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Quinta-feira, 4 de outubro de 2007
Jogo de Cena vem sendo anunciado há tempos
como uma “virada” na obra de Eduardo Coutinho, especialmente
em relação à reflexão que provocaria sobre seu trabalho
recente. Sem dúvida, o filme tematiza seu próprio dispositivo
e este é, em si mesmo, uma derivação do dispositivo
utilizado pelo cineasta anteriormente. A grande pergunta é:
de que forma a premissa, enunciativa por si só, transforma-se
em filme? E que nos traz este filme como acontecimento
na tela? Bom, a verdade é que, provocações reflexivas à parte,
as operações emocionais de Jogo de Cena são
uma extensão dos últimos filmes
do cineasta. Com a observação de que, aqui, ele fecha
seu escopo dramático e concentra as narrativas num
determinado paradigma, o freudiano. É impressionante
como a recorrência
absoluta de histórias sobre gravidez, sobre relação
pai-e-filha e sobre sonhos significantes tece um terreno
propício para Coutinho explorar as lágrimas, a comoção
e a abertura afetiva – seja dos seus personagens, seja
do público. Me questiono sobre a escolha de filmar
apenas mulheres; e, apesar deste desenvolvimento temático
me fornecer uma pista, ainda não tenho certeza se compreendo
a exata relação – ou mesmo a relação entre a dinâmica
depoimento-encenação de depoimento e esta proposição
narrativa. Há no filme, por certo, um determinado estado
de direito concedido às personagens que situam-se de
frente para o palco (como numa extensão da platéia)
e, ainda assim, em cima dele e diante da câmera-coutinho.
Este estado, ao mesmo tempo em que corresponde à conquista
de um direito de fala (o “processo de seleção” é explicitado
no filme), configura-se como um acesso privilegiado
a um confessionário-divã, onde nenhuma expressão pessoal
pode ser censurada (absolutamente significativos são
os planos das personagens acedendo ao palco por uma
escada escura à semelhança de um túnel). Quanto àquela
que seria a “questão central” do filme, a re-interpretação
dos depoimentos por atrizes, o que temos é menos um
questionamento efetivo (ou assunção verdadeira) da
dose de encenação dos depoimentos, do que um instigante
jogo com a estética do depoimento documental que, no
entanto, procura valorizar tudo o que ele tem de único
e espontâneo em contraposição ao artifício de uma atuação.
Neste sentido, Coutinho em nada muda sua premissa:
captar uma espécie de verdade que se daria numa performance
carregada de investimento pessoal e emotivo. São particularmente
belos os momentos em que as atrizes tornam-se personagens
de documentário elas mesmas, e são registradas falando
sobre sua experiência ali no momento da filmagem. Ao
entrarem na auto-avaliação, porém, identificando os
pontos ou não de contato com o depoimento original,
elas corroboram com a armação metalingüística do filme,
que de longe é o que ele tem de menos interessante.
Se entregue totalmente à autenticidade do artifício – como
nos instantes em que a presença física e a fala bastam
por si, nivelando a imagem-depoimento das atrizes com
a de qualquer depoente real – Jogo de Cena talvez
me fosse mais arrebatador. Lembro dos planos de Império
dos Sonhos, visto há alguns dias, em que Laura
Dern passa os diálogos do filme-dentro-do-filme e torna-se,
para a câmera de Lynch, ao mesmo tempo e indistintamente,
a personagem-atriz e a personagem do filme-dentro-do-filme,
fazendo o estatuto do registro encontrar o abismo de
si. Sim, trata-se de um projeto de cinema radicalmente
diferente, assim como de outra concepção de mundo,
mas me pergunto se não é reducionista o “jogo” que
Coutinho propõe também para o espectador: interrogar
as camadas (e a graça do filme é que elas são, na verdade,
muitas vezes simplesmente indefiníveis) de representação
e de autenticidade de cada manifestação, enxergar nas
atrizes conhecidas sua interpretação “mais humana” e
apreciá-las sempre em contraponto com as depoentes
em que se baseiam. Ou mesmo identificar as diferenças
como ponto positivo e sinal de sua capacidade de criar
e provocar com isso emoções da mesma monta – quiçá até maiores.
Me pergunto também qual será a recepção deste filme
no exterior, em que os rostos conhecidos para nós serão
desconhecidos e este aspecto significativo do filme
se perderá, para ser eventualmente substituído por
outra. Enfim, estes são apenas alguns questionamentos
iniciais sobre Jogo de Cena, resultados de uma
reação bastante imediata a ele. Certamente outros se
seguirão, assim como desdobramentos mais argumentativos
destes. O fato é que o último filme de Coutinho é um
trabalho bastante rico e instigante e que provoca ao
extremo o exercício crítico. (TM)
Quarta-feira, 3 de outubro de 2007
Nunca fui a Cannes, então não sei
o que acontece. Mas, visto daqui, em momentos existe
a impressão de uma lavagem cerebral em massa
que se instala e domina o ambiente, dando a certos filmes
uma dimensão que eles nunca teriam se não
estivessem na competição oficial da Croisette.
Não digo isso de prêmios porque aí
já é mais natural, ainda que um tanto
nulo, discutir o mérito à láurea
concedida. E não digo isso também dos
veículos oficiais, jornais etc., que adoram pagar
uma de maria-vai-com-as-outras. Digo mesmo das figuras
mais interessantes, inteligentes e independentes de
espírito que escrevem sobre cinema, aqui e acolá.
Porque, por mais que eu procure, não consigo
entender o porquê de ninguém ter feito
o debunking da excrescência que é
4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, filme romeno vencedor
da Palma de Ouro em Cannes. Mesmo os que não
gostaram muito do filme, ao menos no que eu li de cobertura
(que não foi exaustivo mas foi longe de ser pouco),
relevaram as operações mais gritantemente
alarmistas para inscrever o filme na "cena romena",
tentando ver mais um zeitgeist romeno do que
tentando apontar para a pura repetição
de fórmulas. Mas talvez isso tenha a ver com
uma necessidade de se defender Cannes, e por extensão
a excelência da seleção oficial,
como um ponto mais político que estético.
Isso ao menos da parte da crítica francesa. Não
sei. Só sei que fiquei impactado de, ao meio-dia
do antepenúltimo dia de festival, ver um filme
que ganhou o prêmio mais importante no cinema
de autor e ter o impacto, totalmente inesperado, de
ter visto um nada. O resto está na crítica,
já no ar. Em seguida, Smiley Face, de
Gregg Araki. E não é que não era
esperado, mas a gente sempre mantém a esperança,
né? Estrada para Lugar Nenhum é
péssimo, Splendor é pavoroso, mas
ele tinha feito o belo Mistérios da Carne,
não é? E filme bom a gente não
tem pra dar e vender, assim, molezinha molezinha, então
vamos conferir... e... sabe filme que em três
ou quatro planos a gente já sabe o que vai ser,
e que o tom, o ponto-de-vista da câmera, a maneira
de atuar, já revelam uma total falta de vigor
impossível de ser revertida? Pois é, isso
tudo pode ser visto em Smiley Face. Só sei que
antes mesmo dos créditos tentei me instalar para
dormir, coisa que, infelizmente, só consegui
lá pela metade do filme, depois que a maconheira
protagonista interpretada pela Anna Faris recebe em
mãos o manuscrito do Manifesto do Partido
Comunista e tem a idéia de vendê-lo
em leilão virtual para sanar todas suas dívidas.
