A
Prova de Morte é o filme de Tarantino que
mais se afronta a uma questão que está
no cerne de seu cinema: o retrabalho e a reavaliação
de gêneros cinematográficos considerados
menores, em especial os que trabalham com uma gratuidade
de espetáculo e um forte poder icônico.
Algo que era constitutivo do cinema em seus primeiros
quinze anos (daí obras-primas como The Big
Swallow) e foi sendo progressivamente jogado
para segundo plano em matéria de seriedade, para
abrir espaços mais "nobres" para os
filmes com ênfase no narrativo, no simbólico,
no dramático. Não que esse "cinema
de atrações" tenha sido jamais abandonado:
ele foi minimizado nas produções oficiais
mas sempre onde se vê uma bela má
atriz ou uma explosão, há atração
e intensamente explorado nos gêneros B.
É claro que o processo de priorizar o simbólico
sobre o icônico foi uma operação
natural para uma arte nova que desejava logo entrar
no circuito de inscrição das artes nobres,
ainda que boa parte dos modernismos do século
XX tenham buscado destituir o simbólico dos dramas
e do psicologismo pelo icônico do choque (o que
no cinema se confere com O Cão Andaluz,
Eisenstein, Vertov...). Mas como tudo que se recalca
acaba uma hora ou outra voltando pela janela, eis que
a partir da década de 80 o icônico volta
às imagens em movimento carregado pelo clip,
pela sensualidade gélida do plástico e
do neon e pelo desejo, algo individualista, algo libertador,
de fruir as imagens pelo simples impacto provocado pelo
ícone apresentado (algo que, como operação
estética, varia em níveis de nobreza de
Caravaggio à pornografia).
Os anos 90 são esse momento em que o ícone
volta definitivamente, e isso funciona tanto do ponto
de vista do cinema visto como mais nobre, em sua busca
pelo sensorial e pelo primitivismo do instante e do
fluxo (Hou Hsiao-hsien pós-96, Apichatpong Weerasethakul,
Claire Denis) quanto no consumo pop – paralelo no tipo
de operação e também na grandeza
–, em seu desejo de trabalhar com uma iconografia bem
estabelecida e identificável (os gêneros,
ainda que as referências diretas e obscuras não),
uma gratuidade de fruição e revalorizar
aspectos prosaicos de comportamento, dando a eles uma
atenção tão grande e magnificando-os
de tal forma (hiper-realismo, é?) que tudo isso
faz com que as obras garantam-lhe um diferente estatuto.
No cinema, o rei absoluto desse tipo de procedimento
é Quentin Tarantino. E A Prova de Morte,
como se disse, é o filme dele que se afronta
mais diretamente com a questão do imaginário
vagabundo de exploitation, é aquele que se faz
questão frontalmente, e não mais como
citação (Pulp Fiction), amálgama
(Kill Bill) ou universo (Jackie Brown).
Em A Prova de Morte, trata-se diretamente de
reproduzir, tanto naquilo que o público hoje
vê como qualidade quanto aquilo que se considera
ruído, um imaginário de filme de garotas
& carros & tiradas espirituosas & música
pop, algo entre o blaxploitation e o cinema de
Russ Meyers. O acabamento meio porco (variação
luminosa, cortes ríspidos), decupagem às
vezes meio óbvias ou desequilibradas (campos-contracampo),
as também características da própria
exibição: cópias surradas, com
riscos verticais, saltos de montagem nas cenas, mudança
no registro de cor de um rolo pra outro, etc. Estamos
num nível de tamanha emulação que
A Prova de Morte pode tranqüilamente figurar
no rol dos filmes de indústria recentes que,
por trás de sua aparência pop, são
verdadeiros exercícios conceituais e experimentos
em referencialidade extrema (Longe do Paraíso
de Todd Haynes, Psicose de Gus Van Sant).
