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Domingo, 4 de novembro de 2007
Passada a correria
da cobertura em tempo real, faltando ainda algumas críticas
para entrar no ar, elaborando em cima dos mimos ao leitor
para a próxima edição (entrevistas
com Nicolas Klotz e José Luis Guerín,
trechos de áudio de Jia Zhang-Ke falando de seus
filmes), a repescagem se vive um pouco como os minutos
de acréscimo de um jogo ganho, a chance de rever
alguns filmes, rever os amigos, matar as saudades das
salas de cinema e do doce périplo de subir e
descer a Augusta ou passear pela Paulista, de vez ou
outra fazer uma locomoção maior rumo às
salas distantes da parte central (a maravilhosa nova
sala da Cinemateca, na Vila Mariana, ou a antiga cinemateca
que era UOL e agora é IG, em Pinheiros). Mas
o fim de uma mostra é também a oportunidade
de um balanço do evento, de suas retrospectivas,
de sua organização, de sua seleção,
do que tantos filmes juntos dão ao pensamento.
No que diz respeito aos filmes contemporâneos,
a superioridade cantada em prévia ao Festival
do Rio não se fez valer. Ainda que a Mostra tenha
permitido entrar em contato com obras estonteantes que
não estiveram no Festival (A Viagem do Balão
Vermelho, En la ciudad de Sylvia, Onde
os Covardes Não Têm Vez, Redacted),
parte disso se deve à vantagem de um mês
que a Mostra tem em relação ao Festival
sobretudo para exibir os filmes estreados em
Veneza e parte se deve a filmes que estão
comprados e vão estrear. E, se lembrarmos que
a Mostra não trouxe dois filmes considerados
fundamentais para a revista exibidos no Rio, Mulher
na Praia de Hong Sang-Soo e Floresta dos Lamentos
de Naomi Kawase, a equivalência das seleções
contemporâneas se faz bem mais presente. Nas retrospectivas,
onde São Paulo tinha toda a chance de dar goleada
no Rio, na hora do vamos ver os filmes de Jia Zhang-Ke
foram exibidos em digital de baixíssima qualidade
(isso era tão costumeiro ouvir nas filas e salas
quanto a reclamação sobre os intermináveis
atrasos das sessões) e os filmes de Jean Paul
Civeyrac não se revelaram tão fortes quanto
imaginávamos, e a descoberta de um novo e sólido
autor não aconteceu. Não que Civeyrac
seja péssimo ou algo do tipo: há boas
idéias, há um charme desajeitado nesse
elogio do amor excessivo, autodestrutivo e desembestado
de seus personagens, mas a forma estabelece sempre um
terreno bastante confortável para a ficção
se desenvolver, na área bastante conhecida e
codificada do cinema de autor com bom gosto e grandes
sentimentos (a morte, mamória, a infância).
Os que não vi e alguns dos que falaram
que eram os melhores, Através da Floresta,
Fantasmas pretendo completar no futuro,
mas ao menos na Mostra não causou comoções
maiores em ninguém. Os destaques mesmo vão
para Tabu, em sessão com excelente acompanhamento
ao vivo no CineSesc, e Lost Lost Lost
Diaries, Notes & Sketches, de Jonas Mekas,
uma dessas obras que demandam uma outra relação
com a imagem cinematográfica e com o ato de ver
filmes projetados numa sala escura. No quesito organização,
como já dissemos, a Mostra involuiu alguns estágios
na precaríssima pontualidade das sessões,
e manteve seu padrão de trocar sessões
na última hora. Mas, em comparação
com o Festival do Rio, a tentativa de acomodar o máximo
de espectadores interessados nas sessões lotadas,
ainda que tivesse rendido uma ou duas confusões
(em especial uma de A Questão Humana ao
meio-dia de uma terça-feira com direito a uma
dúzia de senhoras histéricas), foi algo
louvável e mostrou uma real preocupação
de cinéfilo dos gerentes de sala e organizadores
para com o público. Quanto aos convidados internacionais,
Civeyrac esteve por aqui, Klotz e Guerín também,
Jia Zhang-Ke teve uma passagem relâmpago e portanto
nós, "sites" (para a assessoria essa
é a nossa designiação), não
tivemos acesso a ele. Por conta de uma greve na Air
France, Pedro Costa não pôde estar presente
na Mostra como jurado o que empata com a ausência
de Chantal Akerman no júri do Festival do Rio.
E apenas para informar ao leitor a situação,
já que essa coisa de ficar reclamando mais uma
vez da pouca honra concedida a nós pela Mostra
não nos agrada muito, novamente tivemos direito
a apenas duas credenciais, o que de certa forma prejudicou
o andamento do diário porque uma de nossas editoras,
a Tatiana, não pôde programar seus dias
com antecedência e acabou tendo que pagar por
filme e entrar no cansativo esquema de correr às
bilheterias ainda cedo no dia, e mesmo assim perdendo
certas sessões por falta de ingressos. Se é
lógica da Mostra, tudo bem. Se é birra,
direito deles. Agora, só não dá
para aceitar que o curador de uma mostra que dá
duas credenciais a revistas eletrônicas sérias
e ensaísticas ao passo que concede várias
credenciais a veículos informativos ou de fofoca
venha falar em "crise da crítica e da cinefilia"
sem que ele coloque o processo seletivo de credenciais
de sua própria mostra como uma das evidências
maiores de uma "crise". Que não é
da cinefilia nem da crítica, mas de uma geração
que foi qualitativamente ultrapassada por assentar-se
muito confortavelmente em seus papéis de poder
(geralmente legitimado pelo renome do veículo
mais do que pela coerência e perspicácia
da escrita) e fazer da crítica o objeto mesquinho
de diatribes personalistas de prima donna. Mas,
como já diz o bom senso, trust the tale, not
the teller, e confiemos na obra mais que no autor.
Porque o cinema é muito, muito maior que isso.
E, mesmo com tantas questões ainda a resolver,
os filmes exibidos fazem a perfeita confirmação
disso.
