ANTIGA ALEGRIA
Kelly Reichardt, Old Joy, EUA, 2006

Na conversa que os amigos Mark e Kurt levam no lugar em que passam a noite acampados, este último se encarrega de nos emprestar sentido ao conceito da “velha alegria” do título do filme. Depois de um longo discurso sobre a natureza de qualquer coisa não muito importante, Kurt diz que a tristeza não é nada mais que a alegria desgastada. A frase dita assim, tão explicitamente, estando tão diretamente conectada à própria idéia a que o filme deveria se condicionar, não deixa de ser uma pista falsa deixada no caminho por Kelly Reichardt. Porque em Antiga Alegria não cabem estes sentimentos assim, diametralmente opostos, antitéticos, representantes dos extremos da experiência humana. O tal conceito não é mais que um atestado de imprecisão, o anúncio que o lugar onde o filme se assenta não é propriamente um lugar, não é uma emoção nomeável. Antiga Alegria acontece sempre nos intervalos entre uma coisa e outra.

É por isso que esta viagem dos dois amigos rumo a uma estação de águas termais no meio da floresta não tem nada da jornada iniciática, da grande aventura redentora, do caminho de brasas pelo qual os personagens precisam passar em nome de algo maior a esperá-los lá no horizonte, a experiência transcendente. Ela é exatamente isso: uma viagem. Ao redor da fogueira que acendem no acampamento, Kurt diz a Mark que propôs o passeio porque sentia que eles precisavam retomar a velha amizade, estava estremecida por algum evento que o próprio Kurt não sabe explicar. Mark se surpreende, discorda, e os dois acabam chegando ao consenso de que não há nada de incômodo na amizade deles, nenhum trauma, nenhum ressentimento. A viagem não serve para nada grandioso. É sempre e somente isso: uma viagem.

Porque os filmes todos que poderiam existir em Antiga Alegria nunca acontecem dentro dele, não lhe pertencem. Mark vive a expectativa do nascimento de seu primeiro filho, e a tensão em que se encontra seu casamento fica sempre evidente pelas ligações insistentes da esposa. Do mesmo modo, há a inserção de vários programas de rádio que os dois amigos ouvem dentro do carro, no caminho para a floresta. São programas de participação do ouvinte, onde se discute política partidária, meio ambiente, esportes. Já Kurt não parece ter grandes questões em sua vida, é solteiro e não tem emprego fixo, mas é o que mais utiliza o tom memorialista nas conversas, sempre recordando alguma história ou personagem do passado. Todas estas possibilidades de drama são sustadas uma vez que os amigos cruzem a estrada na direção das montanhas. É como se o sinal de comunicação fosse cortado com o mundo da planície – literalmente no caso do celular e do rádio, que não funcionam lá no alto, mas sobretudo na reprodução de certas convenções da vida normal, cuja validade vai se perdendo à medida que se aproximam do destino final, no interior da floresta.

E, ao mesmo tempo, todos estes filmes a que Kelly Reichardt não quer se dedicar só estão sugeridos ali porque é preciso manter a consciência de que Antiga Alegria não está trabalhando com qualquer caráter metafísico. Pelo contrário, é na própria fisicalidade que o filme se instala. Se não sabemos o que diabos seja a tal tristeza que nasce da alegria gasta, pelo menos sabemos o único espaço disponível para sua manifestação: o corpo humano, a experiência do homem no contato com o mundo. Nunca teremos acesso aos desdobramentos da paternidade de Mark, da vagabundagem profissional de Kurt, nunca poderemos saber onde estes amigos se fizeram, a partir de que afinidades (uma vez que o filme que vemos, das aparências dos dois às colocações que fazem sobre suas vidas, só nos mostra o quão diferentes eles são). A natureza é uma parceira de sensações, apontando todas suas energias para este momento em que o contato com uma outra força de pulsação vital nos livra de qualquer conceito, explicação, localização ou sentido (a recorrência dos planos de pássaros, plantas, pedras, não nos indicam mais que sua própria ocorrência no mundo, neste mesmo de que o filme se impregna tanto). O que vemos, o que sabemos, é um toque, um amigo massageando os ombros do outro, enquanto este está mergulhado na água. Eis a única ação de Antiga Alegria: uma amizade materializada pelo contato das mãos de um homem com a pele das costas de outro. O resto é lugar de partida e porto de destino. A estrada, o que fica no meio, isto que não tem nome, mas que tem personagens, é o que Kelly Reichardt se dedica a filmar. É o próprio desejo de se tornar intervalo, de um cinema que não diz a que veio nem a onde vai, mas que, como as árvores, os pássaros, as águas do rio, Kurt e Mark, simplesmente está lá, disponível ao nosso contato.

Rodrigo de Oliveira

 

 





Kurt e Mark cruzam as margens de um rio:
como o próprio Antiga Alegria, a jornada dos dois amigos é repleta de intervalos e irrealizações