DIA DE MOSTRA
Diário de bordo dos editores na Mostra de São Paulo

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Domingo, 4 de novembro de 2007


Passada a correria da cobertura em tempo real, faltando ainda algumas críticas para entrar no ar, elaborando em cima dos mimos ao leitor para a próxima edição (entrevistas com Nicolas Klotz e José Luis Guerín, trechos de áudio de Jia Zhang-Ke falando de seus filmes), a repescagem se vive um pouco como os minutos de acréscimo de um jogo ganho, a chance de rever alguns filmes, rever os amigos, matar as saudades das salas de cinema e do doce périplo de subir e descer a Augusta ou passear pela Paulista, de vez ou outra fazer uma locomoção maior rumo às salas distantes da parte central (a maravilhosa nova sala da Cinemateca, na Vila Mariana, ou a antiga cinemateca que era UOL e agora é IG, em Pinheiros). Mas o fim de uma mostra é também a oportunidade de um balanço do evento, de suas retrospectivas, de sua organização, de sua seleção, do que tantos filmes juntos dão ao pensamento. No que diz respeito aos filmes contemporâneos, a superioridade cantada em prévia ao Festival do Rio não se fez valer. Ainda que a Mostra tenha permitido entrar em contato com obras estonteantes que não estiveram no Festival (A Viagem do Balão Vermelho, En la ciudad de Sylvia, Onde os Covardes Não Têm Vez, Redacted), parte disso se deve à vantagem de um mês que a Mostra tem em relação ao Festival – sobretudo para exibir os filmes estreados em Veneza – e parte se deve a filmes que estão comprados e vão estrear. E, se lembrarmos que a Mostra não trouxe dois filmes considerados fundamentais para a revista exibidos no Rio, Mulher na Praia de Hong Sang-Soo e Floresta dos Lamentos de Naomi Kawase, a equivalência das seleções contemporâneas se faz bem mais presente. Nas retrospectivas, onde São Paulo tinha toda a chance de dar goleada no Rio, na hora do vamos ver os filmes de Jia Zhang-Ke foram exibidos em digital de baixíssima qualidade (isso era tão costumeiro ouvir nas filas e salas quanto a reclamação sobre os intermináveis atrasos das sessões) e os filmes de Jean Paul Civeyrac não se revelaram tão fortes quanto imaginávamos, e a descoberta de um novo e sólido autor não aconteceu. Não que Civeyrac seja péssimo ou algo do tipo: há boas idéias, há um charme desajeitado nesse elogio do amor excessivo, autodestrutivo e desembestado de seus personagens, mas a forma estabelece sempre um terreno bastante confortável para a ficção se desenvolver, na área bastante conhecida e codificada do cinema de autor com bom gosto e grandes sentimentos (a morte, mamória, a infância). Os que não vi – e alguns dos que falaram que eram os melhores, Através da Floresta, Fantasmas – pretendo completar no futuro, mas ao menos na Mostra não causou comoções maiores em ninguém. Os destaques mesmo vão para Tabu, em sessão com excelente acompanhamento ao vivo no CineSesc, e Lost Lost LostDiaries, Notes & Sketches, de Jonas Mekas, uma dessas obras que demandam uma outra relação com a imagem cinematográfica e com o ato de ver filmes projetados numa sala escura. No quesito organização, como já dissemos, a Mostra involuiu alguns estágios na precaríssima pontualidade das sessões, e manteve seu padrão de trocar sessões na última hora. Mas, em comparação com o Festival do Rio, a tentativa de acomodar o máximo de espectadores interessados nas sessões lotadas, ainda que tivesse rendido uma ou duas confusões (em especial uma de A Questão Humana ao meio-dia de uma terça-feira com direito a uma dúzia de senhoras histéricas), foi algo louvável e mostrou uma real preocupação de cinéfilo dos gerentes de sala e organizadores para com o público. Quanto aos convidados internacionais, Civeyrac esteve por aqui, Klotz e Guerín também, Jia Zhang-Ke teve uma passagem relâmpago e portanto nós, "sites" (para a assessoria essa é a nossa designiação), não tivemos acesso a ele. Por conta de uma greve na Air France, Pedro Costa não pôde estar presente na Mostra como jurado – o que empata com a ausência de Chantal Akerman no júri do Festival do Rio. E apenas para informar ao leitor a situação, já que essa coisa de ficar reclamando mais uma vez da pouca honra concedida a nós pela Mostra não nos agrada muito, novamente tivemos direito a apenas duas credenciais, o que de certa forma prejudicou o andamento do diário porque uma de nossas editoras, a Tatiana, não pôde programar seus dias com antecedência e acabou tendo que pagar por filme e entrar no cansativo esquema de correr às bilheterias ainda cedo no dia, e mesmo assim perdendo certas sessões por falta de ingressos. Se é lógica da Mostra, tudo bem. Se é birra, direito deles. Agora, só não dá para aceitar que o curador de uma mostra que dá duas credenciais a revistas eletrônicas sérias e ensaísticas ao passo que concede várias credenciais a veículos informativos ou de fofoca venha falar em "crise da crítica e da cinefilia" sem que ele coloque o processo seletivo de credenciais de sua própria mostra como uma das evidências maiores de uma "crise". Que não é da cinefilia nem da crítica, mas de uma geração que foi qualitativamente ultrapassada por assentar-se muito confortavelmente em seus papéis de poder (geralmente legitimado pelo renome do veículo mais do que pela coerência e perspicácia da escrita) e fazer da crítica o objeto mesquinho de diatribes personalistas de prima donna. Mas, como já diz o bom senso, trust the tale, not the teller, e confiemos na obra mais que no autor. Porque o cinema é muito, muito maior que isso. E, mesmo com tantas questões ainda a resolver, os filmes exibidos fazem a perfeita confirmação disso.

Quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Não foram poucas as discussões ontem sobre Redacted, de Brian De Palma. Fosse saindo da sessão do filme no Cinesesc e caminhando pela Augusta ao lado de Rodrigo de Oliveira, fosse sentando no bar à noite, na companhia de Eduardo Valente, Gilberto Silva e, novamente, Rodrigo. Muito pensei durante o filme e nas conversas posteriores, mas não possuo ainda certezas sobre ele. O trabalho com diferentes formatos audiovisuais que De Palma realiza é sem dúvida um mérito incontestável. Temos em Redacted um episódio de estupro e morte na Guerra do Iraque narrado através de registros de imagem diferenciados: um documentário humanista, um diário filmado, depoimentos através de webcams (disponibilizados em sites pessoais), noticiários locais, câmeras de vigilância nas bases americanas, vídeos terroristas realizados por milícias e colocados na internet, live chat. O filme tematiza, de fato, esta inflação de imagens-narrativas suscitada por um evento político marcante. Se o 11 de Setembro caracterizou-se pelo imponderável de uma imagem “cinematográfica” tornando-se realidade e sendo então repetida à exaustão, os eventos dele decorrentes revelaram-se bastante profícuos em termos de representações. Desde a fotografia feita com um celular de Saddam Hussein sendo retirado do seu esconderijo, temos a certeza de que as novas tecnologias da imagem estão disseminadas por todos os cantos, presentes em todo e qualquer tipo de acontecimento e suscitando a proliferação de documentos audiovisuais de proveniências diversas. O que De Palma faz é “compendiá-las” e retomá-las em sua dimensão de dispositivo, para narrar a boa e velha história de guerra que conhecemos, inclusive com seus personagens típicos. Minha pergunta é: até que ponto pode-se utilizar um dispositivo de forma maneirista, a despeito de sua carga discursiva e ideológica? Para mim não resta dúvidas de que todos os dispositivos-forma empregados por De Palma em Redacted respondem intrinsecamente a uma vontade de verdade do registro, de autenticidade do que é mostrado. Ora, De Palma claramente deseja realizar com seu filme uma narrativa de guerra deveras tradicional, uma ficção nos moldes hollywoodianos. Não seria a combinação entre este desejo de narrar e a multiplicação de formas narrativas audiovisuais que o filme propõe, uma combinação fatal? Ou, ao contrário, a revelação de que nossas vontades de ficção permanecem as mesmas, mesmo que sua forma de produção tenha mudado? Corte: Senhores do Crime, de David Cronenberg. Espécie de derivação de Marcas da Violência, o último filme de Cronenberg emprega a violência mais como signo visual a ser retrabalhado (seca, dura, física, pesada, sombria), do que como efeito dramático. No franco diálogo com o gênero, Senhores do Crime busca seus desvios de uma pura narrativa da ação, para mergulhar nos detalhes mórbidos da violência. Curiosamente, senti ter ali mais verdades do mundo (sem considerar isto um mérito a priori, bem entendido) do que em Redacted. As nuances indefiníveis entre personagem do bem e personagem do mal e entre ato criminoso e ato justo nos colocam a um passo de uma violência repugnante quando aplicada às vítimas erradas, mas estranhamente aceitável como método de garantir o sono dos justos. Em tese, ao menos. Quando vista graficamente, como Cronenberg nos apresenta, o impacto do vermelho do sangue nos coloca contra a parede e nos interroga. Sem dúvida, dois filmes que ainda dão muito pano pra manga. (TM)

Quarta-feira, 31 de outubro de 2007


Christophe Honoré em questão? Aparentemente a Mostra é uma ocasião apropriada para isso, uma vez que até aqui seus filmes não tinham circulados por telas brasileiras. Até então, só tinha assistido a sua versão para Ma mère, romance póstumo (na verdade, inacabado) de Georges Bataille que seria uma continuação do decisivo Madame Edwarda. A questão principal com a versão de Honoré para Bataille é que Bataille é infilmável por qualquer um que não seja um verdadeiro místico, que acredite verdadeiramente que filmando o filmável pode se chegar ao infilmável. Kiarostami, Lynch, Tarkovski poderiam tranqüilamente se arriscar nesse terreno, mas a questão para Honoré é acima de tudo narrativa, uma certa celebração da vida a partir da dor, ou da vida com a dor. Acaba que Ma mère não é exatamente ruim, simplesmente um filme que se observa, um pouco pelo fetiche, um pouco pelas interpretações de Isabelle Huppert e Louis Garrel, e não mais. Com Canções de Amor e Em Paris, nasce a chance de um olhar mais detido ao cinema de Honoré. Fala-se muito de seus empréstimos (ou citações, ou elogios) à nouvelle vague – em Canções, ecos de Uma Mulher É uma Mulher, As Duas Faces da Felicidade, Jacques Démy, Jean-Piere Léaud; Em Paris, um desejo de filmar a cidade pela cidade, uma certa graciosidade veloz de um Zazie no Metrô, por exemplo –, de um apego às situações vividas entre luto, desespero, depressão e uma certa alegria de viver de filme musical, uma graciosidade gratuita que por sua própria liberdade transborda na tela. Isso aparece nos dois filmes que a Mostra exibe nessa 31ª edição. Mas falar de nouvelle vague e do gosto acridoce particular dos filmes de Honoré é revelar apenas uma faceta de seu cinema, e mesmo apenas uma faceta da adesão à história do cinema francês. Porque se ele toma emprestado muito do desejo de ser charmoso e de uma certa vontade de filmar a vivacidade do mundo, por outro lado, existe uma espécie de elogio fácil da vida em seus filmes que rima um pouco com uma certa abstinência da mise-en-scène em criar um tipo particular de olhar, uma generosidade já dada de antemão e não construída pelas situações vividas, que rima em parte com aquilo que Daney falou de Lelouch e que Cássio Starling Carlos citou recentemente em artigo da Folha polemicando com Leon Cakoff: um certo elogio publicitário da vida. É claro que em seus momentos melhores – e Em Paris é um bocado mais interessante que seus outros filmes – a menção é improcedente, e tampouco se trata de atribuir um fardo tão pesado e deselegante quanto a comparação com Lelouch, mas me parece haver nos filmes de Honoré, ao menos os três vistos até hoje, um certo ar açucarado voluntariamente em demasia que quer-se fazer traduzir rápido demais por charme e graça, mas que em contrapartida também representam o limite desse cinema, um tanto simpático demais, um tanto auto-indulgente, sem no entanto considerar como menor essa minoridade (porque há sempre o peso da vida, etc.). Talvez o final de Aprile, de Nanni Moretti, lhe valha uma pequena lição. (RG)

Terça-feira, 30 de outubro de 2007 (II)