Quinta-feira,
1 de novembro de 2007
Não foram poucas
as discussões ontem sobre Redacted, de Brian
De Palma. Fosse saindo da sessão do filme no Cinesesc
e caminhando pela Augusta ao lado de Rodrigo de Oliveira,
fosse sentando no bar à noite, na companhia de Eduardo
Valente, Gilberto Silva e, novamente, Rodrigo. Muito
pensei durante o filme e nas conversas posteriores,
mas não possuo ainda certezas sobre ele. O trabalho
com diferentes formatos audiovisuais que De Palma realiza
é sem dúvida um mérito incontestável. Temos em Redacted
um episódio de estupro e morte na Guerra do Iraque narrado
através de registros de imagem diferenciados: um documentário
humanista, um diário filmado, depoimentos através de
webcams (disponibilizados em sites pessoais),
noticiários locais, câmeras de vigilância nas bases
americanas, vídeos terroristas realizados por milícias
e colocados na internet, live chat. O filme tematiza,
de fato, esta inflação de imagens-narrativas suscitada
por um evento político marcante. Se o 11 de Setembro
caracterizou-se pelo imponderável de uma imagem “cinematográfica”
tornando-se realidade e sendo então repetida à exaustão,
os eventos dele decorrentes revelaram-se bastante profícuos
em termos de representações. Desde a fotografia feita
com um celular de Saddam Hussein sendo retirado do seu
esconderijo, temos a certeza de que as novas tecnologias
da imagem estão disseminadas por todos os cantos, presentes
em todo e qualquer tipo de acontecimento e suscitando
a proliferação de documentos audiovisuais de proveniências
diversas. O que De Palma faz é “compendiá-las” e retomá-las
em sua dimensão de dispositivo, para narrar a boa e
velha história de guerra que conhecemos, inclusive com
seus personagens típicos. Minha pergunta é: até que
ponto pode-se utilizar um dispositivo de forma maneirista,
a despeito de sua carga discursiva e ideológica? Para
mim não resta dúvidas de que todos os dispositivos-forma
empregados por De Palma em Redacted respondem
intrinsecamente a uma vontade de verdade do registro,
de autenticidade do que é mostrado. Ora, De Palma claramente
deseja realizar com seu filme uma narrativa de guerra
deveras tradicional, uma ficção nos moldes hollywoodianos.
Não seria a combinação entre este desejo de narrar e
a multiplicação de formas narrativas audiovisuais que
o filme propõe, uma combinação fatal? Ou, ao contrário,
a revelação de que nossas vontades de ficção permanecem
as mesmas, mesmo que sua forma de produção tenha mudado?
Corte: Senhores do Crime, de David Cronenberg.
Espécie de derivação de Marcas da Violência,
o último filme de Cronenberg emprega a violência mais
como signo visual a ser retrabalhado (seca, dura, física,
pesada, sombria), do que como efeito dramático. No franco
diálogo com o gênero, Senhores do Crime busca
seus desvios de uma pura narrativa da ação, para mergulhar
nos detalhes mórbidos da violência. Curiosamente, senti
ter ali mais verdades do mundo (sem considerar isto
um mérito a priori, bem entendido) do que em Redacted.
As nuances indefiníveis entre personagem do bem e personagem
do mal e entre ato criminoso e ato justo nos colocam
a um passo de uma violência repugnante quando aplicada
às vítimas erradas, mas estranhamente aceitável como
método de garantir o sono dos justos. Em tese, ao menos.
Quando vista graficamente, como Cronenberg nos apresenta,
o impacto do vermelho do sangue nos coloca contra a
parede e nos interroga. Sem dúvida, dois filmes que
ainda dão muito pano pra manga. (TM)
Quarta-feira, 31 de outubro de 2007
Christophe Honoré em questão? Aparentemente
a Mostra é uma ocasião apropriada para
isso, uma vez que até aqui seus filmes não
tinham circulados por telas brasileiras. Até
então, só tinha assistido a sua versão
para Ma mère, romance póstumo (na
verdade, inacabado) de Georges Bataille que seria uma
continuação do decisivo Madame Edwarda.
A questão principal com a versão de Honoré
para Bataille é que Bataille é infilmável
por qualquer um que não seja um verdadeiro místico,
que acredite verdadeiramente que filmando o filmável
pode se chegar ao infilmável. Kiarostami, Lynch,
Tarkovski poderiam tranqüilamente se arriscar nesse
terreno, mas a questão para Honoré é
acima de tudo narrativa, uma certa celebração
da vida a partir da dor, ou da vida com a dor. Acaba
que Ma mère não é exatamente
ruim, simplesmente um filme que se observa, um pouco
pelo fetiche, um pouco pelas interpretações
de Isabelle Huppert e Louis Garrel, e não mais.
Com Canções de Amor e Em Paris,
nasce a chance de um olhar mais detido ao cinema de
Honoré. Fala-se muito de seus empréstimos
(ou citações, ou elogios) à nouvelle
vague em Canções, ecos
de Uma Mulher É uma Mulher, As Duas
Faces da Felicidade, Jacques Démy, Jean-Piere
Léaud; Em Paris, um desejo de filmar a
cidade pela cidade, uma certa graciosidade veloz de
um Zazie no Metrô, por exemplo ,
de um apego às situações vividas
entre luto, desespero, depressão e uma certa
alegria de viver de filme musical, uma graciosidade
gratuita que por sua própria liberdade transborda
na tela. Isso aparece nos dois filmes que a Mostra exibe
nessa 31ª edição. Mas falar de nouvelle
vague e do gosto acridoce particular dos filmes
de Honoré é revelar apenas uma faceta
de seu cinema, e mesmo apenas uma faceta da adesão
à história do cinema francês. Porque
se ele toma emprestado muito do desejo de ser charmoso
e de uma certa vontade de filmar a vivacidade do mundo,
por outro lado, existe uma espécie de elogio
fácil da vida em seus filmes que rima um pouco
com uma certa abstinência da mise-en-scène
em criar um tipo particular de olhar, uma generosidade
já dada de antemão e não construída
pelas situações vividas, que rima em parte
com aquilo que Daney falou de Lelouch e que Cássio
Starling Carlos citou recentemente em artigo da Folha
polemicando com Leon Cakoff: um certo elogio publicitário
da vida. É claro que em seus momentos melhores
e Em Paris é um bocado mais interessante
que seus outros filmes a menção
é improcedente, e tampouco se trata de atribuir
um fardo tão pesado e deselegante quanto a comparação
com Lelouch, mas me parece haver nos filmes de Honoré,
ao menos os três vistos até hoje, um certo
ar açucarado voluntariamente em demasia que quer-se
fazer traduzir rápido demais por charme e graça,
mas que em contrapartida também representam o
limite desse cinema, um tanto simpático demais,
um tanto auto-indulgente, sem no entanto considerar
como menor essa minoridade (porque há sempre
o peso da vida, etc.). Talvez o final de Aprile,
de Nanni Moretti, lhe valha uma pequena lição.
(RG)
Terça-feira,
30 de outubro de 2007
(II)
Após uma inspiradora entrevista-conversa com Nicolas
Klotz e sua parceira Elizabeth Perceval (a ser publicada
em nossa próxima edição), na qual cinema e mundo pareciam
uma coisa só, o que mais esperar da Mostra? E eis que
ontem me vi frente a frente com o filme de José Luis
Guerín, fortemente recomendado pelos amigos contracampistas
Filipe Furtado e Rodrigo de Oliveira. En la ciudad
de Sylvia é uma autêntica celebração ao “estar no
mundo”. Guerín filma rostos, gestos e movimentos de
forma a nos inserir como observadores no espaço em que
o filme se passa. O som ambiente, trabalhado magistralmente
para criar uma ambiência completa, reforça e amplia
a sensação de passagem, de estar provisório. Embora
calcado no olhar de um personagem, que dedica-se
a perscrutar atenciosamente seu entorno, o filme não
trabalha o registro exclusivamente como criação de um
ponto de vista. Os enquadramentos são precisos em seus
recortes, compondo diferentes quadros a partir de cenas
super-populadas ou de espaços complexos. Nestes quadros,
a escolha do foco simula a focalização da atenção humana
e os diferentes eixos das tomadas fracionam o espaço
em uma série de fatias isoladas, como diferentes pinturas
possíveis a partir de um mesmo cenário. Pinturas impressionistas,
sobre pessoas num determinado instante, num determinado
canto da cidade. A circulação constante em torno do
personagem principal, obcecado com as fisionomias femininas,
que ele interroga de um ponto fixo no qual ele se instala
– na esperança de encontrar um rosto do passado –, faz
surgirem fantasmas, imagens incompletas e temporárias.
