DIA DE FESTIVAL
Diário de bordo dos editores no Festival do Rio

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Quinta-feira, 4 de outubro de 2007
Jogo de Cena vem sendo anunciado há tempos como uma “virada” na obra de Eduardo Coutinho, especialmente em relação à reflexão que provocaria sobre seu trabalho recente. Sem dúvida, o filme tematiza seu próprio dispositivo e este é, em si mesmo, uma derivação do dispositivo utilizado pelo cineasta anteriormente. A grande pergunta é: de que forma a premissa, enunciativa por si só, transforma-se em filme? E que nos traz este filme como acontecimento na tela? Bom, a verdade é que, provocações reflexivas à parte, as operações emocionais de Jogo de Cena são uma extensão dos últimos filmes do cineasta. Com a observação de que, aqui, ele fecha seu escopo dramático e concentra as narrativas num determinado paradigma, o freudiano. É impressionante como a recorrência absoluta de histórias sobre gravidez, sobre relação pai-e-filha e sobre sonhos significantes tece um terreno propício para Coutinho explorar as lágrimas, a comoção e a abertura afetiva – seja dos seus personagens, seja do público. Me questiono sobre a escolha de filmar apenas mulheres; e, apesar deste desenvolvimento temático me fornecer uma pista, ainda não tenho certeza se compreendo a exata relação – ou mesmo a relação entre a dinâmica depoimento-encenação de depoimento e esta proposição narrativa. Há no filme, por certo, um determinado estado de direito concedido às personagens que situam-se de frente para o palco (como numa extensão da platéia) e, ainda assim, em cima dele e diante da câmera-coutinho. Este estado, ao mesmo tempo em que corresponde à conquista de um direito de fala (o “processo de seleção” é explicitado no filme), configura-se como um acesso privilegiado a um confessionário-divã, onde nenhuma expressão pessoal pode ser censurada (absolutamente significativos são os planos das personagens acedendo ao palco por uma escada escura à semelhança de um túnel). Quanto àquela que seria a “questão central” do filme, a re-interpretação dos depoimentos por atrizes, o que temos é menos um questionamento efetivo (ou assunção verdadeira) da dose de encenação dos depoimentos, do que um instigante jogo com a estética do depoimento documental que, no entanto, procura valorizar tudo o que ele tem de único e espontâneo em contraposição ao artifício de uma atuação. Neste sentido, Coutinho em nada muda sua premissa: captar uma espécie de verdade que se daria numa performance carregada de investimento pessoal e emotivo. São particularmente belos os momentos em que as atrizes tornam-se personagens de documentário elas mesmas, e são registradas falando sobre sua experiência ali no momento da filmagem. Ao entrarem na auto-avaliação, porém, identificando os pontos ou não de contato com o depoimento original, elas corroboram com a armação metalingüística do filme, que de longe é o que ele tem de menos interessante. Se entregue totalmente à autenticidade do artifício – como nos instantes em que a presença física e a fala bastam por si, nivelando a imagem-depoimento das atrizes com a de qualquer depoente real – Jogo de Cena talvez me fosse mais arrebatador. Lembro dos planos de Império dos Sonhos, visto há alguns dias, em que Laura Dern passa os diálogos do filme-dentro-do-filme e torna-se, para a câmera de Lynch, ao mesmo tempo e indistintamente, a personagem-atriz e a personagem do filme-dentro-do-filme, fazendo o estatuto do registro encontrar o abismo de si. Sim, trata-se de um projeto de cinema radicalmente diferente, assim como de outra concepção de mundo, mas me pergunto se não é reducionista o “jogo” que Coutinho propõe também para o espectador: interrogar as camadas (e a graça do filme é que elas são, na verdade, muitas vezes simplesmente indefiníveis) de representação e de autenticidade de cada manifestação, enxergar nas atrizes conhecidas sua interpretação “mais humana” e apreciá-las sempre em contraponto com as depoentes em que se baseiam. Ou mesmo identificar as