Após uma inspiradora entrevista-conversa com Nicolas Klotz e sua parceira Elizabeth Perceval (a ser publicada em nossa próxima edição), na qual cinema e mundo pareciam uma coisa só, o que mais esperar da Mostra? E eis que ontem me vi frente a frente com o filme de José Luis Guerín, fortemente recomendado pelos amigos contracampistas Filipe Furtado e Rodrigo de Oliveira. En la ciudad de Sylvia é uma autêntica celebração ao “estar no mundo”. Guerín filma rostos, gestos e movimentos de forma a nos inserir como observadores no espaço em que o filme se passa. O som ambiente, trabalhado magistralmente para criar uma ambiência completa, reforça e amplia a sensação de passagem, de estar provisório. Embora calcado no olhar de um personagem, que dedica-se a perscrutar atenciosamente seu entorno, o filme não trabalha o registro exclusivamente como criação de um ponto de vista. Os enquadramentos são precisos em seus recortes, compondo diferentes quadros a partir de cenas super-populadas ou de espaços complexos. Nestes quadros, a escolha do foco simula a focalização da atenção humana e os diferentes eixos das tomadas fracionam o espaço em uma série de fatias isoladas, como diferentes pinturas possíveis a partir de um mesmo cenário. Pinturas impressionistas, sobre pessoas num determinado instante, num determinado canto da cidade. A circulação constante em torno do personagem principal, obcecado com as fisionomias femininas, que ele interroga de um ponto fixo no qual ele se instala – na esperança de encontrar um rosto do passado –, faz surgirem fantasmas, imagens incompletas e temporárias. Preocupado mais em construir um sentimento de precariedade do que de síntese, Guerín cria uma belíssima sinfonia urbana. Mas de uma urbis modesta, Strasbourg, e a partir de seus habitantes mais que comuns. Que o cinema se alimenta do mundo para nos devolvê-lo em imagens, nós já sabíamos; mas que ele poderia se confundir com o mundo em situações tão corriqueiras e banais quanto encantadoras, pareceu-me ali dentro da sala uma grande descoberta. Guerín filma sobretudo pessoas anônimas em espaços públicos e, embora em diversos momentos (como os planos que envolvem o ônibus elétrico), ele crie eventos puramente cinematográficos, no que tange a efeitos da imagem e do quadro, na maior parte do tempo ele parece estar filmando o nada e o tudo ao mesmo tempo. Em suma, o estar cotidiano de todos nós, para o qual não há sentidos possíveis. De forma atravessada, lembro-me agora de A Curva, de Salomão Santana, visto no último Festival de Cinema Universitário, que evoca sentimentos afins. Em ambos, não há tentativa de extrair poesia deste “nada” – como em Suíte Havana, de Fernando Pérez, por exemplo –, mas apenas o desejo de conferir mistério a ele. (TM)

Terça-feira, 30 de outubro de 2007
(I)

(Esse diário era para ter entrado no ar quatro dias atrás, mas por empecilhos técnicos só pôde entrar hoje. O interessante é que outras pessoas da revista já viram o filme Sukiyaki Western Django, que aqui detonarei, e gostaram, portanto meu ponto de vista provavelmente terá, em breve, uma crítica que faça contraponto. Continuo bem impaciente com a brincadeira adolescente do filme e avesso ao tipo de comportamento espectatorial que o acompanhou na sessão em que estive – HSBC Belas Artes 2, sexta-feira à noite.) Não chego a ser um fã de Takashi Miike, mas sempre espero dele alguma coisa no mínimo dos mínimos original e visualmente instigante. Embora Sukiyaki Western Django não fosse alvo de muita expectativa (faz tempo que um filme de Miike não chega por aqui e, sinceramente, não foi uma falta das mais sentidas), um gosto de decepção pairou no ar. O prólogo do filme é até divertidinho, tem Tarantino fazendo participação especial, tem cenário de estúdio muito bem arquitetado, tem uma decupagem pastiche de western spaghetti... tem um bocado de aspectos divertidos e interessantes. A piada, contudo, podia ter terminado ali. O resto de Sukiyaki Western Django é um amontoado de clichês de um cinema que usa as hipérboles de violência e os jogos de saturação e de deslocamentos (no caso, aqui, o western é ambientado nos cenários e mitos do Japão e hibridizado aos filmes de yakuza e de samurai) dos códigos de gênero como novas convenções de espetáculo. A galera ri aos montes, aplaude, mas a anedota para mim dura pouco, meu entusiasmo acabou, como já disse, no prólogo. O lúdico e a extravagância da representação não chegam aos pés de Rápida e Mortal do Sam Raimi, por exemplo (outro filme onde o faroeste também é uma “terra dos mortos”). Os últimos quinze minutos, para não dizer que me entediei com o filme por completo, foram quinze minutos de ação intrigantes pela inventividade da montagem (sobretudo da pista sonora). Mas nem como brincadeira carinhosa com Corbucci e Leone o filme convence. E se lembrarmos de todo o western maneirista feito de lá para cá, a coisa perde ainda mais sentido. Acredito na autenticidade das refrências cinéfilas de Miike, mas mesmo assim acho que esse filme não passa de um tipo de espetáculo pós-Tarantino cada vez mais bobo, ótimo para ser exibido no final das maratonas e alimentar não a cinefilia, mas a cinefolia. (LCOJr)

Segunda-feira, 29 de outubro de 2007


Como sobrevivem ao tempo as obras-primas? Como confrontamos as obras-primas do passado com aqueles filmes que elegemos como as obras-primas de hoje? Como se transforma o estatuto de um filme, quase sempre multifacetado e controverso quando de sua estréia, comportando senões, ressalvas, desbanques, a ponto de fincar pé definitivamente na História do cinema como um dos grandes marcos da arte? Dizemos isso porque o CineSesc presenciou ontem a um desses momentos em que uma dessas grandes obras definidoras do passado – Tabu, de F. W. Murnau – passou logo depois de I'm Not There, filme de-agora-agora de Todd Haynes, que este mesmo diário coloca como ápice cinematgráfico do ano. Muito pouco em comum, naturalmente, entre esses dois filmes: um fala de um destino impiedoso, o confronto com a tradição e a conseqüente derrota trágica, a limitação das ações, dos saberes, o elogio dos sentimentos autênticos e primitivos contra a avidez do planejamento e da má-fé. Outro empenha-se em mostrar o sentimento autêntico como um gesto de resistência, autodestrutivo mas definitivamente poderoso, um libelo contra o mundo desencantado dos clichês, das respostas prontas, de uma política de identidades que gosta mais de encerrar significados do que de provocá-los pelo choque criativo. Não se trata, obviamente, de colocar um contra o outro – ambos sairiam perdendo. O importante é acima de tudo o trabalho sobre o material artístico tendo como finalidade a expressão, e atentar para os diferentes momentos da História do cinema em que surgem essas obras. Tabu nos remete a um mundo em que havia um pacto de crença na imagem: crença nos sentimentos puros, crença no poder de conotação da arte, no trabalho de inserção de código figurado através de gestos, luz, montagem. Essa crença permite, por exemplo, a fantástica seqüência de montagem em que o herói planeja quitar suas dívidas com uma enorme pérola. Essa crença também auxilia a transformar a aparição do patriarca da tribo, primeiro como fantasia e depis como carne e osso, em alguns dos planos mais assustadores do cinema. Essa crença, dos anos 60 até os dias de hoje, só diminui. Cabe aos cineastas, a cada geração, trabalhar com novos níveis de verossimilhança, de naturalismo, de jogar com o código tentando ir além da simples mímese naturalista mas negociando com o tipo de expectativa de um determinado público. I'm Not There cria seu mundo conotativo pelo tom operístico, pela inserção do glamour e pelo jogo dos tempos distintos com personagens distintos, pelos efeitos rítimicos de montagem que, pela velocidade e pelo poder evocativo de certos cortes que remetem a Vertov, a Eisenstein, a Godard. Mas o filme só o consegue fazê-lo porque ele reconstrói uma realidade a aderir, uma crença wildiana-baudelairiana-nietzschiana na máscara como princípio revelador, não porque ele tem um traço de filiação automático, direto, uma via límpida de acesso com aquilo que ele filma. Haynes, em todo seu cinema, diz que essa via precisa ser construída, trabalhada, conceitualizada, disponibilizada ao espectador como um jogo de decifração. De certa forma, todos os melhores realizadores contemporâneos participam dessa idéia de um real difícil, ou complexo, que se precisa escavar (Eastwood), fantasiar (Shyamalan), retemporalizar (Kiarostami), perspectivar historicamente (Oliveira), modular ritmicamente (Hou Hsiao-hsien), jogar (Weerasethakul, Haynes), olhar no microscópio (Hong Sang-Soo). De certa forma, essa construção de um real complexo por parte dos melhores realizadores contemporâneos é talvez a maior evidência da impossibilidade do classicismo no cinema contemporâneo. (RG)