Preocupado mais em construir um sentimento de precariedade
do que de síntese, Guerín cria uma belíssima sinfonia
urbana. Mas de uma urbis modesta, Strasbourg, e a partir
de seus habitantes mais que comuns. Que o cinema se
alimenta do mundo para nos devolvê-lo em imagens, nós
já sabíamos; mas que ele poderia se confundir com o
mundo em situações tão corriqueiras e banais quanto
encantadoras, pareceu-me ali
dentro da sala uma grande descoberta. Guerín filma
sobretudo pessoas anônimas em espaços públicos
e, embora em diversos momentos (como os planos que envolvem
o ônibus elétrico), ele crie eventos puramente cinematográficos,
no que tange a efeitos da imagem e do quadro, na maior
parte do tempo ele parece estar filmando o nada e o
tudo ao mesmo tempo. Em suma, o estar cotidiano de todos
nós, para o qual não há sentidos possíveis. De forma
atravessada, lembro-me agora de A Curva, de Salomão
Santana, visto no último Festival de Cinema Universitário,
que evoca sentimentos afins. Em ambos, não há tentativa
de extrair poesia deste “nada” – como em Suíte Havana,
de Fernando Pérez, por exemplo –, mas apenas o desejo
de conferir mistério a ele. (TM)
Terça-feira, 30 de outubro de 2007
(I)
(Esse diário era para ter entrado no ar quatro dias
atrás, mas por empecilhos técnicos só pôde entrar hoje.
O interessante é que outras pessoas da revista já viram
o filme Sukiyaki Western Django, que aqui detonarei, e gostaram, portanto meu ponto
de vista provavelmente terá, em breve, uma crítica
que faça contraponto. Continuo bem impaciente
com a brincadeira adolescente do filme e avesso ao tipo
de comportamento espectatorial que o acompanhou na sessão em que estive – HSBC
Belas Artes 2, sexta-feira
à noite.) Não chego a ser um fã de Takashi
Miike, mas sempre espero dele
alguma coisa no mínimo dos mínimos original e visualmente
instigante. Embora Sukiyaki Western Django não fosse alvo de muita expectativa (faz tempo
que um filme de Miike não
chega por aqui e, sinceramente, não foi uma falta das
mais sentidas), um gosto de decepção pairou no ar. O
prólogo do filme é até divertidinho,
tem Tarantino fazendo participação especial, tem cenário de estúdio
muito bem arquitetado, tem uma decupagem
pastiche de western spaghetti...
tem um bocado de aspectos divertidos e interessantes.
A piada, contudo, podia ter terminado ali. O resto de
Sukiyaki Western Django é um amontoado
de clichês de um cinema que usa as hipérboles de violência
e os jogos de saturação e de deslocamentos (no caso,
aqui, o western é ambientado nos cenários e mitos do Japão e hibridizado aos filmes de yakuza
e de samurai) dos códigos de
gênero como novas convenções de espetáculo. A galera
ri aos montes, aplaude, mas a anedota para mim dura
pouco, meu entusiasmo acabou, como já disse, no prólogo.
O lúdico e a extravagância da representação não chegam
aos pés de Rápida
e Mortal do Sam Raimi,
por exemplo (outro filme onde o faroeste também é uma “terra
dos mortos”). Os últimos quinze minutos, para não dizer
que me entediei com o filme por completo, foram quinze
minutos de ação intrigantes pela inventividade da montagem
(sobretudo da pista sonora). Mas nem como brincadeira
carinhosa com Corbucci e Leone
o filme convence. E se lembrarmos de todo o western maneirista feito de lá para cá, a coisa perde ainda
mais sentido. Acredito na autenticidade das refrências
cinéfilas de Miike, mas mesmo assim acho que
esse filme não passa de um tipo de espetáculo
pós-Tarantino cada vez mais
bobo, ótimo para ser exibido no final das maratonas
e alimentar não a cinefilia, mas a cinefolia. (LCOJr)
Segunda-feira, 29 de outubro de 2007
Como sobrevivem ao tempo as obras-primas? Como confrontamos
as obras-primas do passado com aqueles filmes que elegemos
como as obras-primas de hoje? Como se transforma o estatuto
de um filme, quase sempre multifacetado e controverso
quando de sua estréia, comportando senões, ressalvas,
desbanques, a ponto de fincar pé definitivamente na
História do cinema como um dos grandes marcos da arte?
Dizemos isso porque o CineSesc presenciou ontem a um
desses momentos em que uma dessas grandes obras definidoras
do passado – Tabu, de F. W. Murnau – passou logo
depois de I'm Not There, filme de-agora-agora
de Todd Haynes, que este mesmo diário coloca como ápice
cinematgráfico do ano. Muito pouco em comum, naturalmente,
entre esses dois filmes: um fala de um destino impiedoso,
o confronto com a tradição e a conseqüente derrota trágica,
a limitação das ações, dos saberes, o elogio dos sentimentos
autênticos e primitivos contra a avidez do planejamento
e da má-fé. Outro empenha-se em mostrar o sentimento
autêntico como um gesto de resistência, autodestrutivo
mas definitivamente poderoso, um libelo contra o mundo
desencantado dos clichês, das respostas prontas, de
uma política de identidades que gosta mais de encerrar
significados do que de provocá-los pelo choque criativo.