Mas, ao mesmo tempo, temos o dado da realidade de circulação
do projeto (que aliás se inscreve na essência
estética do filme): Grindhouse não
será exibido em salas grindhouse, e o
saber de Tarantino não é o mesmo saber
dos diretores que faziam esses filmes (quanto ao culto,
nem se fala). Um desnível se faz, e se a brincadeira
entre diferença (talvez fácil demais)
e repetição (impossível) pode ser
divertida, a tarefa de levar um tal projeto demanda
não só comprometimento, mas um real amor
e sinceridade em relação às imagens
que se está referenciando (e reverenciando) para
não se colocar acima demais e deixar claro um
déficit de saber (o célebre efeito "olha
aqui, estou fazendo isso"), e ao mesmo tempo saber que
o colocar-se lado-a-lado demais representa uma solução
um tanto hipócrita. Então, não
é simplesmente bom mocismo dizer que há
uma completa honestidade em relação ao
que Tarantino exibe em A Prova de Morte, mas
a declaração de que o dificílimo
tom certo para dar conta de um imaginário, ao
mesmo tempo tão na moda e ao qual se imprime
um olhar mais de superioridade do que de filiação,
foi encontrado.
Porque temos diante de nós um cineasta que realmente
pouco se importa se os elementos com os quais ele vai
trabalhar são de bom tom ou não, e tem
a deliciosa cara de pau de fazer dos momentos mais importantes
de seu filme uma porrada frontal de carros, uma lap
dance que valoriza eroticamente a barriga de Vanessa
Ferlito, o vestidinho de cheerleader de Mary
Elizabeth WInstead, e, claro, o típico momento
clímax – e, se é grindhouse mesmo,
tem que ter um valor como "em si" maior do que adequação
à intriga (afinal, coesão é uma
preocupação dos "simbólicos") –
da perseguição de carros com direito a
uma mulher (a dublê Zoe Bell, aqui como atriz)
solta na parte frontal do carro. Para Tarantino, o decisivo
no processo artístico é o efeito e, principalmente,
a minúcia na construção desse efeito.
Uma velocidade e um afinco na construção
das falas dos personagens que é muito mais do
que o conteúdo do que está sendo dito
(expresso de forma mais límpida na repetida fala
do "kinda cute, kinda hot, kinda sexy, hysterically
funny, but not funny-looking guy who you could fuck"),
uma sabedoria que estima verdadeiramente o jogar conversa
fora (a conversa sobre Dave, Dee, Dozy, Beaky, Mitch
& Tich ou sobre filmes de carros como Vanishing
Point) e, mais especialmente, a sensibilidade pop
de juntar dois e dois e fazer com isso mais do que quatro.
Isso é patente no uso que ele sempre faz da música
em conjugação com a imagem, e que se configura
em termos de intriga com o confronto final, entre um
perseguidor maníaco e um grupo de garotas que
não deixam barato. Zatoichi meets the one-armed
swordsman? Godzilla vs. Mothra? Naturalmente
é disso que se trata. Mas a graça particular
de Tarantino é fazer com que um embate desses
nasça quase como um capricho, como se o filme
de uma hora para outra também pudesse virar um
filme de Rohmer, uma animação, uma cena
de kung fu ou Operação França.
Há algo em A Prova de Morte que acrescente
ao que Tarantino já fez? Não exatamente.
Dessa vez, é mais uma questão de afinação
do que de originalidade, de empreender um desvio na
rota com a finalidade de seguir melhor seu caminho adiante.
Portanto, mais uma etapa no processo do que um fim a
se chegar. Em todo caso, o trabalho na elaboração
do efeito permanece intacto, e não é comum
ver em outros cineastas aquilo que Tarantino sabe manejar
com tanta naturalidade quanto respira ou caminha. Icônicos,
saibamos apreciar a rara arte de fazer perder o fôlego,
de fazer rir e de jogar com a imagem fazendo de seu
fetiche uma verdadeira religião. Pois, mais uma
vez, o sujeito mostrou a que veio.
Ruy Gardnier
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