Domingo, 28 de outubro de 2007

Depois de uma maratona São Paulo-Rio-São Paulo devida a shows e compromissos de trabalho – digredindo, é impressionante como todos os principais eventos internacionals do ano ocupam o bimestre setembro/outubro, muitas vezes com diversos eventos concomitantes, ao passo que o resto do ano funciona sempre em marcha baixa, sem muito de interessante acontecendo – voltamos à mostra no corre-corre, deixa malas, sono em ônibus, essas coisas. O cansaço se instala, mas faz parte do percurso. Solução? Dorflex, água, cafeína, o que se preferir. Se concentrar nos filmes, com certeza. Deserto Feliz, primeiro do dia, revela uma curiosidade grande mais como projeto do que obra. Co-produção entre Brasil e Alemanha, o filme parece ter inscrito em seu modo de constituição uma certa interface internacionalizante, cinco ou seis tiques do cinema de autor contemporâneo, e uma emulação por vezes muito forte de alguns filmes brasileiros recentes que têm relação forte com o exterior: O Céu de Suely, Cinema, Aspirinas e Urubus, Sonhos de Peixe. Imagem com uma plasticidade frontal, jump cuts, elipses fortes, personagem errante tanto pelo espaço geográfico quanto pelo sentimental, registro estetizante-objetivo. Tem lá sua graça quando não se deixa levar pela forçação de barra no miserabilismo, como o vergonhoso movimento de câmera que revelando que um cafofo infecto recebe em sua porta o nome "suíte prezidencial" (sic), criando entre um espaço sujo e a vida pouco honrosa de seus personagens determinações um tanto fáceis e, no fundo, bem babacas. Formalmente o filme se resolve meio mal e, apesar de usar e abusar de uma plasticidade "moderna", a beleza dos planos não apresenta muita organicidade em relação ao que é apresentado – trocando em miúdos, a beleza aparece um tanto gratuitamente – e a estrutura é dispersa, criando frouxidão ali onde esperaríamos síntese de diversos. Algum comentário social interessante, alguma graça nas situações (em especial pela atuação de João Miguel e da atriz principal, Nash Laila), não mais. Em seguida, meu primeiro filme de Jean-Paul Civeyrac (na semana estão agendados alguns outros), O Doce Amor dos Homens. E ainda que algumas das cenas sejam bastante interessantes, sobretudo as que envolvem relações sexuais, o filme funciona numa chave auto-complacente ultra-romântica meio desgastada, e o despojamento de certos planos rima muito mal com a previsibilidade da história e o clima de mini-série televisiva da mise-en-scène (montagem sem criatividade, trilha sonora muitos tons acima). Esperemos coisas melhores nos outros filmes. Depois, Jovem Yakuza, sobre o qual farei texto, belo filme sobre o cotidiano dos yakuza que rima em várias formas distintas com alguns objetos audiovisuais mais ou menos recentes, A Família Soprano, Big Brother, esse lance de fazer um dispositivo ficcional esgarçar uma área do cinema já bastante codificada. Os reality shows fazem pela duração, Sopranos faz pela serialização, o filme de Jean-Pierre Limosin faz pelo registro entre ficção e documentário. Ao fim do dia, já um tanto desgastado, vejo Senhores do Crime, título absolutamente estúpido para o original Eastern Promises. O diretor é David Cronenberg. E dele espera-se sempre algo genial, avassalador. Não é o que temos aqui: temos um realizador contido, claramente aderindo a procedimentos e situações utilizados em A History of Violence – tipificação no trabalho com os atores, intriga de auto-destruição dentro do seio familiar, vida dupla – para fazer, como sempre, a perturbação surgir a partir do familiar (no sentido de "já conhecido", mas aqui também no sentido mais próprio). Só que a narrativa é muito pesada, as deixas aparecem na trama meio como pisadas de elefante, e se alguns atores estão geniais (Viggo Mortensen, Jerzy Skolimowsky), alguns me pareceram deixar muito a desejar, em especial Naomi Watts, genérica demais para criar uma instalação mais pronunciada na construção daquele mundo (pensar em Maria Bello seria até covardia). Mas essas, é preciso confessar, são impressões de alguém que viu o filme cansado e que reverá o filme ainda nessa mostra para tirar a prova. Reconversão ou ratificação? Leia aqui nos próximos dias. (RG)

Sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Que melhor metáfora dentro da história do cinema para exprimir a arte da leveza e da fluidez que existe no cinema de Hou Hsiao-hsien que o balão vermelho? Errante, caminhando apenas ao controle do vento, livre das determinações de uma mise-en-scène rígida, originando ele mesmo o caminho que a câmera fará para dramatizá-lo, o balão vermelho é o renascimento dos trens de Café Lumière, as viagens de Adeus ao Sul, as economias de amores, de dinheiro, de poder em As Flores de Xangai. A Viagem do Balão Vermelho é mais uma poderosa afirmação de Hou Hsiao-hsien de que o mundo se compõe de passagens e intensidades desgarradas (de fechamento, de amarração), de uma valorização do instante fruido em sua hecceidade, da presença de certas pessoas e coisas e da circulação entre uns e outros. Essa circulação, Hou nos mostra, compõe uma música. E o cinema, ao menos para Hou, é essa melodia da circulação, os diferentes ritmos, timbres e harmonias da existência de determinadas pessoas dentro de um determinado período de tempo – um tempo, aliás, que o filme não nos força a ver como um tempo privilegiado no sentido dramático dos personagens, mas como instantes quaisquer. "O futuro do cinema", disse Juliette Binoche recentemente em entrevista à Cahiers du Cinéma. E nós referendamos, evidentemente. Há uma qualidade quase táctil, palpável que Hou constrói com sua imagem, um gosto que deriva da imagem em seu abandono, em seu pouco respeito à idéia de narração da forma que o cinema condicionou-se a funcionar. Como espectadores, somos convidados não a apreender uma gama de informações, mas a acompanhar flutuações, instabilidades, movimentos. Da mesma forma que segue o balão vermelho, Hou acompanha as variações luminosas, as muitas maneiras de reenquadrar um espaço, de inserir seus espectadores no ritmo daquilo que ele mostra. Totalmente nova equação entre controle e liberdade que o cinema de Hou hsiao-hsien estabelece, e ainda que isso tenha começado (ou tenha sido reelaborado) a partir de Café Lumière, A Viagem do Balão Vermelho impacta como o desbravamento de um território misterioso que, por um estranho capricho do acaso, é também a lapidação mais perfeita de um processo. Ressalta no filme o uso de overlapping de som, ao menos um absolutamente inédito no cinema, como a conversa entre Song Fang e o menino Pierre em off, que mergulha no plano seguinte, que mostra o menino com uma menina loira, caucasiana, ao longe descendo uma escada. Aos poucos, os dois se aproximam da câmera, atravessam a rua, a conversa continua e dura até o momento que Louise conversa com seu irmão sobre o mesmo assunto, como se todas as coisas se interligassem numa dinâmica harmoniosa de passagens. Esplêndido. Em seguida, Vocês, os Vivos, de Roy Andersson, começa citando Goethe e fazendo referência ao rio Lethe, o rio dos mortos, o rio do esquecimento. As imagens, dessaturadas, envoltas numa sensação de bruma ou de uma consistência pesada, combinam com o ritmo de personagens que, também desafetados, exercem pequenas atividades pitorescas, não sem uma certa morbidez. O filme trabalha com isso na chave de uma comédia da melancolia, lembrando talvez alguns momentos do cinema de Kaurismaki. Mas aqui o jogo é o mesmo, e só funciona com um tanto de fastio: uma série de esquetes, repetindo por vezes alguns personagens, de personagens em penúria existencial, que o título e a citação ao rio mitológico sugerem estar mortos. A vida está em outro lugar, parece dizer o filme. E, no confronto com o espectador, parece perguntar: "E quanto à sua vida?" Vocês, os Vivos funciona um pouco como uma obra de auto-ajuda, ou como uma comiseração loser que é tanto batida (absurdo surrealista + feeling depressivo = já vi isso antes) quanto desigual (a alguns momentos de real força seguem-se diversos previsíveis e tolos). Curioso dia: re-revisão de uma obra-prima, decepção com um filme que se tinha em alta expectativa, e no final uma bela surpresa (que, é verdade, já tinha sido antecipada por nosso co-editor LCOJr na crítica). Essa última corresponde a Caixas, filme de Jane Birkin que se desenvolve como uma comovente trabalho de auto-terapia familiar, onde entra pais, maridos, filhas, todos os fantasmas de isneguranças, desejo, amor, faltas de comunicação, ditos-não-ditos e toda sorte de coisa que criam problema no convívio com entes próximos. Esses fantasmas, o filme os vive como etapas necessárias de um processo, como realidades que, se ao mesmo tempo criam ruído e dificuldade em nossas vidas, também são dados constitutivos do gosto de viver, e permitem sempre uma superação – tanto uma auto-superação quanto superação do poder destruidor do fantasma. Caixas não encanta tanto por sua mise-en-scène, truncada, aleatória até. Encanta mesmo é por sua entrega, pela profundeza do mergulho que não precisa do menor sadismo para ir fundo em feridas familiares (é, Bergman, é com você). E, last but not least, atenção a um belíssimo trabalho de atores, liberados por sua condição de seres meio reais, meio iamginários, para renderem interpretações gloriosas de vivacidade e galhardia. Belo fim, delicioso dia. (RG)

Quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Que privilégio é ter diante de si a história do cnema se fazendo a nossos olhos. Que privilégio é poder admirar Diaries, Notes & Sketches, também conhecido como Lost Lost Lost, presenciar a maneira muito peculiar, quase à moda de filme caseiro, de intimizar as imagens, de atribuir a elas um caráter afetivo, uma fragilidade tão bonita e contrastante com a maneira trivial e objetiva com a qual a imagem é tão freqüentemente utilizada. E que privilégio poder ver um outro homem, de outro país, do outro canto do globo, em outro registro de cinema, lutar a mesma luta, fazer a briga entre o narrar e o mostrar para fornecer ao espectador uma liberdade devastadora, um mais acompanhar o filme do que propriamente vê-lo, entendê-lo. Le Voyage du ballon rouge é outro triunfo de Hou Hsiao-hsien, e é um desses instantes em que confirmamos que temos diante de nós alguém do patamar de um Renoir, um Mizoguchi, um Hitchcock, um Lubitsch: a maneira de fazer um mesmo filme, utilizando os mesmos procedimentos, e ao mesmo tempo ser totalmente inédito, fazer o cinema atingir sensibilidades, lugares que nunca se imaginava que ele pudesse chegar porque simplesmente ninguém perguntou dessa forma, ninguém nunca levou a ele essa inquietação. À maneira de Jonas Mekas, Hou também faz seus cinediários, sua declaração de amor à vida e ao passar do tempo e o movimento das coisas, um cine-mantra, hipnótico, doce, apaixonante. É claro que voltaremos mais longamente a ele, mas o exíguo tempo que há nesse momento é para compartilhar a enorme alegria de ver no mesmo dia dois filmes de diretores distintos, com estéticas inteiramente distintas, mas que encontram uma harmonia, uma sincronididade no gesto artístico. (RG)

