A Casa de Alice se insere
perfeitamente no perfil cinematográfico brasileiro contemporâneo.
Podemos arriscar dizer que o filme dialoga tanto com
Cão sem Dono, de Beto Brant, quanto com O
Céu de Suely, de Karim Ainouz. Com o primeiro, por
também recorrer a um certo olhar documental, com interpretações
e iluminação naturalistas, por exemplo; com o segundo,
por pender a um certo melodrama, ainda que tratando
de questões reais, inseridas no cotidiano. Mas há uma
linha bastante tênue indicando o alcance de um filme.
Tanto O Céu de Suely quanto Cão sem Dono atingem
vôos altos, indo a fundo em suas propostas, mantendo
um todo preenchido, cativante e sustentável.
O mesmo já não se pode dizer de A Casa de Alice,
que passa do ponto, ultrapassando essa linha t^o
se pode dizer de Casa de Alice, que passa do ponto,
ultrapassando essa linha te e sustentênue, caindo
em psicologismos superficias,
situações forçadas e personagens que operam em função
de acontecimentos.
A casa de Alice é na verdade a casa de sua mãe, personagem
que em um primeiro momento até cria semelhanças com
o porteiro Elomar, de Cão
sem Dono. A forma cativante que este tinha na fala,
sempre cheia de afeição – reforçada pelo tom documental
–, aquela têm no olhar, observador e silencioso.
Ambos obtém certo conhecimento que não remete
diretamente a lugar algum. O porteiro-pintor tem uma
sabedoria da vivência, transmitida com diálogos perspicazes.
A velha tem a sabedoria de se portar com sobriedade
na administração da casa (de Alice), passando desapercebida,
mas ciente do barco que domina. Alice, no entanto, dialoga
com Suely. Ambas recebem um tratamento parecido, uma
vez que cometem atitudes não necessariamente justificadas,
mas são compreendidas pelo olhar do diretor que as filma.
Essa compreensão é passada ao espectador a partir de
aproximações ligadas ao contexto em que são inseridas.
Em ambos os casos, o espaço (e seus
acontecimentos) são determinantes nos desdobramentos.
Mais do que identificar certos e errados, os personagens
são tratados com naturalidade. Mas se em Karim
e em Beto Brant havia poesia, em Chico Teixeira há crueza
e maldade.
Na casa de Alice, com exceção de D. Jacira, a avó, ninguém
é isento de nada. Todos são acusados, vítimas e cúmplices.
A grande maioria das situações propostas provoca obrigatoriamente
o conflito entre personagens e tudo conspira em função
para que as pessoas entrem em choque. O universo de
Chico Teixeira é povoado de situações-limite em que
o espaço do outro é obrigatoriamente invadido. Começamos
o filme com o relato observacional
de uma família da classe média de São Paulo. Um a um,
somos apresentados a todos os personagens, havendo,
inclusive, certo traço exagerado em suas descrições.
Mas nesse primeiro momento, vemos uma funcionalidade
normal na casa. Até os acontecimentos se iniciarem e,
em forma de dominó, a casa quase vir a baixo, rompendo
todos os laços afetivos, balançando a base familiar.
Thaís, jovem vizinha de Alice, confessa estar apaixonada
por um homem bem mais velho e casado. Alice, ainda que
não concorde com a situação, acaba por ajudar a amiga,
cedendo-lhe um perfume capaz de não deixar o homem escapar.
Já de início há a suspeita de se tratar do marido de
Alice. E após alguns indícios, isso lamentavelmente
se confirma. Para fazer valer o potencial do acontecimento,
há toda uma construção de clima, supervalorizando o
fato: a velha Jacira acha fotos da garota na carteira
do pai e o irmão mais novo confessa também estar paquerando
a menina. Para Chico Teixeira não basta a situação em
si, complicada já pela sua natureza, é preciso também
uma série de complementos que acabam por inflar a narrativa,
criando uma conspiração de caráter minimalista, presente
em todos os pequenos atos.
É nesta medida que o filme ultrapassa a tal linha citada,
caindo em psicologismos baratos e moralistas. O
episódio com a avó é bastante ilustrativo. Todos
os membros da família, se não demonstram uma irritação
permanente com a velha, ao menos a tratam mal em alguma
circunstância. Edinho, o filho do meio, que parece ser
o único a se dar melhor com ela, também acaba sendo
convencido pelo pai a levá-la para o asilo (afinal,
em casa de Alice, todos são “corrompíveis”).
No entanto, quando na ausência dela, a casa fica sem
regente: camas desarrumadas, louça suja, sala bagunçada.
Há uma série de planos evidenciando a situação e aplicando
a lição na família que, cega, não reconheceu a importância
e o papel da avó.
Mas se falamos em moralismo, há também que falar da
construção do personagem Lucas, o filho mais velho do
casal. Ingresso no exército, o garoto é também michê, e podemos ver um rapaz o deixando em casa, apertando
sua coxa e entregando-lhe dinheiro. Caio Fernando Abreu,
no conto “Sargento Garcia”, criticou o exército
em pleno regime militar, embutindo ainda a defesa do
homossexualismo. Se no filme de Chico Teixeira a crítica
ao militarismo (que parece decalcada de CFA) existe
meio que sem sentido, e o garoto se vende por alguma
necessidade, no conto o garoto se vende por gostar,
e é aí que o kitsch do escritor opera com mais veemência
que o circunstancial do cineasta. Ainda no irmão, como
forma de (mais uma vez) incrementar o caráter do personagem,
fica no ar a suspeita (de tremendo mau
gosto) de que o irmão abuse, ou sinta atração por seu
irmão mais novo. Se não bastasse o jeito afetivo e suspeito
nas conversas na cama antes de dormir, Lucas está sempre
falando para o irmão não deixar que a mãe abuse dele
(também deixando no ar, inclusive, a sugestão de que
a mãe abusa do filho). E pra continuar (sim, ainda tem
mais) há um fade out no momento em que os irmãos
estão deitados na cama. Ao permanecer por um tempo no
preto (da imagem), cria-se um tempo correspondente ao
imaginário que certamente projeta o assédio de um irmão
ao outro.
E se os episódios já se repetem no filme, não há motivos
de se repetirem na crítica. O que fica, finalmente,
é a construção forjada das circuntâncias
cotidianas vivenciadas por uma simples família paulistana.
Se não pelas constantes pedras colocadas diante dos
personagens, e uma vontade declarada de contrapô-los,
o filme de Chico Teixeira busca retratar uma situação
vigente. O over no filme, que faz de A Casa
de Alice absolutamente desinteressante, não tira,
no entanto, o interesse por Chico Teixeira. Comparando-o
a diretores completamente diferentes, podemos acreditar
que faça o caminho inverso de Cláudio
Assis ou do francês Bruno Dumont, que se por um momento
olharam para seus personagens, no momento seguinte
fizeram deles meros instrumentos de manipulação em favor
da construção cênica e narrativa. Chico Teixeira tem
uma equipe talentosa, e soube conciliá-la com precisão
em seu trabalho. A foto de Mauro Pinheiro ilumina com
estranheza aquele dia-a-dia acinzentado. A arte de Marcos
Pedrosa constrói um universo proporcionador
de situações cotidianas, caminhando em conjunto com
as operações naturalistas propostas. Caberia a Chico
Teixeira, conduzir sua história com mais espontaneidade
e menos preocupação. Os temas que levanta, e são temas
interessantes, ganhariam com mais sutileza. Se
opta em diversos momentos por uma estética minimalista,
deveria ter se lembrado que muitas vezes "menos
é mais".
Raphael Mesquita
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