CAIXAS
Jane Birkin, Boxes, França, 2007

Caso fosse uma peça de teatro, esse filme de Jane Birkin seria encenado em um palco multi-segmentado, composto de vários cubos cênicos interconectados. Um personagem repentinamente poderia passar de um cubo (ou de uma caixa) para outro. No filme, contudo, não há necessidade dessa engenharia cenográfica. Cada plano funciona como uma caixa conectada à outra pelo fora-de-campo e pela montagem. É sempre surpreendente quando um personagem, sem ter sido convidado, une-se à cena em andamento e contribui com sua resolução dramática. Birkin injeta vida nos mortos. O fora-de-campo assume um poder de encarnação: basta um contraplano e um novo corpo – antes relegado a um ponto cego da decupagem – está integrado ao filme, sem qualquer prejuízo da coerência e da unidade do espaço cênico. A partir de um certo momento, as cenas vivem na iminência de serem invadidas por mais personagens (já apresentados no filme ou não).

Caixas possui um clima de devaneio que o elenco sustenta em todas as suas virtudes. Michel Piccoli e Geraldine Chaplin levam ao filme o exato tom de drôlerie que outros atores, como a bela Lou Doillon, contrabalançam através de perturbações mais delicadas e tímidas. A loucura, a memória, o presente: tudo está no cenário e nos personagens. Não há trama, não há história, somente o jogo. Várias gerações e várias situações a princípio desconexas se articulam num lugar imaginário, manipulável, coordenado por um tempo reversível e múltiplo: a casa-cinema de Birkin é uma espécie de cubo mágico que guarda tanto a obscuridade quanto a aura lendária da vida da cantora/atriz/diretora. Através de Anna, a personagem que ela mesma interpreta, Jane Birkin coloca no filme uma sucessão de questões afetivas e familiares que ficaram mal resolvidas. Os perigos de um filme-catarse são afastados de forma por vezes até brilhante, e o tom passa longe, muito longe da amargura.
  
A narrativa se entrega a esse misto de prazer e desafio que é transformar a memória em um lugar – a casa. Caixas se torna, assim, uma inversão provocativa e elegante em relação ao enredo de fantasmagoria mais tradicional: na casa labiríntica para a qual a família se muda, as assombrações não se devem aos fantasmas dos antigos proprietários, mas sim às vivências da própria família, aos personagens do seu passado. Geralmente os fantasmas já habitam a casa e se vêem perturbados com a chegada de novos moradores. No filme de Birkin, são os novos moradores que levam seus próprios fantasmas nas caixas de mudança. Abertas as caixas, eles se libertam e circulam pela casa. Às vezes temos a impressão de presenciar uma versão frívola de Bergman: a decupagem é maliciosa, os acertos de contas entre os personagens são cruéis, os mortos são vivos e vice-versa – mas a casa não é asfixiante, há a possibilidade de sair, retornar, sair de novo. É possível “tomar um ar fresco”, como se diz quase ao final. A memória é um universo sem paredes.

Luiz Carlos Oliveira Jr.