Não se trata, obviamente, de colocar um contra o outro
– ambos sairiam perdendo. O importante é acima de tudo
o trabalho sobre o material artístico tendo como finalidade
a expressão, e atentar para os diferentes momentos da
História do cinema em que surgem essas obras. Tabu
nos remete a um mundo em que havia um pacto de crença
na imagem: crença nos sentimentos puros, crença no poder
de conotação da arte, no trabalho de inserção de código
figurado através de gestos, luz, montagem. Essa crença
permite, por exemplo, a fantástica seqüência de montagem
em que o herói planeja quitar suas dívidas com uma enorme
pérola. Essa crença também auxilia a transformar a aparição
do patriarca da tribo, primeiro como fantasia e depis
como carne e osso, em alguns dos planos mais assustadores
do cinema. Essa crença, dos anos 60 até os dias de hoje,
só diminui. Cabe aos cineastas, a cada geração, trabalhar
com novos níveis de verossimilhança, de naturalismo,
de jogar com o código tentando ir além da simples mímese
naturalista mas negociando com o tipo de expectativa
de um determinado público. I'm Not There cria
seu mundo conotativo pelo tom operístico, pela inserção
do glamour e pelo jogo dos tempos distintos com personagens
distintos, pelos efeitos rítimicos de montagem que,
pela velocidade e pelo poder evocativo de certos cortes
que remetem a Vertov, a Eisenstein, a Godard. Mas o
filme só o consegue fazê-lo porque ele reconstrói uma
realidade a aderir, uma crença wildiana-baudelairiana-nietzschiana
na máscara como princípio revelador, não porque ele
tem um traço de filiação automático, direto, uma via
límpida de acesso com aquilo que ele filma. Haynes,
em todo seu cinema, diz que essa via precisa ser construída,
trabalhada, conceitualizada, disponibilizada ao espectador
como um jogo de decifração. De certa forma, todos os
melhores realizadores contemporâneos participam dessa
idéia de um real difícil, ou complexo, que se precisa
escavar (Eastwood), fantasiar (Shyamalan), retemporalizar
(Kiarostami), perspectivar historicamente (Oliveira),
modular ritmicamente (Hou Hsiao-hsien), jogar (Weerasethakul,
Haynes), olhar no microscópio (Hong Sang-Soo). De certa
forma, essa construção de um real complexo por parte
dos melhores realizadores contemporâneos é talvez a
maior evidência da impossibilidade do classicismo no
cinema contemporâneo. (RG)
Domingo,
28 de outubro de 2007
Depois
de uma maratona São Paulo-Rio-São Paulo
devida a shows e compromissos de trabalho digredindo,
é impressionante como todos os principais eventos
internacionals do ano ocupam o bimestre setembro/outubro,
muitas vezes com diversos eventos concomitantes, ao
passo que o resto do ano funciona sempre em marcha baixa,
sem muito de interessante acontecendo voltamos
à mostra no corre-corre, deixa malas, sono em
ônibus, essas coisas. O cansaço se instala,
mas faz parte do percurso. Solução? Dorflex,
água, cafeína, o que se preferir. Se concentrar
nos filmes, com certeza. Deserto Feliz, primeiro
do dia, revela uma curiosidade grande mais como projeto
do que obra. Co-produção entre Brasil
e Alemanha, o filme parece ter inscrito em seu modo
de constituição uma certa interface internacionalizante,
cinco ou seis tiques do cinema de autor contemporâneo,
e uma emulação por vezes muito forte de
alguns filmes brasileiros recentes que têm relação
forte com o exterior: O Céu de Suely,
Cinema, Aspirinas e Urubus, Sonhos de Peixe.
Imagem com uma plasticidade frontal, jump cuts, elipses
fortes, personagem errante tanto pelo espaço
geográfico quanto pelo sentimental, registro
estetizante-objetivo. Tem lá sua graça
quando não se deixa levar pela forçação
de barra no miserabilismo, como o vergonhoso movimento
de câmera que revelando que um cafofo infecto
recebe em sua porta o nome "suíte prezidencial"
(sic), criando entre um espaço sujo e a vida
pouco honrosa de seus personagens determinações
um tanto fáceis e, no fundo, bem babacas. Formalmente
o filme se resolve meio mal e, apesar de usar e abusar
de uma plasticidade "moderna", a beleza dos
planos não apresenta muita organicidade em relação
ao que é apresentado trocando em miúdos,
a beleza aparece um tanto gratuitamente e a estrutura
é dispersa, criando frouxidão ali onde
esperaríamos síntese de diversos. Algum
comentário social interessante, alguma graça
nas situações (em especial pela atuação
de João Miguel e da atriz principal, Nash Laila),
não mais. Em seguida, meu primeiro filme de Jean-Paul
Civeyrac (na semana estão agendados alguns outros),
O Doce Amor dos Homens. E ainda que algumas das
cenas sejam bastante interessantes, sobretudo as que
envolvem relações sexuais, o filme funciona
numa chave auto-complacente ultra-romântica meio
desgastada, e o despojamento de certos planos rima muito
mal com a previsibilidade da história e o clima
de mini-série televisiva da mise-en-scène
(montagem sem criatividade, trilha sonora muitos tons
acima). Esperemos coisas melhores nos outros filmes.
Depois, Jovem Yakuza, sobre o qual farei texto,
belo filme sobre o cotidiano dos yakuza que rima em
várias formas distintas com alguns objetos audiovisuais
mais ou menos recentes, A Família Soprano,
Big Brother, esse lance de fazer um dispositivo
ficcional esgarçar uma área do cinema
já bastante codificada. Os reality shows
fazem pela duração, Sopranos faz
pela serialização, o filme de Jean-Pierre
Limosin faz pelo registro entre ficção
e documentário. Ao fim do dia, já um tanto
desgastado, vejo Senhores do Crime, título
absolutamente estúpido para o original Eastern
Promises. O diretor é David Cronenberg. E dele
espera-se sempre algo genial, avassalador. Não
é o que temos aqui: temos um realizador contido,
claramente aderindo a procedimentos e situações
utilizados em A History of Violence tipificação
no trabalho com os atores, intriga de auto-destruição
dentro do seio familiar, vida dupla para fazer,
como sempre, a perturbação surgir a partir
do familiar (no sentido de "já conhecido",
mas aqui também no sentido mais próprio).
Só que a narrativa é muito pesada, as
deixas aparecem na trama meio como pisadas de elefante,
e se alguns atores estão geniais (Viggo Mortensen,
Jerzy Skolimowsky), alguns me pareceram deixar muito
a desejar, em especial Naomi Watts, genérica
demais para criar uma instalação mais
pronunciada na construção daquele mundo
(pensar em Maria Bello seria até covardia). Mas
essas, é preciso confessar, são impressões
de alguém que viu o filme cansado e que reverá
o filme ainda nessa mostra para tirar a prova. Reconversão
ou ratificação? Leia aqui nos próximos
dias. (RG)
Sexta-feira,
26 de outubro de 2007
Que
melhor metáfora dentro da história do
cinema para exprimir a arte da leveza e da fluidez que
existe no cinema de Hou Hsiao-hsien que o balão
vermelho? Errante, caminhando apenas ao controle do
vento, livre das determinações de uma
mise-en-scène rígida, originando ele mesmo
o caminho que a câmera fará para dramatizá-lo,
o balão vermelho é o renascimento dos
trens de Café Lumière, as viagens
de Adeus ao Sul, as economias de amores, de dinheiro,
de poder em As Flores de Xangai. A
Viagem do Balão Vermelho é mais uma
poderosa afirmação de Hou Hsiao-hsien
de que o mundo se compõe de passagens e intensidades
desgarradas (de fechamento, de amarração),
de uma valorização do instante fruido
em sua hecceidade, da presença de certas pessoas
e coisas e da circulação entre uns e outros.
