O interesse por Cuba como o “lado
de lá” da experiência
política mundial já parece esgotado há tempos. Boa parte da atenção que tem se
dado ao país no cinema dos últimos tempos acaba, eventualmente, se filiando ou
a uma idéia de desmistificação da ilusão revolucionária, onde o pragmatismo da
pobreza em que a população cubana vive atualmente é tomado como espécie de prova
cabal de um equívoco histórico e desde sempre fadado ao fracasso, ou
então à busca de certos valores próprios da vivência socialista que ainda permanecem
arraigados no caráter cubano, tomando-se esta perenidade do ideal e do sonho
também como a prova de algo, mas aqui do sucesso e da atualidade do
projeto.
A Cortina de Açúcar, conscientemente,
abriga estas duas grandes tendências. Mas, de todo modo, as imagens vistas ali,
em seu estatuto de iconografia (ruínas de prédios antes esplendorosos, carros
velhos, estrutura urbana deteriorada, as cabeças falantes dos entrevistados),
já nos são bastante conhecidas. Esta Cuba é a mesma que alimenta os programas de canais a cabo
e os documentários que, às dúzias, sempre nos chegam pelos festivais ou no circuito.
O interesse no filme de Camila Guzmán Urzúa é ela própria: o que há de diferente
aqui é o filtro da experiência pessoal da diretora, a perspectiva de quem viveu
o sonho da geração de ouro da Revolução, que nasceu e cresceu no
auge da pujança econômica da ilha, no momento em que Cuba era, de fato, um outro
mundo possível – e, mais que isso, real. O olhar de A Cortina de Açúcar não escapa da iconografia, mas os sentidos de
que estas imagens serão preenchidas acabam se sobrepondo àqueles de que elas
já estão naturalmente investidas. É, no fundo, um filme sobre o filme que uma
auto-exilada consegue realizar a partir de sua própria condição pendular entre
o pertencimento e a distância daquele ambiente.
E aí, a seqüência que mostra uma das diversas manifestações
políticas organizadas pelo governo, onde uma multidão se reúne diante de um palco
para cantar hinos em louvor à pátria, sacudir mini-bandeiras de Cuba feitas de
papel, para depois se seguirem planos que mostram as bandeirinhas jogadas no
chão, pisoteadas e molhadas pela chuva, sendo recolhidas pelo
caminhão de lixo, esta seqüência de metaforização óbvia do estado atual do ideal
revolucionário não aparece como um dado coletado no contato com o cotidiano cubano.
A narração, sempre presente e assumida pela própria diretora, enfatiza o tom
demagógico daquela manifestação, relembra a destruição da estrutura real do Estado,
uma destruição que este tipo de encontro de exaltação
patriota só quer esconder. Quando vê as bandeirinhas jogadas no chão, A Cortina de Açúcar rapidamente se cala,
e deixa a tal metáfora falar por si mesmo. O que houve entre o simples registro
e sua reprodução no corpo de um filme foi a adição de um sentimento não tão nobre,
mas nunca disfarçado aqui. A proximidade de Urzúa com aquilo de que trata lhe
permite, como neste momento, o puro ressentimento.
É talvez esta possibilidade, esse salvo-conduto da
experiência pessoal, que torne todo o discurso de A Cortina de Açúcar sempre tão rarefeito de idéias. Já havia na
própria estratégia do filme a consideração de um painel sócio-histórico, mas
a
narração aparece a todo momento como que para nos assegurar a materialização
daquilo
que, as imagens por si, já nos ofereciam. A garantia da inserção de
Urzúa na história que queria contar já estava dada desde o começo quando. Segurando
a câmera numa mão e com a outra colocando e retirando da frente da lente uma
foto antiga de sua escola, contrapondo-a com a imagem atual no fundo do quadro,
Urzúa anunciara sua participação na construção daquele retrato, onde sua
posição atrás das câmeras era pura necessidade técnica (não há equipe, é sempre
o punho da diretora, é sempre sua mão a guiar a câmera).
Num plano belíssimo,
veremos Urzúa entrevistando a própria mãe, ambas de frente para um espelho. Na
posição tradicional do entrevistado num documentário, a mãe está sentada à frente,
olhando para a câmera e contando a história da fuga da família do Chile logo
após o golpe militar e do abrigo recebido em Cuba. Mas Urzúa aparece o tempo
inteiro,
no reflexo do espelho. Ela está sentada num móvel, com as pernas
dobradas, típica postura relaxada, quase adolescente, que só podemos ter mesmo
na casa dos nossos pais. Com a câmera na mão e os fones de ouvidos posicionados
para acompanhar a captação do som, Urzúa nos permite ver aquilo a que talvez
nunca
tenhamos acesso pleno no cinema. Sua mãe se emociona, chora, silencia, e a filha,
agora na posição da documentarista, reage às falas da mãe – e podemos ver suas
reações, porque o reflexo no espelho a torna, junto da própria câmera, também
personagem
daquela
imagem.
Boa parte de A Cortina
de Açúcar se prende à retomada de contato de Urzúa com os velhos colegas
de
classe. Alguns poucos restaram em Havana, outros estão de visita à cidade no
momento em que o filme se realiza, mas a maior parte deles fugiu do país durante
o chamado “Período Especial”, a crise econômica vivida a partir da
queda da União Soviética. Há uma articulação de pensamento e uma visão
histórica natural em todas estas pessoas, sempre bastante conscientes do momento
em que vivem, do que as fez partir ou ficar em Cuba, de como lidam com
a frustração de seus sonhos. E, ao mesmo tempo, nunca se perde a dimensão da “conversa
entre amigos”, a inclusão das experiências vividas pela própria diretora em alguns
dos depoimentos, alguém a chamando de “Camilita” ou relembrando alguma travessura
compartilhada. O retrato geracional está inevitavelmente contaminado pela participação
afetiva, o documentário histórico
contaminado pelo filme-feito-com-as-próprias-mãos: já existe uma primeira pessoa
anunciada ali. Mas há a narração, que nos introduz uma dureza e uma amargura
constantes,
inabaláveis.
E, ainda assim, sob a chance terminar o filme com um momento arrebatador,
onde Urzúa e um amigo listam, um a um, todos os amigos de
infância que escaparam do regime castrista e para que país se mudaram, sob a
foto antiga da classe toda reunida, Urzúa se estende um pouco mais. Retoma
o
barulho
de pátio
escolar e crianças correndo e gritando com que abrira os créditos iniciais, e
mostra uma menina uniformizada, seguindo até o colégio. Como em todo o resto
do
filme, o ressentimento do discurso se complementa com um quê de
esperança, a um pé da melancolia e a outro da fé na transformação daquele
cenário. E é dessa dúvida, muito mais que de suas certezas, que A
Cortina do Açúcar tira sua verdadeira força
Rodrigo de Oliveira
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