diferenças como ponto positivo e sinal de sua capacidade de criar e provocar com isso emoções da mesma monta – quiçá até maiores. Me pergunto também qual será a recepção deste filme no exterior, em que os rostos conhecidos para nós serão desconhecidos e este aspecto significativo do filme se perderá, para ser eventualmente substituído por outra. Enfim, estes são apenas alguns questionamentos iniciais sobre Jogo de Cena, resultados de uma reação bastante imediata a ele. Certamente outros se seguirão, assim como desdobramentos mais argumentativos destes. O fato é que o último filme de Coutinho é um trabalho bastante rico e instigante e que provoca ao extremo o exercício crítico. (TM)

Quarta-feira, 3 de outubro de 2007
Nunca fui a Cannes, então não sei o que acontece. Mas, visto daqui, em momentos existe a impressão de uma lavagem cerebral em massa que se instala e domina o ambiente, dando a certos filmes uma dimensão que eles nunca teriam se não estivessem na competição oficial da Croisette. Não digo isso de prêmios porque aí já é mais natural, ainda que um tanto nulo, discutir o mérito à láurea concedida. E não digo isso também dos veículos oficiais, jornais etc., que adoram pagar uma de maria-vai-com-as-outras. Digo mesmo das figuras mais interessantes, inteligentes e independentes de espírito que escrevem sobre cinema, aqui e acolá. Porque, por mais que eu procure, não consigo entender o porquê de ninguém ter feito o debunking da excrescência que é 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, filme romeno vencedor da Palma de Ouro em Cannes. Mesmo os que não gostaram muito do filme, ao menos no que eu li de cobertura (que não foi exaustivo mas foi longe de ser pouco), relevaram as operações mais gritantemente alarmistas para inscrever o filme na "cena romena", tentando ver mais um zeitgeist romeno do que tentando apontar para a pura repetição de fórmulas. Mas talvez isso tenha a ver com uma necessidade de se defender Cannes, e por extensão a excelência da seleção oficial, como um ponto mais político que estético. Isso ao menos da parte da crítica francesa. Não sei. Só sei que fiquei impactado de, ao meio-dia do antepenúltimo dia de festival, ver um filme que ganhou o prêmio mais importante no cinema de autor e ter o impacto, totalmente inesperado, de ter visto um nada. O resto está na crítica, já no ar. Em seguida, Smiley Face, de Gregg Araki. E não é que não era esperado, mas a gente sempre mantém a esperança, né? Estrada para Lugar Nenhum é péssimo, Splendor é pavoroso, mas ele tinha feito o belo Mistérios da Carne, não é? E filme bom a gente não tem pra dar e vender, assim, molezinha molezinha, então vamos conferir... e... sabe filme que em três ou quatro planos a gente já sabe o que vai ser, e que o tom, o ponto-de-vista da câmera, a maneira de atuar, já revelam uma total falta de vigor impossível de ser revertida? Pois é, isso tudo pode ser visto em Smiley Face. Só sei que antes mesmo dos créditos tentei me instalar para dormir, coisa que, infelizmente, só consegui lá pela metade do filme, depois que a maconheira protagonista interpretada pela Anna Faris recebe em mãos o manuscrito do Manifesto do Partido Comunista e tem a idéia de vendê-lo em leilão virtual para sanar todas suas dívidas. Acordei feliz do tempo bem utilizado. Mais à noite, Desejo e Reparação, de Joe Wright. Não li o livro, que nossos cadetes Raphael e Leo consideram uma obra-prima total. Tendo sido o primeiro filme de Wright, confesso que me surpreendi pela beleza de construção de certos planos, certamente ostentatórios, mas de alguma forma construindo um tom geral pela música e pela montagem precisa que me deixaram bastante impressionado. Mas a primeira parte acaba, inicia-se uma segunda que narrativamente mete os pés pelas mãos, e a direção – ainda que mantenha um virtuosismo entre curioso e masturbatório (na cena da chegada dos soldados à praia há um plano seqüência tour de force que, apesar de feito pra enfeitar, me cativou) – fica incapaz de dar uma homogeneidade ao todo, despedaçando