Essa circulação, Hou nos mostra, compõe
uma música. E o cinema, ao menos para Hou, é
essa melodia da circulação, os diferentes
ritmos, timbres e harmonias da existência de determinadas
pessoas dentro de um determinado período de tempo
um tempo, aliás, que o filme não
nos força a ver como um tempo privilegiado no
sentido dramático dos personagens, mas como instantes
quaisquer. "O futuro do cinema", disse Juliette
Binoche recentemente em entrevista à Cahiers
du Cinéma. E nós referendamos, evidentemente.
Há uma qualidade quase táctil, palpável
que Hou constrói com sua imagem, um gosto que
deriva da imagem em seu abandono, em seu pouco respeito
à idéia de narração da forma
que o cinema condicionou-se a funcionar. Como espectadores,
somos convidados não a apreender uma gama de
informações, mas a acompanhar flutuações,
instabilidades, movimentos. Da mesma forma que segue
o balão vermelho, Hou acompanha as variações
luminosas, as muitas maneiras de reenquadrar um espaço,
de inserir seus espectadores no ritmo daquilo que ele
mostra. Totalmente nova equação entre
controle e liberdade que o cinema de Hou hsiao-hsien
estabelece, e ainda que isso tenha começado (ou
tenha sido reelaborado) a partir de Café Lumière,
A Viagem do Balão Vermelho impacta como
o desbravamento de um território misterioso que,
por um estranho capricho do acaso, é também
a lapidação mais perfeita de um processo.
Ressalta no filme o uso de overlapping de som, ao menos
um absolutamente inédito no cinema, como a conversa
entre Song Fang e o menino Pierre em off, que mergulha
no plano seguinte, que mostra o menino com uma menina
loira, caucasiana, ao longe descendo uma escada. Aos
poucos, os dois se aproximam da câmera, atravessam
a rua, a conversa continua e dura até o momento
que Louise conversa com seu irmão sobre o mesmo
assunto, como se todas as coisas se interligassem numa
dinâmica harmoniosa de passagens. Esplêndido.
Em seguida, Vocês, os Vivos, de Roy Andersson,
começa citando Goethe e fazendo referência
ao rio Lethe, o rio dos mortos, o rio do esquecimento.
As imagens, dessaturadas, envoltas numa sensação
de bruma ou de uma consistência pesada, combinam
com o ritmo de personagens que, também desafetados,
exercem pequenas atividades pitorescas, não sem
uma certa morbidez. O filme trabalha com isso na chave
de uma comédia da melancolia, lembrando talvez
alguns momentos do cinema de Kaurismaki. Mas aqui o
jogo é o mesmo, e só funciona com um tanto
de fastio: uma série de esquetes, repetindo por
vezes alguns personagens, de personagens em penúria
existencial, que o título e a citação
ao rio mitológico sugerem estar mortos. A vida
está em outro lugar, parece dizer o filme. E,
no confronto com o espectador, parece perguntar: "E
quanto à sua vida?" Vocês, os Vivos
funciona um pouco como uma obra de auto-ajuda, ou como
uma comiseração loser que é
tanto batida (absurdo surrealista + feeling depressivo
= já vi isso antes) quanto desigual (a alguns
momentos de real força seguem-se diversos previsíveis
e tolos). Curioso dia: re-revisão de uma obra-prima,
decepção com um filme que se tinha em
alta expectativa, e no final uma bela surpresa (que,
é verdade, já tinha sido antecipada por
nosso co-editor LCOJr na crítica). Essa última
corresponde a Caixas, filme de Jane Birkin que
se desenvolve como uma comovente trabalho de auto-terapia
familiar, onde entra pais, maridos, filhas, todos os
fantasmas de isneguranças, desejo, amor, faltas
de comunicação, ditos-não-ditos
e toda sorte de coisa que criam problema no convívio
com entes próximos. Esses fantasmas, o filme
os vive como etapas necessárias de um processo,
como realidades que, se ao mesmo tempo criam ruído
e dificuldade em nossas vidas, também são
dados constitutivos do gosto de viver, e permitem sempre
uma superação tanto uma auto-superação
quanto superação do poder destruidor do
fantasma. Caixas não encanta tanto por
sua mise-en-scène, truncada, aleatória
até. Encanta mesmo é por sua entrega,
pela profundeza do mergulho que não precisa do
menor sadismo para ir fundo em feridas familiares (é,
Bergman, é com você). E, last but not least,
atenção a um belíssimo trabalho
de atores, liberados por sua condição
de seres meio reais, meio iamginários, para renderem
interpretações gloriosas de vivacidade
e galhardia. Belo fim, delicioso dia. (RG)
Quarta-feira,
24 de outubro de 2007
Que
privilégio é ter diante de si a história
do cnema se fazendo a nossos olhos. Que privilégio
é poder admirar Diaries, Notes & Sketches,
também conhecido como Lost Lost Lost,
presenciar a maneira muito peculiar, quase à
moda de filme caseiro, de intimizar as imagens, de atribuir
a elas um caráter afetivo, uma fragilidade tão
bonita e contrastante com a maneira trivial e objetiva
com a qual a imagem é tão freqüentemente
utilizada. E que privilégio poder ver um outro
homem, de outro país, do outro canto do globo,
em outro registro de cinema, lutar a mesma luta, fazer
a briga entre o narrar e o mostrar para fornecer ao
espectador uma liberdade devastadora, um mais acompanhar
o filme do que propriamente vê-lo, entendê-lo.
Le Voyage du ballon rouge é outro triunfo
de Hou Hsiao-hsien, e é um desses instantes em
que confirmamos que temos diante de nós alguém
do patamar de um Renoir, um Mizoguchi, um Hitchcock,
um Lubitsch: a maneira de fazer um mesmo filme, utilizando
os mesmos procedimentos, e ao mesmo tempo ser totalmente
inédito, fazer o cinema atingir sensibilidades,
lugares que nunca se imaginava que ele pudesse chegar
porque simplesmente ninguém perguntou dessa forma,
ninguém nunca levou a ele essa inquietação.
À maneira de Jonas Mekas, Hou também faz
seus cinediários, sua declaração
de amor à vida e ao passar do tempo e o movimento
das coisas, um cine-mantra, hipnótico, doce,
apaixonante. É claro que voltaremos mais longamente
a ele, mas o exíguo tempo que há nesse
momento é para compartilhar a enorme alegria
de ver no mesmo dia dois filmes de diretores distintos,
com estéticas inteiramente distintas, mas que
encontram uma harmonia, uma sincronididade no gesto
artístico. (RG)
Terça-feira,
23 de outubro de 2007
Sala
do Unibanco Arteplex 1
lotada, como era de se esperar, e Inland Empire com pouquíssimos minutos instaura o silenzio!. Estamos no clube do silêncio de Mulholland Drive. E Lynch
nos apresenta agora uma vídeo-ambiência que não se estrutura
em cadeia significante, mas antes em circuitos de imagens
(reconhecíveis como “lynchianas”
ou não). Quando duas modalidades de olhar se cruzam
(quem olha, quem é olhado –
talvez haja ainda uma terceira modalidade, neutra, vigilante)
e vários níveis de realidade se chocam, o resultado
é Inland Empire. Tudo é rabiscado a um ponto onde
não mais compõe signo. Em A
Estrada
Perdida, em
Mulholland Drive,
a iconicidade das imagens
(relação com o cinema de gênero, com o thriller) ajudava
o espectador a construir o universo do filme, ou melhor,
a se instalar no filme, mesmo que, no fim das contas,
em termos narrativos, o reconhecimento de um ou outro
signo mal alterasse a disposição geral dos eventos.