Terça-feira, 23 de outubro de 2007

Sala do Unibanco Arteplex 1 lotada, como era de se esperar, e Inland Empire com pouquíssimos minutos instaura o silenzio!. Estamos no clube do silêncio de Mulholland Drive. E Lynch nos apresenta agora uma vídeo-ambiência que não se estrutura em cadeia significante, mas antes em circuitos de imagens (reconhecíveis como “lynchianas” ou não). Quando duas modalidades de olhar se cruzam (quem olha, quem é olhado – talvez haja ainda uma terceira modalidade, neutra, vigilante) e vários níveis de realidade se chocam, o resultado é Inland Empire. Tudo é rabiscado a um ponto onde não mais compõe signo. Em A Estrada Perdida, em Mulholland Drive, a iconicidade das imagens (relação com o cinema de gênero, com o thriller) ajudava o espectador a construir o universo do filme, ou melhor, a se instalar no filme, mesmo que, no fim das contas, em termos narrativos, o reconhecimento de um ou outro signo mal alterasse a disposição geral dos eventos. Agora, em Inland Empire, vemos um tachismo videográfico até então não catalogado no cinema contemporâneo. Através do digital de baixa definição, Lynch devolve ao rosto feminino a sujeira, os poros, os hematomas, a escatologia, as impurezas, a feiúra, enfim, tudo que o star-system recalcou. Sobre a calçada da fama, onde estão gravados os nomes das estrelas, dormem mendigos, imigrantes, marginais. Laura Dern lá se deita ensangüentada, com o rosto sujo, acabado, vomita sangue. Lynch realista? Essa sujeira, essa feiúra repentina, coagulada em meio ao fluxo de incompreensão e ambigüidade que marca o filme, não seria o mais estridente signo do real visto recentemente no cinema? A beleza deserta o corpo. Somos atirados ao abstrato, aos dejetos. Do rosto-miragem da estrela, passamos à careta. Não faltam, ao longo do filme, rostos histéricos, closes aldrichianos elevados a uma potência de bizarrice inédita, distorções faciais, expressões borradas: a imagem precária de Lynch a serviço de um novo tipo de nudez – patológica e pornográfica, ok, mas no fundo uma nudez qualquer, inchada no detalhe e esvaziada na essência. Inland Empire faz uma centrifugação dos lugares do espectador e do personagem. Lynch mergulha no mais insondável e angustiante da relação de um ser humano com o outro (de preferência o outro amado), ou consigo mesmo. A relação de um espectador com um filme, a propósito, é desta mesma natureza: a relação de um com o outro. “Quem é ela?”, pergunta-se no filme. “Quem é ela?”, interrogação matricial de Vertigo, de Marnie, de Dublê de Corpo. De Veludo Azul. Quem são elas? (LCOJr.)

Terça-feira, 23 de outubro de 2007


Primeiro de tudo, é importante que se diga: É INACEITÁVEL A TERRÍVEL DESORGANIZAÇÃO DA MOSTRA QUE ATRASA TODAS AS SESSÕES DOS FILMES. E dessa vez, antes que se comece por achar o bode expiatório em qualquer um ou outro de sala exibidora, basta que se olhe o tempo ridículo dado entre o fim de uma sessão e o começo de outra. É algo que está em todas as conversas dos freqüentadores da Mostra, seja no relato pessoal de como perderam sessões ou pela previsão dos dias seguintes, já contando com os futuros atrasos. Até agora, começo do dia 23, essa vem sendo a tônica negativa da Mostra. Em todo caso, os atrasos alongam a expectativa mas não nos impedem de ver bons filmes. Como Finye, de Souleymane Cissé. De Cissé, só tínhamos visto o soberbo Waati, numa dessas Mostra Banco Nacional da vida. Em Finye, nada da sofisticação sensorial do filme que até agora é o mais recente de Cissé, mas em compensação temos uma frontalidade política, um primarismo da encenação e do trabalho com os atores utilizado como máquina de precisão e aguda descrição da causalidade das decisões individuais e/ou políticas no seio de um conflito entre estudantes e direção numa escola. Vale ressaltar que o filme passou em formato digital, e um dos méritos de Waati era exatamente a utilização da luz para dar carnalidade e uma solidez sensual às situações. E, com o transfer que passou, de baixa qualidade, essa característica pode no máximo ser presumida. Mas como só se pode ver assim, é assim que vemos mesmo. Mais à noite, o destaque do dia: revisão de I'm Not There. No Rio, vi cansado e, ainda que totalmente maravilhado, não consegui acompanhar o filme totalmente como ele pede, como uma ópera tresloucada passando em ritmo de trem-bala, o teatro épico brechtiano carnavalizado por um enorme iconômano (Terra em Transe, anyone?) e revitalizado por uma enorme crença no pathos individual (como em Fassbinder, com quem Haynes já tinha flertado cinematograficamente tanto em Longe do Paraíso quanto em A Salvo), o Encouraçado Potemkin do novo século, claro, muito mais libertador e político que o filme de Eisenstein. Os superlativos e o name dropping se justificam pela incrível exuberância multifacetada do filme, sintetizada por uma montagem mágica, tanto em estrutura quanto em ritmo, fazendo surgir turbilhões de informação, vida real, fantasmas, documentário de televisão, criando Dylan como um caso social, como uma figura política, recriando a Karen Carpenter de Superstar ou o Bowie de Velvet Goldmine para explodir no rosto do espectador sua dylanologia negativa (como se fala em teologia negativa) e afirmar a mais bela das verdades, rock'n'roll, heraclitiana, impiedosa, admiravelmente instável: de que o sentido não tem essência, ele só se acontece on the run, fugitivo, na carona de alguma outra coisa, cheio de perigos e mudanças de percurso, máscaras, e para isso ele tem que assumir todas as formas sem se instalar em nenhuma: cor, p&b, melodrama, documentário, bonito, feio, refinado, tosco, preto, branco, mulher, homem, criança, absolutamente tudo desde que seja veloz veloz veloz. Um desses raros filmes dos quais se sai da sala querendo gritar, pular, lágrimas nos olhos, extravazando vida. É definitivamente pra mim nesse ano o que Juventude em Marcha foi no ano passado, o que Mal dos Trópicos foi em 2004: essa mistura de fascinação e beleza, mistério e novidade, essa percepção de que alguém está fazendo com o cinema alguma coisa que ainda não havíamos visto. É meio temerário dizer isso no dia em que você ainda vai ver o Hou Hsiao-hsien novo, mas digo mesmo assim: filme do ano. (RG)

Segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Ontem pude finalmente contemplar, em cabine de imprensa, os dois filmes do projeto Grindhouse, de Robert Rodriguez e Quentin Tarantino. Toda a idéia de resgatar não apenas um gênero ou uma tradição cinematográfica, mas também uma forma de consumir cinema, parece uma derivação da idéia do parque temático, aplicável a filmes de ação recentes como Piratas do Caribe, que nos chamam a experimentar a ficção mais como universo do que como narrativa. Em Grindhouse, o parque temático torna-se muito propriamente a sala de cinema: no instante em que começa a projeção, somos atirados para um cinema poeira especializado em filmes B. Vistos um após o outro, como deve ser, os filmes de fato nos instalam numa situação diversa daquela em que normalmente estamos como espectadores e nos solicitam a, simultaneamente, mergulhar na experiência proposta e identificar na imagem do filme suas referencialidades. Me chama particularmente a atenção a conversão de fatos que dizem respeito a condições sociais e históricas de exibição e à materialidade da obra, em fato estético. Riscos, sujeiras, desfoques, pulos na imagem, revelação vagabunda; tudo isso torna-se característica plástica do filme e fator determinante de sua constituição como espetáculo. Sem dúvida, Planeta Terror beneficia-se disto mais do que À Prova de Morte. A “equação” proposta entre a emulação de um determinado cinema, situado no tempo e no espaço, e a realização de uma obra autoral é, para mim, mais bem-sucedida em Rodriguez do que em Tarantino. Planeta Terror é abundante em todos os efeitos de imagem citados e conta ainda com um trailer de um filme de ação B dos mais típicos. Já À Prova de Morte, neste sentido, parece ficar um pouco perdido entre o gênero e as preocupações de Tarantino como autor. Sinto inclusive que a primeira parte do filme peca em ritmo e não conta com diálogos tão bons quanto a segunda. Mas é preciso ressaltar que as seqüências de perseguição são todas fenomenais, assim como os usos de música. No geral, acho que Tarantino fez um belo filme, mas preocupou-se mais em tocar seu trabalho, já todo ele pautado em referências e ícones da cultura popular, do que em gerar um filme a partir de um modelo. À Prova de Morte me distanciou um pouco do cinema poeira no qual estive durante Planeta Terror e me trouxe um pouco mais para a sala do Unibanco Arteplex na qual eu de fato estava sentada. Ainda em relação a essa sensação de orientação no tempo, outro dado bastante interessante de ambos os filmes é o trabalho de arte perdido em algum lugar entre o passado e o presente. Celulares e roupas da moda convivem harmoniosamente com cortes de cabelo defasados e modelos de carros antigos. Da mesma forma, a citação a Bin Laden em Planeta Terror não parece nada deslocada de sua “trama” mezzo-inspirada nas ficções cinematográficas da época da Guerra Fria. À tarde, foi a vez de conferir De Volta à Normandia, que também não havia assistido no Festival do Rio. O filme de Philibert, como observou Junior em sua crítica, é preciso em seu desejo de mostrar o fazer das coisas, as atividades que inserem os homens na ordem da sociedade. Nesta observação do trabalho, matar um porco pode se assemelhar a cortar um filme na enroladeira. Mas, também, a matar a família “a pedido” de Deus. Talvez o mais instigante deste filme seja a relação que Philibert estabelece entre o crime de Pierre Rivière e o cotidiano rural, tanto no aspecto de uma relação com a natureza pautada pela proximidade e pela violência, quanto no aspecto da necessidade de organização de tarefas e de papéis sociais. E, neste cenário, o cinema, como trabalho, entraria para indagar e para buscar nas pessoas seus traços decisivos, para além da operacionalidade em que estão inseridas. Daí o filme encontrar, apenas no final, a imagem que era o motivo de toda a sua realização: o plano cortado da montagem final do filme de René Allio: a do pai de Philibert. Ali, na pura contemplação do registro em filme daquele ser ainda em vida, o realizador encontra motivo suficiente para ir ao encontro de tantas outras pessoas. (TM)

Domingo, 21 de outubro de 2007


Chegar num segundo dia de Mostra, mesmo que se tenha visto no Rio, mesmo que tenha sido inevitável por conta de trabalho, dá sempre uma sensação de ligeira defasagem, de uma falta a ser reparada, que é acompanhada do desejo de imersão e de compensação. Não sei se é regra geral, mas pelo menos funciona assim na maníaca cabeça deste que vos digita essas linhas. Resultado: cinco filmes no dia, e um trajeto bem irregular, envolvendo ao final dois filmes pelos quais a minha curiosidade já era pouca para começar (Manchevski, Moore), mas que são filmes "dos quais se fala", aquele filme que um editor de revista, mal ou bem, não pode deixar passar (ainda que passar por um desses também seja uma forma de afirmar alguma coisa, e até funcione como proposição crítica par défaut). Aos filmes: começar a Mostra de pé direito é sempre bom, e a minha foi assim. Inútil de Jia Zhang-Ke não é tanto um filme sobre o "mundo da moda", como foi propagandaeado, do que um filme sobre roupas, seu uso social, sua funcionalidade, o modo como ela reflete e constrói relações sociais e dados de mentalidade. O filme alterna, em sua estrutura, entre o acompanhamento de uma estilista (com depoimentos sobre sua concepção de roupas e de mundo, filmagem de uma apresentação, processo de trabalho, etc.) e o modo como os chineses "normais", aqueles que representam os traços comuns da maioria das populações chinesas – o que para Jia Zhang-Ke sempre vai significar sua terra natal, Fenyang, em Shanxi –, fazem uso da questão de roupas, como interpretam a vestimenta como necessidade, funcionalidade e beleza, e em que grau cada uma dessas coisas exerce mais influência dependendo do meio em que se vive. A vedete do filme, no entanto, é o belíssimo trabalho formal criado por Jia com o diretor de fotografia Yu Lik-wai, com seus movimentos laterais de câmera que, associado à música algo cavernosa de Lin Giong (dois parceiros habituais do cineasta), dão ao filme um pronunciado olhar de investigação sobre o comportamento humano. É impressionante como Jia, mais uma vez, consegue materializar em sua obra as questões históricas do processo de modernização da China contemporânea, com um olhar mais de investigador do que com uma visão moralizante. Em seguida, corridas de cima abaixo pela Paulista para retirar os ingressos dos filmes seguintes. Na correria, chega-se a O Homem de Londres, e atravessamos a cortina do ex-Cinearte 1, hoje Cine Bombril, a tempo de ver a vinheta da Mostra e pegar o filme do começo. A aventura, no entanto, não se vê refletida no filme, que tem um dos trabalhos de forma mais confortavelmente "de arte" que se pode imaginar. Não sou um conhecedor do cinema do Béla Tarr, mas O Homem de Londres me deixa a límpida impressão de uma estética já inteiramente mastigada, inteiramente assimilada depois de tanto trabalho em cima das formas que Antonioni, Welles, Dreyer e muitos outros ajudaram a consolidar. O filme dá a clara impressão de uma mistura entre Angelopoulos e irmãos Coen (os piores irmãos Coen, aqueles de O Homem Que Não Estava Lá, com o qual o filme de Tarr divide o preto-e-branco), de personagens fortes como imagens mais inexistentes em qualquer outra camada, mas acima de tudo a escolha de uma forma já toda pronta, toda acabada, um ritmo já todo concebido, que pode ser (e é) aplicado indiscriminadamente a qualquer conteúdo sensível (ou seja, espaço, personagens, intriga) sem que se precise negociar com as formas da matéria que o filme utiliza. E assim a arte definitivamente não tem graça, virando badulaque virtuoso para madames. Próximo: Reserva Cultural 1, com sua sala mais ampla do que a 2 que pertencia à Mostra nos anos passados, mas com uma total falta de jeito em atender ao espectador que, como eu, gosta de sentar na frente. La León, já passado e perdido no Festival do Rio, poderia tranqüilamente ter continuado perdido, pelo menos para mim. Há de se louvar, um pouquinho, a escolha pelo laconismo e a locação evocativa do filme, que lembra por vezes Los Muertos de Lisandro Alonso. Mas o filme fica por aí. Digital cinemascope em preto-e-branco que no entanto não se resolve como quadro, ora ostentatório ora pobre de enquadramentos, amadorismo "bressoniano" dos atores, blé. É chique, é bacana que tenha alguém fazendo, mas francamente não é nada demais. Mas se pode sempre piorar, e o dia piora: Sombras, de Milcho Manchevski. Já não conseguia compreender o estardalhaço feito com Antes da Chuva, que lé por meados dos anos 90 foi o filme engana-otário do ano: os vai-e-vens temporais ocasionavam comparações com Pulp Fiction, o sentimentalismo evocava Kieslowski, as várias intrigas emulavam Altman com seu influentíssimo Short Cuts. Mas... blé. Sombras, no entanto, é pior do que mesmo o espectador de maior boa vontade poderia imaginar. Narrativa que intercala susto de filme de terror com uma história metafísica (risos) de religação a um passado, o filme é tão primário em tudo que apresenta, nos ridículos excessos de composição (que, logo no início, o plano de um aparelho celular tocando em primeiro plano depois de um terrível acidente de carro, já antecipa) e na inépcia em instaurar o drama, que num dado momento só nos restou o sono (é por isso que o filme não terá uma bolinha preta minha no quadro de cotações, simplesmente porque dormi no meio – o que, aliás, aconteceu no Rio com Gregg Araki e o terrível filme de Michel Gondry). Ao fim, revigorado com um tantinho de sono num dia cansativo, vi S.O.S. Saúde de Michael Moore e confesso que achei muito mais interessante do que esperava. É claro que, em se tratando de Michael Moore, existem sempre umas facilidades na construção do argumento, sempre uma opção pelo espalhafato em lugar da análise. Pode-se dizer que é o modo de proceder dele, e que criticar isso é criticar o modelo. Mas me parece que, se os filmes se vendem como observações que tocam em temas sociais e políticos importantes, é também sob essa luz que eles devem ser avaliados. Mas, ao contrário de um Fahrenheit 9/11 ou de um Tiros em Columbine, S.O.S. Saúde encontra um saudável foco (apesar de duas ou três digressões francamente dispensáveis) na necessidade (ou desnecessidade) de um sistema público de saúde. Convém dizer que o filme se sai impressionantemente bem quando trata de investigar o uso da palavra "social" (e a conseqüente "Socialismo") para desbancar o argumento conservador de que um sistema público de saúde é o caminho para a comunização de uma sociedade. Confesso que nunca vi o filme dele sobre a GM, que até hoje só vi o programa boboca de televisão (trechos de alguns episódios, na verdade, zapeando entre intervalos) e os dois filmes que entraram em cartaz. Como humor, tudo sub-Monty Python, e politicamente nada com muita verve de real polemista. Mas S.O.S. Saúde, ainda que irregular e definitivamente menor, até que tem seus momentos de interesse. (Ruy Gardnier)