o filme em estrutura narrativa, temporal, visual e, pior de tudo, qualitativa. Há em Joe Wright, no entanto, um sentido de construção da cena, de ritmo interno de seqüência e plano que não são tão comuns no cinema. Em se tratando de alguém que está em seu segundo longa, é uma carreira a acompanhar e saber se ele superou esse complexo de esteta genial que afeta tanta gente que tem uma visão ambiciosa de cinema. Esperamos futuro melhor a ele do que o de Darren Aronofsky, pelo menos. Esperemos por seu próximo filme (anotação mental para ver Orgulho e Preconceito). Armênia, de Robert Guédiguian, é uma viagem sem espaço para se perder. E, como em toda viagem, quem passa apenas pelos lugares já demarcados não consegue criar nenhum gosto autêntico pela coisa. Guédiguian já teve a época em que se movimentava por um universo restrito de temas, lugares e atores (bom, aqui os atores continuam), mas como sabia fazer aquilo tudo muito bem, seus filmes – especialmente À Vida... À Morte, Marius e Jeanette e A Cidade Está Tranqüila – eram certeiros no encanto, no calor e na exuberância de mundo criado. Em Armênia, a mecânica do roteiro é simplória e evidente, os caminhos são todos previsíveis e a função é meramente didática. Talvez ele tenha retirado sua inspiração de Um Filme Falado, mas tudo que Manoel de Oliveira consegue retirar de filosófico, histórico e artístico para além da literalidade didática que exibe, falta no filme de Guédiguian. Triste de ver. O curioso do dia é que o filme considerado complemento – com o inexplicável título de Jia Zhang Vai para Casa (alguém achou que "Jia Zhang" é algo como "Marco Aurélio" ou "Maria de Fátima"?) – foi o melhor do dia. Ainda que modesto no fôlego e no escopo, o documentário de Damien Ounouri é um generoso retrato do cinema de Jia, de sua ligação com o espaço de onde veio (a cidade de Fenyang na província de Shanxi), do trabalho com o grupo envolvido na feitura de seus filmes – atores, fotógrafo, montador, produtor –, da forma independente de se fazer cinema na China (onde existe censura oficial antes e depois da filmagem) e permite acima de tudo mostrar o quão autoconsciente Jia Zhang Ke é de suas escolhas e como elas dizem respeito diretamente ao devir histórico da China nos últimos 40 anos, totalmente pensado, nada intuitivo. Além de ser genial ver alguém com cara de moleque, blusa azul marinho da Adidas, andando como jovem, ser um dos realizadores contemporâneos mais importantes do mundo. Ao contrário do que uns e outros professam de forma displicente, o cinema de autor se renova progressivamente, e é fantástico ver diretores com uma punhada de obras-primas – como Jia ou Apichatpong Weerasethakul – feitas antes de completar 40 anos. (RG)

Terça-feira, 2 de outubro de 2007
Festival chegando ao fim, o cansaço já se instala, uma visão de conjunto começa a se apresentar, mas se ainda é prematuro fazer o balanço artístico de tudo que foi visto, é possível todavia fazer um balanço da organização, e o saldo, mesmo para nós que adoramos reclamar, é bastante positivo. Pouquíssimos atrasos, exceto os já constantes, insuportáveis, inexplicáveis, da Première Brasil. É até mesmo como se o Festival tivesse orgulho em exibir essa característica tão carioca do atraso protocolar. Mas, como na sala de aula, até 15 minutos é charme... Já depois... Mas, afora os atrasos das sessões de gala, o festival transcorreu sem muitas exaltações, sem cancelamentos de última hora, e se houve confusão nas entradas com passaportes e credenciais em algumas sessões lotadas, foi mais por um desejo de resolver tudo da melhor maneira do que qualquer outra coisa. O importante dessa vez é que se atendeu a padrões mais claros. Do lado das credenciais e passaportes, a única reclamação séria foi a proibição, de uma hora para outra, da retirada de ingressos para o mesmo dia, o que é absurdo, já que ingressos não podem ser retirados diretamente nas bilheterias. Acaba que, se alguém tem uma agenda complicada, terá que arriscar a sorte no dia anterior se quiser garantir seus