Acordei feliz do tempo bem utilizado. Mais à
noite, Desejo e Reparação, de Joe
Wright. Não li o livro, que nossos cadetes Raphael
e Leo consideram uma obra-prima total. Tendo sido o
primeiro filme de Wright, confesso que me surpreendi
pela beleza de construção de certos planos,
certamente ostentatórios, mas de alguma forma
construindo um tom geral pela música e pela montagem
precisa que me deixaram bastante impressionado. Mas
a primeira parte acaba, inicia-se uma segunda que narrativamente
mete os pés pelas mãos, e a direção
– ainda que mantenha um virtuosismo entre curioso e
masturbatório (na cena da chegada dos soldados
à praia há um plano seqüência
tour de force que, apesar de feito pra enfeitar,
me cativou) – fica incapaz de dar uma homogeneidade
ao todo, despedaçando o filme em estrutura narrativa,
temporal, visual e, pior de tudo, qualitativa. Há
em Joe Wright, no entanto, um sentido de construção
da cena, de ritmo interno de seqüência e
plano que não são tão comuns no
cinema. Em se tratando de alguém que está
em seu segundo longa, é uma carreira a acompanhar
e saber se ele superou esse complexo de esteta genial
que afeta tanta gente que tem uma visão ambiciosa
de cinema. Esperamos futuro melhor a ele do que o de
Darren Aronofsky, pelo menos. Esperemos por seu próximo
filme (anotação mental para ver Orgulho
e Preconceito). Armênia, de Robert
Guédiguian, é uma viagem sem espaço
para se perder. E, como em toda viagem, quem passa apenas
pelos lugares já demarcados não consegue
criar nenhum gosto autêntico pela coisa. Guédiguian
já teve a época em que se movimentava
por um universo restrito de temas, lugares e atores
(bom, aqui os atores continuam), mas como sabia fazer
aquilo tudo muito bem, seus filmes – especialmente À
Vida... À Morte, Marius e Jeanette e
A Cidade Está Tranqüila – eram certeiros
no encanto, no calor e na exuberância de mundo
criado. Em Armênia, a mecânica do roteiro
é simplória e evidente, os caminhos são
todos previsíveis e a função é
meramente didática. Talvez ele tenha retirado
sua inspiração de Um Filme Falado,
mas tudo que Manoel de Oliveira consegue retirar de
filosófico, histórico e artístico
para além da literalidade didática que
exibe, falta no filme de Guédiguian. Triste de
ver. O curioso do dia é que o filme considerado
complemento – com o inexplicável título
de Jia Zhang Vai para Casa (alguém achou
que "Jia Zhang" é algo como "Marco Aurélio"
ou "Maria de Fátima"?) – foi o melhor do dia.
Ainda que modesto no fôlego e no escopo, o documentário
de Damien Ounouri é um generoso retrato do cinema
de Jia, de sua ligação com o espaço
de onde veio (a cidade de Fenyang na província
de Shanxi), do trabalho com o grupo envolvido na feitura
de seus filmes – atores, fotógrafo, montador,
produtor –, da forma independente de se fazer cinema
na China (onde existe censura oficial antes e depois
da filmagem) e permite acima de tudo mostrar o quão
autoconsciente Jia Zhang Ke é de suas escolhas
e como elas dizem respeito diretamente ao devir histórico
da China nos últimos 40 anos, totalmente pensado,
nada intuitivo. Além de ser genial ver alguém
com cara de moleque, blusa azul marinho da Adidas, andando
como jovem, ser um dos realizadores contemporâneos
mais importantes do mundo. Ao contrário do que
uns e outros professam de forma displicente, o cinema
de autor se renova progressivamente, e é fantástico
ver diretores com uma punhada de obras-primas – como
Jia ou Apichatpong Weerasethakul – feitas antes de completar
40 anos. (RG)
Terça-feira, 2 de outubro de 2007
Festival chegando ao fim, o cansaço já
se instala, uma visão de conjunto começa
a se apresentar, mas se ainda é prematuro fazer
o balanço artístico de tudo que foi visto,
é possível todavia fazer um balanço
da organização, e o saldo, mesmo para
nós que adoramos reclamar, é bastante
positivo. Pouquíssimos atrasos, exceto os já
constantes, insuportáveis, inexplicáveis,
da Première Brasil. É até mesmo
como se o Festival tivesse orgulho em exibir essa característica
tão carioca do atraso protocolar. Mas, como na
sala de aula, até 15 minutos é charme...
Já depois... Mas, afora os atrasos das sessões
de gala, o festival transcorreu sem muitas exaltações,
sem cancelamentos de última hora, e se houve
confusão nas entradas com passaportes e credenciais
em algumas sessões lotadas, foi mais por um desejo
de resolver tudo da melhor maneira do que qualquer outra
coisa. O importante dessa vez é que se atendeu
a padrões mais claros. Do lado das credenciais
e passaportes, a única reclamação
séria foi a proibição, de uma hora
para outra, da retirada de ingressos para o mesmo dia,
o que é absurdo, já que ingressos não
podem ser retirados diretamente nas bilheterias. Acaba
que, se alguém tem uma agenda complicada, terá
que arriscar a sorte no dia anterior se quiser garantir
seus ingressos, ou ficar esperando a não-lotação
da sala para entrar. Chega até a ser ridículo
que um credenciado ou alguém que comprou passaporte
não possa retirar ingressos para o mesmo dia,
e, pelo menos à distância, não parece
algo terrivelmente difícil de ser implementado.
Mas saindo do logístico e voltando aos filmes,
ontem foi a chance para revisão de Paranoid
Park, que, diz-se, só quem viu no Festival
do Rio vai ter visto em película, uma vez que
o filme deve ser exibido comercialmente numa cópia
digital (o problema nem é o digital em si – Eduardo
Valente nos contou que o filme passou assim em Cannes
– mas que o digital utilizado nas salas do circuito
exibidor é esse horror chamado Rain, uma exibição
digital de baixíssima qualidade e fidelidade).
Em 35mm, o filme continua divino. Sobre Floresta
dos Lamentos, filme do qual gostei mas não
entrei na onda de efusividade que meus colegas tiveram,
li e concordei com esse pedaço de texto escrito
por Stéphane Delorme nos Cahiers du Cinéma
627, edição julho-agosto última:
"Depois da cena de chuva, a dupla de desgarrados pára
diversas vezes, diante de uma tumba, diante de uma Grande
Árvore, diante do céu, enfim, estases
mudas em que a transcendência vem esmagar o pequeno
homem. O que aconteceu? Kawase começou por provocar
o sublime, por suscitá-lo (a chuva, magnífica),
mas termina por representá-lo, através
de lugares-comuns da iconografia religiosa. Quando o
espiritual se avança não-mascarado, a
tentação é grande de colocar a
inspiração a meio pau. Passando da estética
ao religioso, a arte se rende à propaganda."