Sábado, 20 de outubro de 2007

Por que não começar a mostra com A Questão Humana, do Nicholas Klotz? Parecia uma bela opção, tínhamos tudo para entrar com o pé direito (desde que vi A Ferida na Mostra de São Paulo, em 2004, aguardo ansiosamente por um novo filme de Klotz). Mas, logo ao chegar ao HSBC Belas Artes, o amigo e ex-contracampista Cláudio Szynkier poupou-nos de ir até a bilheteria para receber a má notícia: a cópia não havia chegado a tempo. Bom, não teve jeito, A Questão Humana ficou pra hoje no CineSesc (há males que vêm pro bem, assistirei ao filme numa excelente sala). Fomos então, eu e Tatiana, para o Reserva Cultural. Lá vimos Angel, do François Ozon, e Help Me Eros, o segundo longa-metragem de Lee Kang-sheng. Já nos primeiros minutos de Angel, percebemos que Ozon mergulha visual e dramaticamente no universo daquele tipo de best-seller mais cafona e vagabundo possível, aquele cuja escritora produz 2 ou 3 livros por ano e vende em tudo quanto é livraria e banca de jornal. Ozon fez com esse tipo de folhetim romântico alguma coisa que lembra a operação de Fassbinder com o melodrama. Acontece que Ozon não é Fassbinder (nem estamos exigindo que fosse). O filme tem algo estranho, que parece estar além da superfície do jogo e do efeito-imagem. É curioso ver um filme de Ozon tão perturbado por uma potência de morte, que sai da protagonista e contamina o entorno. A tonalidade do jogo é próxima de Oito Mulheres, mas com uma perturbação a mais. Pena que a cópia digital exibida (já legendada em português) seja de qualidade tão ruim, pois todos os matizes da fotografia de Denis Lenoir parecem se perder no excesso de brilho e nas cores, digamos assim, suspeitas que vemos na tela. Na sessão seguinte, vimos um Lee Kang-sheng mais desprendido (em relação a Tsai Ming-liang) e mais criativo do que a impressão que tive em O Desaparecido, seu primeiro longa (passou na Mostra de 2003). Help Me Eros tem algumas composições muito interessantes, por vezes sacações visuais realmente criativas e pregnantes (certos planos, no entanto, pareciam misturar reflexos de espelho ou televisões ligadas de forma despropositada, prejudicando a fruição da cena, mas, no geral a criatividade tinha um boa correlação na narrativa). Embora Lee demonstre em várias passagens que filma buscando um estilo próprio, alguns traços marcantes de Tsai podem ser verificados com facilidade (uso recorrente de plano fixo e longo, trama mínima, ambientação do filme em contra-espaços, lógica do desencontro entre os personagens, cenas musicais bem ao estilo Tsai). Incomoda-me em particular a cena em que Lee teria um encontro com a mulher com quem conversa no MSN, mas esse encontro, como era de se prever, não ocorre, se frustra. É exatamente o beco sem saída desse cinema sem confronto, sem campo-contracampo. Que o tête-à-tête não ocorresse era justo o que eu previa, mas gostaria de ver acontecer diferente. Falaremos mais nos textos.
(LCOJr)

 

 

 







Foto do dia (4/11):

Lost Lost Lost, de Jonas Mekas


Foto do dia (1/11):
Redacted, de Brian De Palma


Foto do dia (31/10):

Em Paris, de Christophe Honoré


Foto do dia II (30/10):
En la ciudad de Sylvia, de José Luis Guerín


Foto do dia I (30/10):

Sukiyaki Western Django, de Takashi Miike


Foto do dia (29/10):

Tabu, de F.W. Murnau


Foto do dia (28/10):

Senhores do Crime, de David Cronenberg


Foto do dia (26/10):
Caixas, de Jane Birkin


Foto do dia (24/10):
Le Voyage du ballon rouge, de Hou Hsiao-hsien


Foto do dia II (23/10):
Inland Empire, de David Lynch


Foto do dia I (23/10):

I'm Not There, de Todd Haynes


Foto do dia (22/10):
Planeta Terror, de Robert Rodriguez


Foto do dia (21/10):

Inútil, de Jia Zhang-Ke


Foto do dia (20/10):
Help Me Eros, de Lee Kang-sheng