A CASA DE ALICE
Chico Teixeira, Brasil, 2007

A Casa de Alice se insere perfeitamente no perfil cinematográfico brasileiro contemporâneo. Podemos arriscar dizer que o filme dialoga tanto com Cão sem Dono, de Beto Brant, quanto com O Céu de Suely, de Karim Ainouz. Com o primeiro, por também recorrer a um certo olhar documental, com interpretações e iluminação naturalistas, por exemplo; com o segundo, por pender a um certo melodrama, ainda que tratando de questões reais, inseridas no cotidiano. Mas há uma linha bastante tênue indicando o alcance de um filme. Tanto O Céu de Suely quanto Cão sem Dono atingem vôos altos, indo a fundo em suas propostas, mantendo um todo preenchido, cativante e sustentável. O mesmo já não se pode dizer de A Casa de Alice, que passa do ponto, ultrapassando essa linha t^o se pode dizer de Casa de Alice, que passa do ponto, ultrapassando essa linha te e sustentênue, caindo em psicologismos superficias, situações forçadas e personagens que operam em função de acontecimentos.

A casa de Alice é na verdade a casa de sua mãe, personagem que em um primeiro momento até cria semelhanças com o porteiro Elomar, de Cão sem Dono. A forma cativante que este tinha na fala, sempre cheia de afeição – reforçada pelo tom documental –, aquela têm no olhar, observador e silencioso.  Ambos obtém certo conhecimento que não remete diretamente a lugar algum. O porteiro-pintor tem uma sabedoria da vivência, transmitida com diálogos perspicazes. A velha tem a sabedoria de se portar com sobriedade na administração da casa (de Alice), passando desapercebida, mas ciente do barco que domina. Alice, no entanto, dialoga com Suely. Ambas recebem um tratamento parecido, uma vez que cometem atitudes não necessariamente justificadas, mas são compreendidas pelo olhar do diretor que as filma. Essa compreensão é passada ao espectador a partir de aproximações ligadas ao contexto em que são inseridas. Em ambos os casos, o espaço (e seus acontecimentos) são determinantes nos desdobramentos. Mais do que identificar certos e errados, os personagens são tratados com naturalidade. Mas se em Karim e em Beto Brant havia poesia, em Chico Teixeira há crueza e maldade.

Na casa de Alice, com exceção de D. Jacira, a avó, ninguém é isento de nada. Todos são acusados, vítimas e cúmplices. A grande maioria das situações propostas provoca obrigatoriamente o conflito entre personagens e tudo conspira em função para que as pessoas entrem em choque. O universo de Chico Teixeira é povoado de situações-limite em que o espaço do outro é obrigatoriamente invadido. Começamos o filme com o relato observacional de uma família da classe média de São Paulo. Um a um, somos apresentados a todos os personagens, havendo, inclusive, certo traço exagerado em suas descrições. Mas nesse primeiro momento, vemos uma funcionalidade normal na casa. Até os acontecimentos se iniciarem e, em forma de dominó, a casa quase vir a baixo, rompendo todos os laços afetivos, balançando a base familiar.

Thaís, jovem vizinha de Alice, confessa estar apaixonada por um homem bem mais velho e casado. Alice, ainda que não concorde com a situação, acaba por ajudar a amiga, cedendo-lhe um perfume capaz de não deixar o homem escapar. Já de início há a suspeita de se tratar do marido de Alice. E após alguns indícios, isso lamentavelmente se confirma. Para fazer valer o potencial do acontecimento, há toda uma construção de clima, supervalorizando o fato: a velha Jacira acha fotos da garota na carteira do pai e o irmão mais novo confessa também estar paquerando a menina. Para Chico Teixeira não basta a situação em si, complicada já pela sua natureza, é preciso também uma série de complementos que acabam por inflar a narrativa, criando uma conspiração de caráter minimalista, presente em todos os pequenos atos.

É nesta medida que o filme ultrapassa a tal linha citada, caindo em psicologismos baratos e moralistas. O episódio com a avó é bastante ilustrativo. Todos os membros da família, se não demonstram uma irritação permanente com a velha, ao menos a tratam mal em alguma circunstância. Edinho, o filho do meio, que parece ser o único a se dar melhor com ela, também acaba sendo convencido pelo pai a levá-la para o asilo (afinal, em casa de Alice, todos são “corrompíveis”). No entanto, quando na ausência dela, a casa fica sem regente: camas desarrumadas, louça suja, sala bagunçada. Há uma série de planos evidenciando a situação e aplicando a lição na família que, cega, não reconheceu a importância e o papel da avó.

Mas se falamos em moralismo, há também que falar da construção do personagem Lucas, o filho mais velho do casal. Ingresso no exército, o garoto é também michê, e podemos ver um rapaz o deixando em casa, apertando sua coxa e entregando-lhe dinheiro. Caio Fernando Abreu, no conto “Sargento Garcia”, criticou o exército em pleno regime militar, embutindo ainda a defesa do homossexualismo. Se no filme de Chico Teixeira a crítica ao militarismo (que parece decalcada de CFA) existe meio que sem sentido, e o garoto se vende por alguma necessidade, no conto o garoto se vende por gostar, e é aí que o kitsch do escritor opera com mais veemência que o circunstancial do cineasta. Ainda no irmão, como forma de (mais uma vez) incrementar o caráter do personagem, fica no ar a suspeita (de tremendo mau gosto) de que o irmão abuse, ou sinta atração por seu irmão mais novo. Se não bastasse o jeito afetivo e suspeito nas conversas na cama antes de dormir, Lucas está sempre falando para o irmão não deixar que a mãe abuse dele (também deixando no ar, inclusive, a sugestão de que a mãe abusa do filho). E pra continuar (sim, ainda tem mais) há um fade out no momento em que os irmãos estão deitados na cama. Ao permanecer por um tempo no preto (da imagem), cria-se um tempo correspondente ao imaginário que certamente projeta o assédio de um irmão ao outro.

E se os episódios já se repetem no filme, não há motivos de se repetirem na crítica. O que fica, finalmente, é a construção forjada das circuntâncias cotidianas vivenciadas por uma simples família paulistana. Se não pelas constantes pedras colocadas diante dos personagens, e uma vontade declarada de contrapô-los, o filme de Chico Teixeira busca retratar uma situação vigente. O over no filme, que faz de A Casa de Alice absolutamente desinteressante, não tira, no entanto, o interesse por Chico Teixeira. Comparando-o a diretores completamente diferentes, podemos acreditar que faça o caminho inverso de Cláudio Assis ou do francês Bruno Dumont, que se por um momento olharam para seus personagens, no momento seguinte fizeram deles meros instrumentos de manipulação em favor da construção cênica e narrativa. Chico Teixeira tem uma equipe talentosa, e soube conciliá-la com precisão em seu trabalho. A foto de Mauro Pinheiro ilumina com estranheza aquele dia-a-dia acinzentado. A arte de Marcos Pedrosa constrói um universo proporcionador de situações cotidianas, caminhando em conjunto com as operações naturalistas propostas. Caberia a Chico Teixeira, conduzir sua história com mais espontaneidade e menos preocupação. Os temas que levanta, e são temas interessantes, ganhariam com mais sutileza. Se opta em diversos momentos por uma estética minimalista, deveria ter se lembrado que muitas vezes "menos é mais".

Raphael Mesquita