("Halte au sublime", pp. 78-9) Confesso que tive sensações
semelhantes, acima de tudo com o final da Grande Árvore
referida e sobretudo com a cena final, que dá
direito até a uma caixinha de música como
prova de fofura em demasia. Que Kawase é uma
grande diretora me parece indiscutível, mas em
Floresta dos Lamentos também me parece
que o imersivo atinge seu ponto morto, sua maneira límpida
e sublime de não mais precisar encontrar uma
forma cinematográfica, porque ela já existe
toda feita de antemão (o que, aliás, também
pode-se dizer do filme de Reygadas, que, no entanto,
trabalha sempre com uma matéria-prima que, de
filme a filme, exige soluções formais
diferentes). Além de Paranoid Park, só
vi outro filme, mas que filme: I'm Not There,
de Todd Haynes. Inteiramente absurdado pelas imagens,
pela montagem e, ainda que o filme tenha me perdido
em alguns momentos porque eu não sabia direito
o que fazer de certas situações, não
consigo parar de pensar nele, no fôlego que ele
tem para tratar as "muitas vidas" de Bob Dylan, aproveitando
a realidade em seu lado iluminado e seu lado negro,
fazendo de Dylan o eterno outro da sociedade, negro,
mulher, menestrel, vagabundo, fora-da-lei, resistente,
like a rolling stone, sem criar os limos da estabilidade,
deslizando sobre todas as cristalizações
de comportamento, sociedade, etc. Dylan é o não-reconciliado
do sistema, aquele que luta para que não coloquem
palavras em sua boca, que não seja usado como
símbolo de qualquer coisa, tenha seguidores,
etc. Em velocidade absoluta de personagem e andamento
(que decresce uma meia-hora antes do final, mas é
só um detalhe), I'm Not There é
uma experiência de liberdade no que ela tem de
mais apaixonante e ao mesmo tempo de auto-destrutivo
(o necessário correlato). Não é
um filme sobre rock, é um filme rock. Todd Haynes,
entre punk e arte conceitual, mais uma vez se reafirma
– para quem ainda não teve o cuidado de enxergar
– como um dos maiores realizadores contemporâneos.
Que orgulho de, mesmo no escuro, ter escolhido a foto
de capa da edição! (RG)
Segunda-feira, 1 de outubro de 2007
Festival tem dessas coisas. No mesmo dia que escrevemos
texto sobre Inland Empire, David Lynch falando
de fragmentação, abstração, poder da emoção na ausência
do sentido narrativo, assistimos à versão restaurada
de A Idade da Terra, de Glauber Rocha. E aí surge
aquele efeito mencionado no editorial desse mês, da
distância histórica que afasta e da exibição simultânea
no festival que aproxima coisas heterogêneas de formas
ainda não aproximadas. São idéias que surgem, mais do
que por efeito de curadoria (ainda que esta possa provocá-las),
por fruto do simples acaso produzido pelo deambular
de sala em sala e deixar a mente flutuar de um filme
a outro, ocasionando por vezes curto-circuitos criativos.
Em A Idade da Terra e em Inland Empire,
nada a aproximar em contexto, preocupação conteudística,
efeitos expressivos, a não ser, claro, o mais importante,
a confiança na imagem para criar um mundo aberrante
e excessivo, em que o sentimento de ameaça e mal-estar,
sem ter um objeto específico, incide de forma difusa
sobre o espectador, sufocando-o aos poucos. Em ambos
os filmes, duração monumental que cria um portentoso
manifesto de um radical cinema de instalação. Visto
mais cedo, Uma Velha Amante, de Catherine Breillat,
não me emocionou especialmente. A fluidez e o encantamento
das relações e dos desejos dos personagens dos melhores
filmes de Breillat (e isso pra mim significa acima de
tudo Uma Adolescente de Verdade, mas também Sexo
É uma Comédia e Anatomia do Inferno) traduz-se
muito mal para outra época e outros costumes, e o falar-se
de costumes (Michael Lonsdale, sempre ótimo) acaba saindo
melhor do que o mostrar-se.
Soterrada pelos cenários e figurinos de época, Breillat
não conseguiu construir o despojamento de corpos que
dá singularidade a seu melhor trabalho. Ainda sobra
um tempinho para falar de uma das maiores perturbações
do Festival do Rio, Paranoid Park de Gus Van
Sant, visto no sábado. O princípio talvez seja o mesmo
de Elefante – evocar o cinema de gênero para
não entregar a recompensa, olhar para seus personagens
como anjos caídos, vai-e-vens de cronologia, retrato
de juventude construído à revelia da intriga principal,
etc. –, mas os procedimentos são inteiramente diferentes,
reservando à câmera lenta e ao foco um papel que é de
deixar estupefato, construindo um universo de delicadeza
e fechamento sobre si, mas ao mesmo tempo fazendo ele
ruir a partir de um dado de realidade (a avassaladora
segundidade peirciana que ataca ali onde não se espera)
que obriga a contemplar um outro mundo, o mundo que
existe fora do universo protegido da casa, da escola,
da lanchonete, como diz Alex a sua colega excessivamente
curiosa. Curioso esquema esse que preenche Elefante
e Paranoid Park – e, em certa medida, também
Last Days
–, esse sentimento de uma juventude inteiramente destituída
de vínculo forte com a idéia de sociedade (não à toa
Paranoid Park coloca diálogos como esses jovens
recebem as notícias da guerra no Iraque), que, pela
relação com a morte, adquire um outro estatuto, incodificável:
em Elefante a idéia de que aquilo é tão inimaginável
que não pode estar acontecendo, em Paranoid Park
a extrema casualidade do acidente que faz com que tudo
não passe de um detalhe preciosista do destino. Um detalhe
que, no entanto, não consegue ser esquecido. Uma inocência
de interioridade absoluta que não é mais possível. Esse
desnível operado entre uma vida fechada sobre si (respaldada
pela câmera lenta e pelo foco) e essa realidade assassina,
implacável, impossível, que não pode aparecer como nada
além de um detalhe, faz a fruição de Paranoid Park
adquirir uma dureza bressoniana, tão bela
quanto o contraste entre a beleza desses adolescentes
angelicais e o horror intolerável da morte que teima
em pairar sobre esse mundo, obrigando o crescimento.
(RG)
Segunda-feira, 1 de outubro de 2007
Saí do cinema “de cena” de Uma Velha Amante
para entrar na encenação-experiência de O Homem Provisório,
da Casa Laboratório para as Artes do Teatro. Os figurinos,
os apetrechos colados aos personagens, as cabeças cortadas
que eles levavam pra cá e pra lá, tudo o que se podia
ver (e por vezes mesmo sentir o cheiro) em movimento
agressivo e incessante, convergiam para contar a história
de Teobaldo, o célebre personagem de Guimarães Rosa.