Agora, em
Inland Empire,
vemos um tachismo videográfico
até então não catalogado no cinema contemporâneo. Através
do digital de baixa definição, Lynch devolve ao rosto feminino a sujeira, os poros, os hematomas,
a escatologia, as impurezas, a feiúra, enfim, tudo que
o star-system recalcou.
Sobre a calçada da fama, onde estão gravados os nomes
das estrelas, dormem mendigos, imigrantes, marginais.
Laura Dern lá se deita ensangüentada,
com o rosto sujo, acabado, vomita sangue. Lynch
realista? Essa sujeira, essa feiúra repentina, coagulada
em meio ao fluxo de incompreensão e ambigüidade que
marca o filme, não seria o mais estridente signo do
real visto recentemente no cinema? A beleza deserta
o corpo. Somos atirados ao abstrato, aos dejetos. Do
rosto-miragem da estrela, passamos à careta. Não faltam,
ao longo do filme, rostos histéricos, closes aldrichianos elevados a uma potência de bizarrice inédita,
distorções faciais, expressões borradas: a imagem precária
de Lynch a serviço de um novo tipo de nudez – patológica e pornográfica,
ok, mas no fundo uma nudez
qualquer, inchada no detalhe e esvaziada na essência.
Inland Empire faz uma centrifugação dos lugares
do espectador e do personagem. Lynch
mergulha no mais insondável e angustiante da relação
de um ser humano com o outro (de preferência o outro
amado), ou consigo mesmo. A relação de
um espectador com um filme, a propósito, é
desta mesma natureza: a relação de um
com o outro. “Quem é ela?”, pergunta-se no filme. “Quem
é ela?”, interrogação matricial de Vertigo, de Marnie, de Dublê de Corpo.
De Veludo Azul.
Quem são elas? (LCOJr.)
Terça-feira, 23 de outubro de 2007
Primeiro de tudo, é importante que se diga: É
INACEITÁVEL A TERRÍVEL DESORGANIZAÇÃO
DA MOSTRA QUE ATRASA TODAS AS SESSÕES DOS FILMES.
E dessa vez, antes que se comece por achar o bode expiatório
em qualquer um ou outro de sala exibidora, basta que
se olhe o tempo ridículo dado entre o fim de
uma sessão e o começo de outra. É
algo que está em todas as conversas dos freqüentadores
da Mostra, seja no relato pessoal de como perderam sessões
ou pela previsão dos dias seguintes, já
contando com os futuros atrasos. Até agora, começo
do dia 23, essa vem sendo a tônica negativa da
Mostra. Em todo caso, os atrasos alongam a expectativa
mas não nos impedem de ver bons filmes. Como
Finye, de Souleymane Cissé. De Cissé,
só tínhamos visto o soberbo Waati,
numa dessas Mostra Banco Nacional da vida. Em Finye,
nada da sofisticação sensorial do filme
que até agora é o mais recente de Cissé,
mas em compensação temos uma frontalidade
política, um primarismo da encenação
e do trabalho com os atores utilizado como máquina
de precisão e aguda descrição da
causalidade das decisões individuais e/ou políticas
no seio de um conflito entre estudantes e direção
numa escola. Vale ressaltar que o filme passou em formato
digital, e um dos méritos de Waati era
exatamente a utilização da luz para dar
carnalidade e uma solidez sensual às situações.
E, com o transfer que passou, de baixa qualidade, essa
característica pode no máximo ser presumida.
Mas como só se pode ver assim, é assim
que vemos mesmo. Mais à noite, o destaque do
dia: revisão de I'm Not There. No Rio,
vi cansado e, ainda que totalmente maravilhado, não
consegui acompanhar o filme totalmente como ele pede,
como uma ópera tresloucada passando em ritmo
de trem-bala, o teatro épico brechtiano carnavalizado
por um enorme iconômano (Terra em Transe,
anyone?) e revitalizado por uma enorme crença
no pathos individual (como em Fassbinder, com
quem Haynes já tinha flertado cinematograficamente
tanto em Longe do Paraíso quanto em A
Salvo), o Encouraçado Potemkin do
novo século, claro, muito mais libertador e político
que o filme de Eisenstein. Os superlativos e o name
dropping se justificam pela incrível exuberância
multifacetada do filme, sintetizada por uma montagem
mágica, tanto em estrutura quanto em ritmo, fazendo
surgir turbilhões de informação,
vida real, fantasmas, documentário de televisão,
criando Dylan como um caso social, como uma figura política,
recriando a Karen Carpenter de Superstar ou o
Bowie de Velvet Goldmine para explodir no rosto
do espectador sua dylanologia negativa (como se fala
em teologia negativa) e afirmar a mais bela das verdades,
rock'n'roll, heraclitiana, impiedosa, admiravelmente
instável: de que o sentido não tem essência,
ele só se acontece on the run, fugitivo,
na carona de alguma outra coisa, cheio de perigos e
mudanças de percurso, máscaras, e para
isso ele tem que assumir todas as formas sem se instalar
em nenhuma: cor, p&b, melodrama, documentário,
bonito, feio, refinado, tosco, preto, branco, mulher,
homem, criança, absolutamente tudo desde que
seja veloz veloz veloz. Um desses raros filmes dos quais
se sai da sala querendo gritar, pular, lágrimas
nos olhos, extravazando vida. É definitivamente
pra mim nesse ano o que Juventude em Marcha foi
no ano passado, o que Mal dos Trópicos foi
em 2004: essa mistura de fascinação e
beleza, mistério e novidade, essa percepção
de que alguém está fazendo com o cinema
alguma coisa que ainda não havíamos visto.
É meio temerário dizer isso no dia em
que você ainda vai ver o Hou Hsiao-hsien novo,
mas digo mesmo assim: filme do ano. (RG)
Segunda-feira, 22 de outubro de 2007
Ontem pude finalmente contemplar, em cabine de imprensa,
os dois filmes do projeto Grindhouse, de Robert Rodriguez
e Quentin Tarantino. Toda a idéia de resgatar não apenas
um gênero ou uma tradição cinematográfica, mas também
uma forma de consumir cinema, parece uma derivação da
idéia do parque temático, aplicável a filmes de ação
recentes como Piratas do Caribe, que nos chamam
a experimentar a ficção mais como universo do que como
narrativa. Em Grindhouse, o parque temático torna-se
muito propriamente a sala de cinema: no instante em
que começa a projeção, somos atirados para um cinema
poeira especializado em filmes B. Vistos um após o outro,
como deve ser, os filmes de fato nos instalam numa situação
diversa daquela em que normalmente estamos como espectadores
e nos solicitam a, simultaneamente, mergulhar na experiência
proposta e identificar na imagem do filme suas referencialidades.