ingressos, ou ficar esperando a não-lotação da sala para entrar. Chega até a ser ridículo que um credenciado ou alguém que comprou passaporte não possa retirar ingressos para o mesmo dia, e, pelo menos à distância, não parece algo terrivelmente difícil de ser implementado. Mas saindo do logístico e voltando aos filmes, ontem foi a chance para revisão de Paranoid Park, que, diz-se, só quem viu no Festival do Rio vai ter visto em película, uma vez que o filme deve ser exibido comercialmente numa cópia digital (o problema nem é o digital em si – Eduardo Valente nos contou que o filme passou assim em Cannes – mas que o digital utilizado nas salas do circuito exibidor é esse horror chamado Rain, uma exibição digital de baixíssima qualidade e fidelidade). Em 35mm, o filme continua divino. Sobre Floresta dos Lamentos, filme do qual gostei mas não entrei na onda de efusividade que meus colegas tiveram, li e concordei com esse pedaço de texto escrito por Stéphane Delorme nos Cahiers du Cinéma 627, edição julho-agosto última: "Depois da cena de chuva, a dupla de desgarrados pára diversas vezes, diante de uma tumba, diante de uma Grande Árvore, diante do céu, enfim, estases mudas em que a transcendência vem esmagar o pequeno homem. O que aconteceu? Kawase começou por provocar o sublime, por suscitá-lo (a chuva, magnífica), mas termina por representá-lo, através de lugares-comuns da iconografia religiosa. Quando o espiritual se avança não-mascarado, a tentação é grande de colocar a inspiração a meio pau. Passando da estética ao religioso, a arte se rende à propaganda." ("Halte au sublime", pp. 78-9) Confesso que tive sensações semelhantes, acima de tudo com o final da Grande Árvore referida e sobretudo com a cena final, que dá direito até a uma caixinha de música como prova de fofura em demasia. Que Kawase é uma grande diretora me parece indiscutível, mas em Floresta dos Lamentos também me parece que o imersivo atinge seu ponto morto, sua maneira límpida e sublime de não mais precisar encontrar uma forma cinematográfica, porque ela já existe toda feita de antemão (o que, aliás, também pode-se dizer do filme de Reygadas, que, no entanto, trabalha sempre com uma matéria-prima que, de filme a filme, exige soluções formais diferentes). Além de Paranoid Park, só vi outro filme, mas que filme: I'm Not There, de Todd Haynes. Inteiramente absurdado pelas imagens, pela montagem e, ainda que o filme tenha me perdido em alguns momentos porque eu não sabia direito o que fazer de certas situações, não consigo parar de pensar nele, no fôlego que ele tem para tratar as "muitas vidas" de Bob Dylan, aproveitando a realidade em seu lado iluminado e seu lado negro, fazendo de Dylan o eterno outro da sociedade, negro, mulher, menestrel, vagabundo, fora-da-lei, resistente, like a rolling stone, sem criar os limos da estabilidade, deslizando sobre todas as cristalizações de comportamento, sociedade, etc. Dylan é o não-reconciliado do sistema, aquele que luta para que não coloquem palavras em sua boca, que não seja usado como símbolo de qualquer coisa, tenha seguidores, etc. Em velocidade absoluta de personagem e andamento (que decresce uma meia-hora antes do final, mas é só um detalhe), I'm Not There é uma experiência de liberdade no que ela tem de mais apaixonante e ao mesmo tempo de auto-destrutivo (o necessário correlato). Não é um filme sobre rock, é um filme rock. Todd Haynes, entre punk e arte conceitual, mais uma vez se reafirma – para quem ainda não teve o cuidado de enxergar – como um dos maiores realizadores contemporâneos. Que orgulho de, mesmo no escuro, ter escolhido a foto de capa da edição! (RG)

Segunda-feira, 1 de outubro de 2007