A fisicalidade da peça elimina qualquer idéia de organização
de elementos num palco e de estudo de falas e posturas.
As “imagens” criadas são praticamente todas provisórias
ao extremo, concorrentes e instáveis. Os personagens
gritam, correm, chocam-se uns aos outros e contra o
chão. Os sons e a violência dos corpos são muitas vezes
aterradores. Entre uma e outra camada do sertão de cortinas
de pano com a vegetação nela impressa, jogos de luz
e sombra criam as virtualidades de tudo aquilo que assola
Teobaldo – e que se materializa brutalmente em seguida.
O espetáculo provoca a imersão pela intensidade e pela
habilidade em desdobrar mundos e cenas a partir de ações
que se dão num vazio aparente. Curioso contraponto a
Cochochi, de Laura Amélia Guzmán e Isabel Cárdenas,
visto logo em seguida. No filme de equipe mínima e atores
que interpretam a si mesmos, a paisagem mexicana está
lá o tempo todo. Rochedos, cachoeiras, florestas, pastos.
Os personagens, imersos nesta natureza, só sabem funcionar
a partir dela – e a câmera reforça a todo instante este
pertencimento. Mas, apesar disto – e da imagem capturar
os meninos protagonistas sempre de muito perto, acompanhando
seus movimentos, avançando junto a eles pelo espaço
– impõe-se uma certa frieza nas situações. Os acontecimentos
são esvaziados de intensidade para terem sua dramaticidade
sublinhada em tempos alongados e de não-ação. Neste
processo, boa parte da emoção da narrativa dos dois
irmãos que perdem o cavalo do avô se dissipa e quase
sempre ficamos apenas com as imagens o exercício cinematográfico,
este sim de bastante interesse. (TM)
Sábado, 29 de setembro de 2007
O que esperar de Gus Van Sant após Elefante?
Esta era uma pergunta que traduzia uma interrogação
absoluta e escondia uma expectativa altamente positiva,
mas envolta com o receio da decepção.
E eis que ele realiza Last Days. O questionamento
se repete, desta vez com força ainda maior. Mas
à medida que Paranoid Park se desenrola
na tela, todas as perguntas, expectativas e apreensões
se dissipam. Somos atirados no tempo particular do filme,
com sua narrativa "lânguida". E qual
não é a surpresa ao percebermos que esta
distensão temporal responde a uma dilatação
e repetição labiríntica dos acontecimentos...
O trabalho (ou seria a pesquisa?) de Van Sant com o
tempo-espaço, da qual Gerry é o
emblemático início, parece não
ter limites. A experiência do cinema em relação
ao mundo fraturou-se irremediavelmente. Ali, naquele
encontro fatídico com o deserto, onde a câmera
permitiu que os personagens perdessem a orientação
espacial a ponto de enlouquecerem, seu cinema "descobre"
que há fatos do mundo que a organização
de uma narrativa mais "clássica" simplesmente
não pode abarcar. É como se diante de
cada acontecimento extremo – precisamente aqueles que
colocam em risco a vida – precisássemos reinventar
o universo. Voltar e pensar tudo de novo. Em Paranoid
Park, o que era pulverização de pontos
de vista em Elefante e impossibilidade de ordenar
a vivência em Last Days, torna-se as idas
e vindas de uma consciência assolada por uma culpa
paranóica. O trauma no curso das coisas precisa
ser expurgado. E, para Alex, o esforço mental
não basta, pois a imagem da tragédia é
pregnante – e definitivamente após a fotografia
mostrada pelo oficial de polícia – e contamina
todas as outras imagens de sua vida cotidiana: a câmera
lenta espraia-se pelo filme, fixa olhares e prolonga
hesitações, receios, impossibilidades
de movimento. A escrita trará então para
o garoto uma espécie de catarse. Mas Alex não
tem grande desenvoltura com a expressão através
das palavras no papel, como ele mesmo diz; sua escrita
irá, pois, se dar de forma não-linear,
seguindo o curso do pensamento, avançando e voltando
de acordo com os caprichos da memória. O filme,
que nasce colado ao personagem, torna-se seu fluxo mais
interno – não mais o puro movimento de corpos
de Elefante, não mais o indevassável
de uma vivência particular demais de Last Days.
A impressionante expansão do cinema de Gus Van
Sant é pra mim motivo de maravilhamento absoluto
e inegável assombro. (TM)
Sexta-feira, 28 de setembro de 2007
Fim de primeira semana, começo de segunda
semana de festival. Saldo até agora sensacional,
e ainda que o meio de percurso não seja o melhor
caminho para um diagnóstico, ele cria a oportunidade
para um primeiro olhar. Ainda mais porque os destaques
se separam, ou costumam se separar entre primeira e
segunda semana. Primeira: Oliveira 1, Hong Sang-Soo,
Naomi Kawase, Carlos Reygadas (restabelecido como um
dos decisivos), Claude Chabrol, Todd Haynes, Apichatpong
Weerasethakul, o combo O Estado do Mundo. Segunda:
Gus Van Sant, Oliveira 2, Jacques Rivette, David Lynch,
Abel Ferrara, o bem faladíssimo Lady Chatterley
de Pascale Ferran, o romeno vencedor de Cannes (e, ao
menos para mim, ver os que não consegui na primeira
semana: I'm Not There e Floresta dos Lamentos,
tidos como obras-primas pela maioria da revista que
viu). Até agora, parcial da contabilidade, o
cinema de imersão sensorial/conceitual, que vinha
carregando uma dianteira folgada nos últimos
anos (Mal dos Trópicos, Elefante,
Last Days, O Intruso, Juventude em
Marcha, Café Lumière, Síndromes
e um Século), passa a reconviver normalmente
com um cinema de dispositivo ou de operações
lógicas sobre a narrativa (Haynes, esperamos
que Lynch) ou mesmo com o triunfo da confiança
de ainda extrair de uma estrutura narrativa "comum"
um interesse singular (Mulher na Praia de Hong
Sang-Soo, ainda que a estrutura de espelhamento ofereça
ao menos um olhar já mais auto-consciente em
relação à narração).
Muito por questão de panorama, mesmo, acho que
vale a pena voltar ao filme de Hong Sang-Soo, porque,
excetuando Almodóvar, nenhum dos grandes contemporâneos
parece evoluir sua estética no sentido de uma
elaboração de história. Num momento
de crise da ficção – mesmo cineastas badalados
no circuito cult mais convencional, como os Dardenne,
carregam seu filme no realismo da instabilidade da câmera
e no realismo de tiques de seus atores, pois a história
por si mesmo vem sendo cada vez mais banal –, vale a
pena chamar atenção para o terreno do
íntimo que Hong evoca filme a filme, pois, se
na escala natural de nossas vidas parece já haver
um esgotamento da surpresa no contar-se das histórias,
o microscópio de Hong Sang-Soo reinventa um novo
terreno para futuros ficcionadores que esperam fazer
algo no futuro além de chover no molhado: filmar
o sexo, o caminhar, o beber, apegar-se ao cotidiano
e ao desejo na relação homem-mulher (no
caso de Hong, já que nenhum de seus casais até
hoje foi homossexual), pela minúcia de construção,
ainda pode provocar grandes perturbações
no terreno hoje relativamente estável que é
o cinema que se carrega pela narração,
ou, para usar o termo (mais preciso) dos anglófonos,
pelo storytelling. (RG)
Quinta-feira, 27 de setembro de 2007
Chato o dia de festival em que só se vê,
passando de uma sala à outra, filmes entre morno
e interessante. Ontem, quarta-feira, foi assim, bem
oposto a uma terça-feira mágica, com direito
a uma sessão de Mulher na Praia com a
platéia totalmente ganha e vibrando com o filme.