Me chama particularmente a atenção a conversão de fatos
que dizem respeito a condições sociais e históricas
de exibição e à materialidade da obra, em fato estético.
Riscos, sujeiras, desfoques, pulos na imagem, revelação
vagabunda; tudo isso torna-se característica plástica
do filme e fator determinante de sua constituição como
espetáculo. Sem dúvida, Planeta Terror beneficia-se
disto mais do que À Prova de Morte. A “equação”
proposta entre a emulação de um determinado cinema,
situado no tempo e no espaço, e a realização de uma
obra autoral é, para mim, mais bem-sucedida em Rodriguez
do que em Tarantino. Planeta Terror é abundante
em todos os efeitos de imagem citados e conta ainda
com um trailer de um filme de ação B dos mais típicos.
Já À Prova de Morte, neste sentido, parece ficar
um pouco perdido entre o gênero e as preocupações de
Tarantino como autor. Sinto inclusive que a primeira
parte do filme peca em ritmo e não conta com diálogos
tão bons quanto a segunda. Mas é preciso ressaltar que
as seqüências de perseguição são todas fenomenais, assim
como os usos de música. No geral, acho que Tarantino
fez um belo filme, mas preocupou-se mais em tocar seu
trabalho, já todo ele pautado em referências e ícones
da cultura popular, do que em gerar um filme a partir
de um modelo. À Prova de Morte me distanciou
um pouco do cinema poeira no qual estive durante Planeta
Terror e me trouxe um pouco mais para a sala do
Unibanco Arteplex na qual eu de fato estava sentada.
Ainda em relação a essa sensação de orientação no tempo,
outro dado bastante interessante de ambos os filmes
é o trabalho de arte perdido em algum lugar entre o
passado e o presente. Celulares e roupas da moda convivem
harmoniosamente com cortes de cabelo defasados e modelos
de carros antigos. Da mesma forma, a citação a Bin Laden
em Planeta Terror não parece nada deslocada de
sua “trama” mezzo-inspirada nas ficções cinematográficas
da época da Guerra Fria. À tarde, foi a vez de conferir
De Volta à Normandia, que também não havia assistido
no Festival do Rio. O filme de Philibert, como observou
Junior em sua crítica,
é preciso em seu desejo de mostrar o fazer das coisas,
as atividades que inserem os homens na ordem da sociedade.
Nesta observação do trabalho, matar um porco pode se
assemelhar a cortar um filme na enroladeira. Mas, também,
a matar a família “a pedido” de Deus. Talvez o mais
instigante deste filme seja a relação que Philibert
estabelece entre o crime de Pierre Rivière e o cotidiano
rural, tanto no aspecto de uma relação com a natureza
pautada pela proximidade e pela violência, quanto no
aspecto da necessidade de organização de tarefas e de
papéis sociais. E, neste cenário, o cinema, como trabalho,
entraria para indagar e para buscar nas pessoas seus
traços decisivos, para além da operacionalidade em que
estão inseridas. Daí o filme encontrar, apenas no final,
a imagem que era o motivo de toda a sua realização:
o plano cortado da montagem final do filme de René Allio:
a do pai de Philibert. Ali, na pura contemplação do
registro em filme daquele ser ainda em vida, o realizador
encontra motivo suficiente para ir ao encontro de tantas
outras pessoas. (TM)
Domingo, 21 de outubro de 2007
Chegar num segundo dia de Mostra, mesmo que se tenha
visto no Rio, mesmo que tenha sido inevitável
por conta de trabalho, dá sempre uma sensação
de ligeira defasagem, de uma falta a ser reparada, que
é acompanhada do desejo de imersão e de
compensação. Não sei se é
regra geral, mas pelo menos funciona assim na maníaca
cabeça deste que vos digita essas linhas. Resultado:
cinco filmes no dia, e um trajeto bem irregular, envolvendo
ao final dois filmes pelos quais a minha curiosidade
já era pouca para começar (Manchevski,
Moore), mas que são filmes "dos quais se
fala", aquele filme que um editor de revista, mal
ou bem, não pode deixar passar (ainda que passar
por um desses também seja uma forma de afirmar
alguma coisa, e até funcione como proposição
crítica par défaut). Aos filmes:
começar a Mostra de pé direito é
sempre bom, e a minha foi assim. Inútil
de Jia Zhang-Ke não é tanto um filme sobre
o "mundo da moda", como foi propagandaeado,
do que um filme sobre roupas, seu uso social, sua funcionalidade,
o modo como ela reflete e constrói relações
sociais e dados de mentalidade. O filme alterna, em
sua estrutura, entre o acompanhamento de uma estilista
(com depoimentos sobre sua concepção de
roupas e de mundo, filmagem de uma apresentação,
processo de trabalho, etc.) e o modo como os chineses
"normais", aqueles que representam os traços
comuns da maioria das populações chinesas
o que para Jia Zhang-Ke sempre vai significar
sua terra natal, Fenyang, em Shanxi , fazem uso
da questão de roupas, como interpretam a vestimenta
como necessidade, funcionalidade e beleza, e em que
grau cada uma dessas coisas exerce mais influência
dependendo do meio em que se vive. A vedete do filme,
no entanto, é o belíssimo trabalho formal
criado por Jia com o diretor de fotografia Yu Lik-wai,
com seus movimentos laterais de câmera que, associado
à música algo cavernosa de Lin Giong (dois
parceiros habituais do cineasta), dão ao filme
um pronunciado olhar de investigação sobre
o comportamento humano. É impressionante como
Jia, mais uma vez, consegue materializar em sua obra
as questões históricas do processo de
modernização da China contemporânea,
com um olhar mais de investigador do que com uma visão
moralizante. Em seguida, corridas de cima abaixo pela
Paulista para retirar os ingressos dos filmes seguintes.
Na correria, chega-se a O Homem de Londres, e
atravessamos a cortina do ex-Cinearte 1, hoje Cine Bombril,
a tempo de ver a vinheta da Mostra e pegar o filme do
começo. A aventura, no entanto, não se
vê refletida no filme, que tem um dos trabalhos
de forma mais confortavelmente "de arte" que
se pode imaginar. Não sou um conhecedor do cinema
do Béla Tarr, mas O Homem de Londres me
deixa a límpida impressão de uma estética
já inteiramente mastigada, inteiramente assimilada
depois de tanto trabalho em cima das formas que Antonioni,
Welles, Dreyer e muitos outros ajudaram a consolidar.
