,
a maneira como neste lugar todos, do cozinheiro ao
contador, alcançam uma função maior do que sua ocupação
a principio sugira.
Ao espaço abstrato, Ferrara adiciona também uma noção de tempo igualmente artificial. Go
Go Tales é um desses filmes de tempo condensado em que o mundo todo cai sobre
a cabeça do protagonista em questão de horas: seu dinheiro acaba, suas strippers (sem
pagamento há dois dias) ameaçam entrar em greve, a dona do prédio resolve exigir
os 4 meses de aluguel atrasado e anunciar que tem uma ótima proposta de uma loja
de conveniências, seu irmão/financiador anuncia que vai cortar a grana, e, para
contrabalancear tudo isso, Ray monta um esquema para fraudar a loteria, com sucesso,
se ele ao menos conseguisse encontrar onde escondeu o bilhete premiado. É uma
concentração de trama tão ampla num espaço tão focado que a William Dafoe só é permitido
duas posturas ao longo do filme: a de showman à frente do microfone e
a da esquiva retraída no resto do tempo. Isto tudo, somado a tendência do filme
de misturar múltiplas sub-tramas não-ligadas a Ray ao mesmo tempo, não só reforça
a impressão de que estamos diante de um organismo vivo se movendo em diversas
direções, mas dá a ele uma temporalidade própria, cria a impressão de que um
filme de 4 horas foi editado para menos de cem minutos sem que no processo uma única
informação se perdesse.
O que, então, torna Go Go Tales um filme que nunca soe abstrato, muito
pelo contrário? A crença de Abel Ferrara no corpo como matéria autêntica de expressão.
Isto fica registrado na maneira que ele capta cada movimento e gesto de seus
atores (boa parte da primeira metade do filme é entrega à dança das strippers),
na entrega do filme à improvisação, na maneira como o cozinheiro age com segurança
enquanto prepara seus cachorros-quentes ou que Asia Argento beija um rotweiller
no palco. Abel Ferrara escalou um grande número de veteranos no filme (Bob Hoskins,
Silvia Myles, Burt Young) e os coloca todos para improvisar livremente. Quase
tudo em Go Go Tales parece surgir na corrente do momento, com um olhar – e
ouvido – perfeito para captar genuinidade de expressão. Desde Olhos de Serpente – seu último
sobre criação artística – Ferrara não se dispunha de tal maneira a trabalhar
neste registro de caos, em que a linha entre autêntico e artifício parece tão
dissolvida. Go Go Tales é um filme-laboratório, que pode nem ser sempre
bem sucedido (o episódio com o marido da stripper é óbvio, por exemplo),
mas é na maior parte do tempo extremamente eficaz (qualquer plano com Myles,
ou Stefania Rocca vendendo seu roteiro no meio de uma performance), e nunca menos
que fascinante. Ao ponto que em nada surpreende quando o Paradise se transforma
no fim de noite em espaço privilegiado para que seus empregados exibam seus outros
dotes artísticos num show de talentos que prima pela tom afetuoso e culmina com
um inspiradíssimo Matthew Modine fazendo um número criado pelo próprio cineasta.
Mas é mesmo na figura de Dafoe que Go Go Tales encontra seu sentido. Ray
Ruby é um artista, um apostador e um quase prostituto no seu desejo de garantir
que seu veiculo de expressão siga funcionando, Cosmo Vittelli de A Morte do
Bookmaker Chinês para o nosso tempo. É também Abel Ferrara; e a simbiose/possessão
que acomete Dafoe é nunca menos que assustadora. Go Go Tales é um grande
tratado sobre os sacrifícios necessários para manter um organismo vivo funcionando,
obra de um cineasta expatriado (não é acidente que o temor do despejo mova boa
parte da trama), que durante mais de 80 minutos lança mão de cada recurso à sua
disposição pra louvar e apresentar o custo necessário para manter a sua carruagem
de ouro funcionando. Mas ao final Ferrara se cansa e, como Chaplin em O Grande
Ditador, resolve permitir ao seu alter-ego que fale diretamente para a platéia
e o que cineasta e o ator – a esta altura tornados um só – extraem deste momento é nunca
menos que emocionante e inventivo. Se Go Go Tales já não se revelasse
uma obra-prima até então, se tornaria uma naquele instante, naquele instantâneo
do artista como figura não-reconciliada reclamando seu espaço de autenticidade,
dedo em riste na vitória ou na derrota. Momento mais Abel Ferrara jamais foi
filmado.
Filipe Furtado
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