A quarta garantia algumas expectativas fortes. Primeiro,
Antiga Alegria, filme que vinha sendo respaldado
dos dois lados do Atlântico. O filme tem lá
seus encantos na maneira como trabalha a relação
entre os personagens, um pouco entre o desconforto e
uma certa simpatia desafetada. Mas, como é freqüentemente
o caso nos filmes independentes americanos, existe sempre
uma espécie de mesquinharia autopiedosa, aqui
em modo melancólico, mas sempre centrada na idéia
do ego, na dimensão das proporções
de vivência mais à mão. E o filme
só deixa tudo mais complicado quando leva seus
personagens à selva, sem entretanto jamais abandonar
seus amparos antropomórficos em nome da desrazão
da selva. Resultado: ao contrário de Apichatpong
Weerasethakul ou Claire Denis (e, me contam Júnior
e Tati, também o novo filme da Naomi Kawase),
a floresta em Antiga Alegria não tem real
força, a câmera sendo incapaz de atingir
um grau de fabulação em relação
àquilo que exibe, sem nenhum poder de instalação.
Para usar uma problemática que está na
minha cabeça há uns bons meses, a diferença
entre o narrar e o mostrar, o filme parece o tempo inteiro
chamar atenção para a necessidade da mostração,
de criar momentos de indeterminação, mas
jamais abandona seus próprios amparos narrativos,
direcionando o olhar o tempo inteiro e jamais dando
um limiar de liberdade ao espectador para experimentar.
É uma pena, pois vendo o filme pensamos muito
em Gerry do Gus Van Sant ou em Blissfully
Yours de Apichatpoing Weerasethakul. E, naturalmente,
Antiga Alegria não suporta a comparação,
pois o tempo nele jamais chega a ser qualitativo. Em
seguida, Techiné novo, As Testemunhas, sobre
o aparecimento da AIDS ali entre 1984 e 1985. O filme
vai bem na primeira parte, em que se atém aos
dramas de seus personagens, o default de Techiné,
nenhum brilho especial. Mas na segunda metade, ao tentar
inscrever os dados históricos da recepção
da doença por parte de especialistas e da sociedade,
e ainda assim tentar manter os dramas pessoas dos personagens
que vinha construindo, o filme mete os pés pelas
mãos e no final deixa um objeto visual bem aquém
do que se espera desse realizador que, se não
tem geralmente vôos tão altos, ao menos
costuma nos entregar obras precisas e vigorosas. Em
seguida, Andarilho de Cao Guimarães. Reproduzo
o que postei na comunidade orkutiana de nossos opostos
complementares, os cinéticos: "quanto a Andarilho,
admiro aquilo tudo, porém bastante friamente,
sem um real engajamento, sem encontrar um nexo que junte
ritmicamente as duas principais operações
do filme (performance dos andarilhos/planos para estabelecer
o ritmo da vida de estrada), achando aquela beleza toda
meio fetichista e pouco orgânica. Mas de fato
alguns planos, em especial o último, são
arrebatadores. Mas nada tão perfeito, orgânico,
preciso quanto man.road.river (que acho que passou
pela cabeça de todo mundo que conhece esse filme
ao ver Andarilho)". O cinema do Cao Guimarães
em geral me deixa assim, e confesso que ainda não
tenho um julgamento final sobre seus filmes – que bom!
– mas definitivamente o gut feeling em relação
à obra inexiste. Mas tanto os filmes e a carreira
são muito instigantes. Em seguida, Estômago,
primeiro longa-metragem de Marcus Jorge. Novamente da
comunidade da Revista Cinética: "Apesar do filme
não ser, confesso que discutir Estômago
é um treco meio apaixonante. O filme tem
uma entrega comercialona cativante, porque de fato faz
tudo para oferecer ao espectador um espetáculo
nos moldes meio popular-cult que ele está acostumado,
e nisso funciona bem em vários momentos. Em especial
o trabalho da música e o joão miguel,
realmente soberbo. Estruturalmente, no entanto, é
uma bagunça só. A sanfoninha presente-passado
funciona mais ou menos só até a metade
do filme, e quando vai chegando no clímax o ridículo-charmoso
vira ridículo-constrangedor, pela previsibilidade
e pelas péssimas soluções visuais
e narrativas encontradas (não entro em detalhes
pra não entregar o final)". Fiz mais um comentário
no que diz respeito à condição
do personagem final, jeca que paga de serviçal
mas ao fim tece suas vinganças sangrentas. Quem
quiser pode fazer as especulações ideológicas
que quiser, mas acho que o filme não atribui
a isso nada além de uma solução
narrativa charmosa e "surpreendente". O interessante
do filme é a relativa fluidez e o caráter
um tanto evasivo (ou seja, é um filme totalmente
autoconsciente de ser uma bobagem), que talvez até
garantam uma boa performance de bilheteria. Mas, em
se tratando de comédia, tem um número
bem alto de situações frustradas e/ou
fáceis para que se eleve como algo acima do status
de curiosidade. Resta que o dia acaba e continuamos
pensando nas maravilhas do cinema de Hong Sang-Soo,
então a fotinho do dia vai ser dedicada a ele,
com o final delicioso, libertador, de Mulher na Praia...
(RG)
Quarta-feira, 26 de setembro de 2007
Muitos filmes por dia, cotações, debates, argumentações.
Não, não se trata da vivência de um festival de cinema,
mas de uma experiência pré-festival. As atividades finais
do comitê de seleção internacional do Festival Internacional
de Curtas do Rio de Janeiro, o Curta Cinema, do qual
fiz parte, me consumiram os primeiros três dias de Festival
do Rio. Como consolo, além de um amplo panorama do que
está sendo realizado em audiovisual no mundo, a antevisão
de que teremos uma bela amostra de curtas-metragens
estrangeiros durante o festival, que ocorrerá de 25
de outubro a 4 de novembro. A lista final encontra-se
aqui.