O filme dá a clara impressão de uma mistura
entre Angelopoulos e irmãos Coen (os piores irmãos
Coen, aqueles de O Homem Que Não Estava Lá,
com o qual o filme de Tarr divide o preto-e-branco),
de personagens fortes como imagens mais inexistentes
em qualquer outra camada, mas acima de tudo a escolha
de uma forma já toda pronta, toda acabada, um
ritmo já todo concebido, que pode ser (e é)
aplicado indiscriminadamente a qualquer conteúdo
sensível (ou seja, espaço, personagens,
intriga) sem que se precise negociar com as formas da
matéria que o filme utiliza. E assim a arte definitivamente
não tem graça, virando badulaque virtuoso
para madames. Próximo: Reserva Cultural 1, com
sua sala mais ampla do que a 2 que pertencia à
Mostra nos anos passados, mas com uma total falta de
jeito em atender ao espectador que, como eu, gosta de
sentar na frente. La León, já passado
e perdido no Festival do Rio, poderia tranqüilamente
ter continuado perdido, pelo menos para mim. Há
de se louvar, um pouquinho, a escolha pelo laconismo
e a locação evocativa do filme, que lembra
por vezes Los Muertos de Lisandro Alonso. Mas
o filme fica por aí. Digital cinemascope em preto-e-branco
que no entanto não se resolve como quadro, ora
ostentatório ora pobre de enquadramentos, amadorismo
"bressoniano" dos atores, blé. É
chique, é bacana que tenha alguém fazendo,
mas francamente não é nada demais. Mas
se pode sempre piorar, e o dia piora: Sombras, de Milcho
Manchevski. Já não conseguia compreender
o estardalhaço feito com Antes da Chuva,
que lé por meados dos anos 90 foi o filme engana-otário
do ano: os vai-e-vens temporais ocasionavam comparações
com Pulp Fiction, o sentimentalismo evocava Kieslowski,
as várias intrigas emulavam Altman com seu influentíssimo
Short Cuts. Mas... blé. Sombras,
no entanto, é pior do que mesmo o espectador
de maior boa vontade poderia imaginar. Narrativa que
intercala susto de filme de terror com uma história
metafísica (risos) de religação
a um passado, o filme é tão primário
em tudo que apresenta, nos ridículos excessos
de composição (que, logo no início,
o plano de um aparelho celular tocando em primeiro plano
depois de um terrível acidente de carro, já
antecipa) e na inépcia em instaurar o drama,
que num dado momento só nos restou o sono (é
por isso que o filme não terá uma bolinha
preta minha no quadro de cotações, simplesmente
porque dormi no meio o que, aliás, aconteceu
no Rio com Gregg Araki e o terrível filme de
Michel Gondry). Ao fim, revigorado com um tantinho de
sono num dia cansativo, vi S.O.S. Saúde
de Michael Moore e confesso que achei muito mais interessante
do que esperava. É claro que, em se tratando
de Michael Moore, existem sempre umas facilidades na
construção do argumento, sempre uma opção
pelo espalhafato em lugar da análise. Pode-se
dizer que é o modo de proceder dele, e que criticar
isso é criticar o modelo. Mas me parece que,
se os filmes se vendem como observações
que tocam em temas sociais e políticos importantes,
é também sob essa luz que eles devem ser
avaliados. Mas, ao contrário de um Fahrenheit
9/11 ou de um Tiros em Columbine, S.O.S.
Saúde encontra um saudável foco (apesar
de duas ou três digressões francamente
dispensáveis) na necessidade (ou desnecessidade)
de um sistema público de saúde. Convém
dizer que o filme se sai impressionantemente bem quando
trata de investigar o uso da palavra "social"
(e a conseqüente "Socialismo") para desbancar
o argumento conservador de que um sistema público
de saúde é o caminho para a comunização
de uma sociedade. Confesso que nunca vi o filme dele
sobre a GM, que até hoje só vi o programa
boboca de televisão (trechos de alguns episódios,
na verdade, zapeando entre intervalos) e os dois filmes
que entraram em cartaz. Como humor, tudo sub-Monty Python,
e politicamente nada com muita verve de real polemista.
Mas S.O.S. Saúde, ainda que irregular
e definitivamente menor, até que tem seus momentos
de interesse. (Ruy Gardnier)
Sábado, 20 de outubro de 2007
Por que não começar a mostra com A
Questão Humana, do Nicholas Klotz? Parecia
uma bela opção, tínhamos tudo para
entrar com o pé direito (desde que vi A Ferida
na Mostra de São Paulo, em 2004, aguardo ansiosamente
por um novo filme de Klotz). Mas, logo ao chegar ao
HSBC Belas Artes, o amigo e ex-contracampista Cláudio
Szynkier poupou-nos de ir até a bilheteria para
receber a má notícia: a cópia não
havia chegado a tempo. Bom, não teve jeito, A
Questão Humana ficou pra hoje no CineSesc
(há males que vêm pro bem, assistirei ao
filme numa excelente sala). Fomos então, eu e
Tatiana, para o Reserva Cultural. Lá vimos Angel,
do François Ozon, e Help Me Eros, o segundo
longa-metragem de Lee Kang-sheng. Já nos primeiros
minutos de Angel, percebemos que Ozon mergulha
visual e dramaticamente no universo daquele tipo de
best-seller mais cafona e vagabundo possível,
aquele cuja escritora produz 2 ou 3 livros por ano e
vende em tudo quanto é livraria e banca de jornal.
Ozon fez com esse tipo de folhetim romântico alguma
coisa que lembra a operação de Fassbinder
com o melodrama. Acontece que Ozon não é
Fassbinder (nem estamos exigindo que fosse). O filme
tem algo estranho, que parece estar além da superfície
do jogo e do efeito-imagem. É curioso ver um
filme de Ozon tão perturbado por uma potência
de morte, que sai da protagonista e contamina o entorno.
A tonalidade do jogo é próxima de Oito
Mulheres, mas com uma perturbação
a mais. Pena que a cópia digital exibida (já
legendada em português) seja de qualidade tão
ruim, pois todos os matizes da fotografia de Denis Lenoir
parecem se perder no excesso de brilho e nas cores,
digamos assim, suspeitas que vemos na tela. Na sessão
seguinte, vimos um Lee Kang-sheng mais desprendido (em
relação a Tsai Ming-liang) e mais criativo
do que a impressão que tive em O Desaparecido,
seu primeiro longa (passou na Mostra de 2003). Help
Me Eros tem algumas composições muito
interessantes, por vezes sacações visuais
realmente criativas e pregnantes (certos planos, no
entanto, pareciam misturar reflexos de espelho ou televisões
ligadas de forma despropositada, prejudicando a fruição
da cena, mas, no geral a criatividade tinha um boa correlação
na narrativa). Embora Lee demonstre em várias
passagens que filma buscando um estilo próprio,
alguns traços marcantes de Tsai podem ser verificados
com facilidade (uso recorrente de plano fixo e longo,
trama mínima, ambientação do filme
em contra-espaços, lógica do desencontro
entre os personagens, cenas musicais bem ao estilo Tsai).
Incomoda-me em particular a cena em que Lee teria um
encontro com a mulher com quem conversa no MSN, mas
esse encontro, como era de se prever, não ocorre,
se frustra. É exatamente o beco sem saída
desse cinema sem confronto, sem campo-contracampo. Que
o tête-à-tête não ocorresse
era justo o que eu previa, mas gostaria de ver acontecer
diferente. Falaremos mais nos textos. (LCOJr)
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