Festival tem dessas coisas. No mesmo dia que escrevemos texto sobre Inland Empire, David Lynch falando de fragmentação, abstração, poder da emoção na ausência do sentido narrativo, assistimos à versão restaurada de A Idade da Terra, de Glauber Rocha. E aí surge aquele efeito mencionado no editorial desse mês, da distância histórica que afasta e da exibição simultânea no festival que aproxima coisas heterogêneas de formas ainda não aproximadas. São idéias que surgem, mais do que por efeito de curadoria (ainda que esta possa provocá-las), por fruto do simples acaso produzido pelo deambular de sala em sala e deixar a mente flutuar de um filme a outro, ocasionando por vezes curto-circuitos criativos. Em A Idade da Terra e em Inland Empire, nada a aproximar em contexto, preocupação conteudística, efeitos expressivos, a não ser, claro, o mais importante, a confiança na imagem para criar um mundo aberrante e excessivo, em que o sentimento de ameaça e mal-estar, sem ter um objeto específico, incide de forma difusa sobre o espectador, sufocando-o aos poucos. Em ambos os filmes, duração monumental que cria um portentoso manifesto de um radical cinema de instalação. Visto mais cedo, Uma Velha Amante, de Catherine Breillat, não me emocionou especialmente. A fluidez e o encantamento das relações e dos desejos dos personagens dos melhores filmes de Breillat (e isso pra mim significa acima de tudo Uma Adolescente de Verdade, mas também Sexo É uma Comédia e Anatomia do Inferno) traduz-se muito mal para outra época e outros costumes, e o falar-se de costumes (Michael Lonsdale, sempre ótimo) acaba saindo melhor do que o mostrar-se. Soterrada pelos cenários e figurinos de época, Breillat não conseguiu construir o despojamento de corpos que dá singularidade a seu melhor trabalho. Ainda sobra um tempinho para falar de uma das maiores perturbações do Festival do Rio, Paranoid Park de Gus Van Sant, visto no sábado. O princípio talvez seja o mesmo de Elefante – evocar o cinema de gênero para não entregar a recompensa, olhar para seus personagens como anjos caídos, vai-e-vens de cronologia, retrato de juventude construído à revelia da intriga principal, etc. –, mas os procedimentos são inteiramente diferentes, reservando à câmera lenta e ao foco um papel que é de deixar estupefato, construindo um universo de delicadeza e fechamento sobre si, mas ao mesmo tempo fazendo ele ruir a partir de um dado de realidade (a avassaladora segundidade peirciana que ataca ali onde não se espera) que obriga a contemplar um outro mundo, o mundo que existe fora do universo protegido da casa, da escola, da lanchonete, como diz Alex a sua colega excessivamente curiosa. Curioso esquema esse que preenche Elefante e Paranoid Park – e, em certa medida, também Last Days , esse sentimento de uma juventude inteiramente destituída de vínculo forte com a idéia de sociedade (não à toa Paranoid Park coloca diálogos como esses jovens recebem as notícias da guerra no Iraque), que, pela relação com a morte, adquire um outro estatuto, incodificável: em Elefante a idéia de que aquilo é tão inimaginável que não pode estar acontecendo, em Paranoid Park a extrema casualidade do acidente que faz com que tudo não passe de um detalhe preciosista do destino. Um detalhe que, no entanto, não consegue ser esquecido. Uma inocência de interioridade absoluta que não é mais possível. Esse desnível operado entre uma vida fechada sobre si (respaldada pela câmera lenta e pelo foco) e essa realidade assassina, implacável, impossível, que não pode aparecer como nada além de um detalhe, faz a fruição de Paranoid Park adquirir uma dureza bressoniana, tão bela quanto o contraste entre a beleza desses adolescentes angelicais e o horror intolerável da morte que teima em pairar sobre esse mundo, obrigando o crescimento. (RG)

Segunda-feira, 1 de outubro de 2007