Passado este período de intensa garimpagem e descobertas,
mergulho finalmente no Festival do Rio e me deparo com
Homens na Terra, de Ariane Michel. A aposta pessoal
no filme, advinda da pesquisa no site
dedicado a ele, se confirma na projeção. Obra de estranheza
extrema dentro de um festival de cinema, com seu tempo
contemplativo ao limite e sua narrativa quase impenetrável,
Homens na Terra me instiga profundamente e me
faz querer conhecer outras obras de Michel. Artista
plástica e vídeo-artista, a diretora confirma, em entrevista
sobre o filme, o que se vê na tela: um verdadeiro estudo
sobre a construção do olhar, interessado
sobretudo na opacidade da vida animal. Mais no texto
que escreverei sobre o filme. Em termos de apostas coletivas,
ontem foi o dia de estar face-a-face com o aguardado
I’m Not There, de Todd Haynes, em cabine de imprensa.
Na tela, a obra atinge a expectativa e a ultrapassa,
como em todo grande filme. I’m Not There é o
monumento que esperávamos e é mais: é fluxo de imagens
e sons impossíveis de serem previstos. Arrebatamento
dos sentidos, profusão de emoções. O filme de Todd Haynes
é uma obra em auto-ebulição, uma avalanche e um quebra-cabeça
cinematográfico, que provoca a um só tempo maravilhamento
e dificuldade crítica. Na saída do cinema, a sensação
de ter vivido mais do que o possível em duas horas (sensação,
aliás, partilhada pela experiência efusiva do filme
de Naomi Kawase, Floresta dos Lamentos) e a certeza
de que ainda falaremos muito sobre ele. (TM)
Quarta-feira, 26 de setembro de 2007
Filmes em episódios feitos por vários
diretores de vários países... eles estão
na moda no circuito internacional de festivais, eles
são a condensação do "world
cinema". O principal representante do fenômeno
em 2007 é O Estado do Mundo, ao qual assisti
ontem. O filme tem um aspecto interessante de se assemelhar,
na era das câmeras digitais portáteis,
ao desejo de Lumière de espalhar seus cinegrafistas
pelos quatro cantos do planeta e compor registros sobre
as coisas mais variadas, desde monumentos históricos
até passagens de transeuntes, uma enciclopédia
do mundo em movimento. Os episódios bons vêm
de quem já prevíamos. Vicente Ferraz pagou
mico internacional. O tal do Ayisha Abraham? Fez um
diário com ares miserabilistas e enfadonhos.
Wang Bing? Conceitualmente interessante, mas um filme
fácil no fundo, um teatrinho brechtiano que amontoa
num mesmo espaço a China contemporânea
e seu passado maoísta. Fórmula simplista
demais para um diretor de quem eu esperava tanto...
Mas restam lá algumas imagens fortes, de textura
e luz bastante expressivas em meio à assustadora
paisagem industrial. Apichatpong? Um belo filme ritualista
e vitalista, uma correnteza ora serena, ora turbulenta.
Pedro Costa? Jogou em casa e fez um filme bem forte,
com a mesma identidade estética de Juventude
em Marcha, ambientado naquela terra imaginária
esquisita, idílica e poética, como um
universo pictural que precisamos prolongar mentalmente
a partir do quadro exuberante que o artista nos oferece.
E tem a Chantal Akerman... esta proporcionou a grande
experiência do filme. Ela captou alguns momentos
do anoitecer em Xangai, lugar de arranha-céus
e saturação de signos visuais e sonoros.
As poucas pessoas que aparecem no filme são efemeridades,
às vezes são somente vultos fugidios em
contra-luz. No fim, sobram apenas as imagens, elas são
as únicas coisas com poder de permanência
nesse lugar. De tão onipresentes, essas imagens
nem recebem mais o olhar das pessoas (é o contrário
que ameaça acontecer). Um mundo de anônimos
vigiado por imagens, e por fim um mundo só de
imagens e sons. Tem a música no fundo, hits pop
em idiomas diversos. No longuíssimo plano final,
Akerman traça um arco de Lumière à
vídeo-instalação, à imagem-ambiência,
passando, claro, por Andy Warhol. (LCOJr)
Terça-feira, 25 de setembro de 2007
Já dá para dizer que temos um bom
Festival do Rio. Em quatro dias, revi pela segunda vez
um belo filme (O Sol) e pela quarta vez uma obra-prima
de outro mundo (Síndromes e um Século);
tivemos um Christopher Guest bacana, o bonito De
Volta à Normandia de Nicolas Philibert, Chabrol
sensacional em Uma Mulher Dividida em Dois...
E ontem, com Floresta dos Lamentos, Naomi Kawase
ofereceu uma rara experiência estético-existencial,
novamente tendo a vida e a morte como forças
motrizes em seu cinema e complementares na vida (meu
texto sobre o filme já está no ar). Nenhum
festival que tem Floresta dos Lamentos pode passar
em branco, isso eu garanto. Como aliás já
havia sido marcante a exibição de Shara
em 2003, também de Kawase. Este novo filme
é ainda mais intenso, por incrível que
pareça (aos que não viram, passa de novo
no sábado). Mas como festival não é
feito só de filme bom, às 23:45 lá
fui eu pra uma dessas furadas inofensivas tão
características dessa época do ano devotada
ao cinema. O filme se chama A Felicidade dos Sakai,
dirigo por Mipa Oh (isso mesmo). Se na primeira meia-hora
parecia aquele típico filminho todo-errado-porém-simpático,
depois o todo errado predomina sobre o resto. Não
vou negar que o filme até possui sua fração
de simpatia... Mas quando deixa de ser uma comédia
familiar filtrada pelo olhar de um adolescente tímido
e passa a ser um drama sem pé nem cabeça,
fica difícil acompanhar a onda do filme. Os micro
encantos que poderiam existir acabam se esvaziando,
ao passo que nosso saco se enche. Destaque para a menininha
da família Sakai, um respiro de vida e graça.
(LCOJr)
Segunda-feira, 24 de setembro de 2007
Domingo foi um desses costumeiros dias em festivais
que se vai programado, certinho, e outras circunstâncias
obrigam a refazer a programação. A de
ontem foi o atraso para o primeiro Chabrol, o que me
forçou a recolocá-lo na sessão
da noite e, assim, deixar para uma outra oportunidade
a visita ao Estação Ipanema para ver o
filme dirigido pela Sandrine Bonnaire (e o japonês
que vinha em seqüência como brinde). O brinde
da meia-noite acabou sendo coreano, um filme boboquinha
bem intencionado sobre o qual escreve-se uma pílula
e está bem. O centro do dia, como não
poderia deixar de ser, foi Síndromes e um
Século, filme que se transformou numa espécie
de ritual pra mim. Visto em enormes condições
de cansaço na Mostra de São Paulo, depois
revisto em vídeo, visto novamente em cabine de
imprensa e enfim revisto pela última vez em película
até sabe-se lá quando, o filme de Apichatpong
Weerasethakul é desses que têm com o não-saber
uma relação fundamental. O não-saber
em pelo menos dois estados: a) sai-se muito burro da
primeira visão do filme, pela estrutura, pela
construção, pela incerteza quanto a como
atribuir significado a tal ou tal cena ou seqüência;
por vezes, mesmo, dificuldade em compreender o que o
diretor quer com isso; b) não-saber próprio
do diretor, que faz questão, como diz Manoel
de Oliveira, de criar "uma saturação de
signos magníficos que se banham na luz de sua
ausência de explicação". A base
do trabalho cinematográfico de Apichatpong Weerasethakul
situa-se radicalmente entre o narrar e o mostrar. Mas
para ele isso não é um dilema nem se desenvolve
elegendo um em detrimento do outro. Ele faz um pouco
como David Lynch em filmes como Estrada Perdida ou
Mulholland Drive: ele cria uma estrutura de base,
tenuemente narrativa, suficientemente esburacada, para
inscrever aquilo que ele quer, a vida que passa, o tempo
que transcorre e a ocupação desse tempo
por parte das pessoas. Há um prazer renoiriano
(Jean e Pierre-Auguste) em observar a pujança
da vida tal qual Weerasethakul nos mostra, são
imagens que exercem um função afetiva,
um deslumbre diante das diversidades não-sintetizáveis
ou dialetizáveis do mundo. Brincando, falei pro
co-editor Júnior: a única sinopse possível
para esse filme é a frase aristotélica
"O ser se dá de diferentes maneiras". Mas, ao
invés apenas de uma coleção de
momentos deleitáveis, esse jovem mestre tailandês
reparte seu filme em dois (apesar de cada parte também
ser divisível em partes menores, o que não
se dava em Mal dos Trópicos de forma tão
determinante) e aproveita a operação para
criar diversas analogias: visuais (eclipse/cano que
suga fumaça), de situação (orquídea
selvagem/ovni de brinquedo fazendo os personagens olharem
muito para cima), de tema (mulher curando uma perna
menor com outra com areia ou prótese). Mas ele
se furta a ser discursivo ou comparativo quanto a isso:
dividir o filme entre um hospital no campo e um hospital
na cidade não é prerrogativa para ser
taxativo quanto à tecnologia ou à sabedoria
tradicional. O filme exibe as duas, freqüentemente
imbricadas uma na outra, mas não se alonga sobre
o tema, ou não faz questão de colocar
isso como ênfase especial do filme (apesar de
ser o que o título sugere com mais força:
síndromes e como a distância dos séculos
responde a elas). Para Apichatpong Weerasethakul, existe
um prazer enorme em fazer o filme sair daquilo que a
gente chama de diegético (aquilo que diz respeito
à consistência da ficção
sendo apresentada, o "mundo" em que habitam os personagens
do filme) e simplesmente fazer planos que flagram simplesmente
as pessoas em momento de recreação. Isso
se dá com mais força lá para o
fim de cada uma das duas partes, a primeira aproveitando
a música de um show numa tenda, inicialmente
cortando para espaços que se supõem contíguos
à música sendo executada, e em seguida
cortando para qualquer espaço, até chegar
novamente ao hospital. A segunda utiliza a musiquinha
da ginástica em praça pública (que
também era o final da primeira parte de Mal
dos Trópicos) para obter efeitos semelhantes.
A pergunta principal de Joe Weerasethakul em Síndromes
e um Século é: como fabular o universo,
espaço e habitantes, de dois hospitais? As muitas
histórias sendo contadas, merecendo ou não
flashbacks, chamam atenção para como o
relato é decisivo no cinema desse realizador.
Ele varia os registros, pergunta-se o tempo inteiro
sobre a necessidade das ficções em todos
seus registros: mito, fábula, relato confessional,
história vivida, caso inventado, ou simplesmente
ausência de história, o simples mostrar-se
da imagem acontecendo à revelia de qualquer discurso.
E isso faz de Apichatpong Weerasethakul um cineasta
único e fundamental no cinema que se produz hoje.
Por isso a profusão de estrelas no quadro da
revista e essa disposição, considerada
loucura por muitos, de revê-lo quantas vezes for
possível num festival. Fazer o quê? O filme
compensa... (RG)
Domingo, 23 de setembro de 2007
Depois de um dia magro em número de filmes
na sexta-feira (mas um dia em que se vê A Prova
de Morte jamais pode ser magro em experiência
cinematográfica), sábado compensador com
cinco longas-metragens. Comecemos com o primeiro, Silenciosa
Luz, que faz Carlos Reygadas voltar ao rol dos diretores
obrigatórios de se ver. Pode-se não gostar,
e é verdade que ele tem com a forma cinematográfica
uma relação solene e nobre que por vezes
fica meio forçada, um ímpeto de fazer
de cada plano uma obra-prima em si mesma que acaba por
pesar um pouco o conjunto. Mas Reygadas é um
soberbo filmador, tem um talento singular na criação
de imagens e na instalação de uma estranheza
que o olhar externo (dele mesmo, da câmera, sem
dúvida) provoca. Seu primeiro longa, Japón,
problematizava esse estranhamento). De alguma forma,
ele ainda não conseguiu sair dele, o que faz
de sua estética ainda algo um pouco travado.
Mas quando acerta, acerta em cheio. Uma experiência,
e se pudéssemos falar isso de todo filme que
vemos em festival, o mundo seria bem melhor... Em seguida,
De Volta à Normandia, de Nicolas Philibert,
filme bonito em sua estreiteza de laços com o
passado, com as pessoas e com o imaginário que
o cinema desempenha em pessoas pouco habituadas com
ele (o filme é um retorno às locações
e às pessoas que trabalharam no filme Eu,
Pierre Rivière..., de René Allio,
1975, do qual Philibert foi assistente). Bom filme,
sólido, um tanto morno por vários momentos,
final comovente. Em seguida, mesma sala, ainda documentários,
dessa vez José Lins do Rêgo e O Engenho
de Zé Lins, de Vladimir Carvalho. O veterano
Vladimir parece ter assumido definitivamente o papel
de aposentado idiossincrático, fazendo filmes
que claramente não têm coesão ou
desenvolvimento estilístico, temático
ou rítmico, mas que ainda assim contêm
coisas interessantes de se ver. O filme é assim,
e apresenta piadas de Ariano Suassuna quando acha que
deve, movido por uma curiosidade pessoal que não
é tão grande para dar um charme particular
ao filme, nem tão aguda para criar uma visão
sobre o universo retratado. Resta a denúncia
do estado da memória brasileira com sua literatura
e, sobretudo, com o imaginário da época
de engenho, hoje em ruínas. Depois, Botafogo
para Centro e A Casa de Alice, de Chico Teixeira,
antecipado por um curta-metragem falcatrua chamado Picolé,
Pintinho e Pipa, filme anteriormente exibido em
outros festivais com outra duração e final,
mas que para se manter nos padrões de minutagem
do Festival cortou na cara dura toda a resolução
da trama, criando um objeto audiovisual sem pé
nem cabeça, selecionado visivelmente pela bondade
social dos organizadores (pois mesmo o que permaneceu
após o trabalho de açougueiro na remontagem
não passa de escolar). De A Casa de Alice
nada muito a dizer além de que trata-se do
Cronicamente Inviável para mulheres histéricas.
O filme é de uma previsibilidade atroz na construção
de um mundinho cão de classe média baixa
paulistana, um pouco à maneira de Contra Todos
de Roberto Moreira, só que sem favela. Dramaticamente
pobre, o filme segue a lógica da análise
combinatória de personagens e do "vai dar merda"
muito comum nesses filmes-painel metidos a marotos e
críticos. O diferencial do filme é o sentido
de despojamento provocado pela câmera de Mauro
Pinheiro e pela filmagem dos corpos em espaços
exíguos, mas quem tem Crash na cabeça
não chega a O Pântano. A noite terminou
em chave doce com a estréia de Ainda Orangotangos
de Gustavo Spolidoro. Não escreverei mais
extensamente sobre o filme porque quando vi pela primeira
vez o diretor era organizador de festival e eu era jurado
e colega diário de papos & comes & bebes,
então não me sinto muito à vontade.
Digo que, em sua irregularidade, gosto do clima, gosto
de situações, me emociono em momentos,
rio um bocado de vezes, e em outros momentos fico enfastiado
porque certas situações claramente se
prolongam mais do que deveriam. O filme faz esse ano,
com Conceição, o par de filmes
cujo espírito é mais importante do que
o resultado final irregular, e que colocam o prazer
de filmar à frente do perfeccionismo meio estéril
que reina na maioria da produção brasileira.
(RG)
Sábado, 22 de setembro de 2007
Ontem foi um primeiro dia modesto. Apenas dois filmes:
uma revisão de O Sol e um caminho com
endereço certo, no caso do filme de Christopher
Guest, autor de mockumentaries que costumo apreciar.
Rever O Sol, de Sokurov, me fez admirar ainda
mais o filme, cujo texto devo desde a Mostra de São
Paulo do ano passado (sim, as piadas são fáceis...
mas o sol há de reaparecer no horizonte em breve,
é um belíssimo filme que merece uma crítica
rapidamente). Quanto
a For Your Consideration, de Christopher Guest,
recomendo com tranqüilidade. Na comédia
americana atual, poucos diretores conseguem incidir
tão precisamente sobre, a um só tempo,
as duas pontas do showbiz americano. For Your Consideration
estabelece a ligação orgânica entre
o tapete vermelho e o circuito underdog do comércio
do espetáculo. Aquela história: celebridades
concorrendo ao Oscar, para num momento seguinte serem
flagradas vomitando no próprio pé ao sair
de uma boate. Para além de um humor ácido
em cima de provincianos fracassados e iludidos com a
hipótese de um reconhecimento da indústria,
o principal dos filmes de Guest são as qualidades
de comédia do elenco. Ao contrário da
turminha Stiller-Ferrell-Wilson, que não se aglutina
em torno de um diretor com uma proposta X de cinema
(e nada de mal nisso, que fique claro), o elenco de
Guest constitui uma verdadeira trupe, e seu projeto
possui uma unidade enfatizada de um filme a outro. São
atores que se entregam àquele universo de uma
forma que extrapola a sátira, e isso é
um de seus traços distintivos. É uma comédia
feita com mais verdade do que a maioria das comédias
que vemos. Eugene Levy, John Michael Higgins, Harry
Shearer, Catherine O'Hara (sem falar no próprio
Guest): excelentes atores que vão até
o fundo do poço com seus personagens, e não
simplesmente atores consagrados que atuam do alto de
um pedestal, enquanto figuras imaginárias (muito
diferentes deles, no fundo) se afundam emancipadamente
dos corpos que lhes servem de suporte. Os atores da
trupe de Guest não têm vergonha dos personagens
que encarnam. Pelo contrário, esgarçam
a pele enquanto os representam. Como disse Kent Jones,
na personagem de O'Hara em For Your Consideration
vemos uma das mais assustadoras e engraçadas
caricaturas da cultura da celebridade. Nenhum representante
do cinema indie americano sabe tratar tão bem
de personagens fracassados como Christopher Guest. (LCOJr)
Sexta-feira,
21 de setembro de 2007
Começo de Festival do Rio, as preocupações
editoriais são sempre as
mesmas: colocar a edição no ar, sempre
em cima da hora e depois do que se previa, ir atrás
do credenciamento, sempre em cima da hora (nesse ano,
14h de sexta em Copacabana), já no meio da correria,
mas em todo caso melhor do que em festivais anteriores.
Afinal de contas, muitos se lembram das horas de espera
até o começo da noite para a entrega das
credenciais. Mas vamos ao que interessa que reclamação
de crítico não dá camisa a ninguém.
Ontem aconteceu finalmente a primeira exibição
oficial na cidade de Tropa de Elite. Digo na
cidade porque aparentemente Jundiaí estreou o
filme dia 14 apenas para servir de justificativa para
lançá-lo como candidato ao Oscar de filme
estrangeiro. Não estive lá ontem mas estive
na cabine de imprensa de quarta-feira, lotada, em que
o clima geral, partilhado inclusive pela assessoria
de imprensa, era de que todo mundo já tinha visto
a versão pirata. O pessoal da segunda e da terceira
fila (como nós da Contracampo, Eduardo Valente
da Cinética e alguns outros somos conhecidos)
até estranhou esse clima de confraternização
semi-hipócrita, mesmo porque curiosamente nenhum
de nós tinha visto (não pelo respeito
ao demônio do copyright, mas porque alguns ainda
acreditam na idéia de ver o filme depois que
o diretor dá o assentimento final sobre sua obra).
Ironicamente, o que foi apresentado à imprensa
foi uma versão digital, ainda incompleta, faltando
marcação de luz (alguns planos muito escuros)
e um ou outro detalhe de acabamento. Não sei
atender à pergunta que não quer calar,
se há cenas a mais ou não, porque continuo
sem ter visto a cópia pirata. Sei que Tropa de
Elite é um filme perturbador, que desperta discussões
sérias a ponto de atiçar os ânimos.
Eu mesmo tive uma dessas no mesmo dia com meu amigo
Ricardo Miranda, montador dos melhores filmes de Arthur
Omar e de A Idade da Terra de Glauber Rocha,
além de colega professor da Escola Darcy Ribeiro
(e personagem de Conceição, filme
de Daniel+4 [ou Guilherme+4, Samantha+4, etc.]). Mas
a mais significativa foi ainda na ante-sala do Espaço
2, com um bom grupo da Contracampo, o diretor e amigo
Gustavo Acioly e o ex-contracampista Valente. De modo
geral, muitas discordâncias de opinião
e acima de tudo sobre os procedimentos de ponto de vista
que o filme realiza. Para os que gostam (e eu me incluo
tranqüilamente no time), o filme revela a sandice
que é a realidade de ter uma equipe de guerra
em atividade numa área urbana, o que reflete
em parte a sandice da situação social
e política do Rio. Para os que deploram, o filme
glorifica o Bope e considera os personagens principais,
em especial o protagonista interpretado por Wagner Moura,
como herói positivo. Bom, os dados estão
lançados, falaremos mais do filme na crítica
(ou nas críticas, ainda não está
decidido). E falaremos sobre cinema, todo dia, aqui
no diário do Festival do Rio. (RG)
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