Saí do cinema “de cena” de Uma Velha Amante para entrar na encenação-experiência de O Homem Provisório, da Casa Laboratório para as Artes do Teatro. Os figurinos, os apetrechos colados aos personagens, as cabeças cortadas que eles levavam pra cá e pra lá, tudo o que se podia ver (e por vezes mesmo sentir o cheiro) em movimento agressivo e incessante, convergiam para contar a história de Teobaldo, o célebre personagem de Guimarães Rosa. A fisicalidade da peça elimina qualquer idéia de organização de elementos num palco e de estudo de falas e posturas. As “imagens” criadas são praticamente todas provisórias ao extremo, concorrentes e instáveis. Os personagens gritam, correm, chocam-se uns aos outros e contra o chão. Os sons e a violência dos corpos são muitas vezes aterradores. Entre uma e outra camada do sertão de cortinas de pano com a vegetação nela impressa, jogos de luz e sombra criam as virtualidades de tudo aquilo que assola Teobaldo – e que se materializa brutalmente em seguida. O espetáculo provoca a imersão pela intensidade e pela habilidade em desdobrar mundos e cenas a partir de ações que se dão num vazio aparente. Curioso contraponto a Cochochi, de Laura Amélia Guzmán e Isabel Cárdenas, visto logo em seguida. No filme de equipe mínima e atores que interpretam a si mesmos, a paisagem mexicana está lá o tempo todo. Rochedos, cachoeiras, florestas, pastos. Os personagens, imersos nesta natureza, só sabem funcionar a partir dela – e a câmera reforça a todo instante este pertencimento. Mas, apesar disto – e da imagem capturar os meninos protagonistas sempre de muito perto, acompanhando seus movimentos, avançando junto a eles pelo espaço – impõe-se uma certa frieza nas situações. Os acontecimentos são esvaziados de intensidade para terem sua dramaticidade sublinhada em tempos alongados e de não-ação. Neste processo, boa parte da emoção da narrativa dos dois irmãos que perdem o cavalo do avô se dissipa e quase sempre ficamos apenas com as imagens o exercício cinematográfico, este sim de bastante interesse. (TM)

Sábado, 29 de setembro de 2007
O que esperar de Gus Van Sant após Elefante? Esta era uma pergunta que traduzia uma interrogação absoluta e escondia uma expectativa altamente positiva, mas envolta com o receio da decepção. E eis que ele realiza Last Days. O questionamento se repete, desta vez com força ainda maior. Mas à medida que Paranoid Park se desenrola na tela, todas as perguntas, expectativas e apreensões se dissipam. Somos atirados no tempo particular do filme, com sua narrativa "lânguida". E qual não é a surpresa ao percebermos que esta distensão temporal responde a uma dilatação e repetição labiríntica dos acontecimentos... O trabalho (ou seria a pesquisa?) de Van Sant com o tempo-espaço, da qual Gerry é o emblemático início, parece não ter limites. A experiência do cinema em relação ao mundo fraturou-se irremediavelmente. Ali, naquele encontro fatídico com o deserto, onde a câmera permitiu que os personagens perdessem a orientação espacial a ponto de enlouquecerem, seu cinema "descobre" que há fatos do mundo que a organização de uma narrativa mais "clássica" simplesmente não pode abarcar. É como se diante de cada acontecimento extremo – precisamente aqueles que colocam em risco a vida – precisássemos reinventar o universo. Voltar e pensar tudo de novo. Em Paranoid Park, o que era pulverização de pontos de vista em Elefante e impossibilidade de ordenar a vivência em Last Days, torna-se as idas e vindas de uma consciência assolada por uma culpa paranóica. O trauma no curso das coisas precisa ser expurgado. E, para Alex, o esforço mental não basta, pois a imagem da tragédia é pregnante – e definitivamente após a fotografia mostrada pelo oficial de polícia – e contamina todas as outras imagens de sua vida cotidiana: a câmera lenta espraia-se pelo filme, fixa olhares e prolonga hesitações, receios, impossibilidades de movimento. A escrita trará então para o garoto uma espécie de catarse. Mas Alex não tem grande desenvoltura com a expressão através das palavras no papel, como ele mesmo diz; sua escrita irá, pois, se dar de forma não-linear, seguindo o curso do pensamento, avançando e voltando de acordo com os caprichos da memória. O filme, que nasce colado ao personagem, torna-se seu fluxo mais interno – não mais o puro movimento de corpos de Elefante, não mais o indevassável de uma vivência particular demais de Last Days. A impressionante expansão do cinema de Gus Van Sant é pra mim motivo de maravilhamento absoluto e inegável assombro. (TM)

Sexta-feira, 28 de setembro de 2007
Fim de primeira semana, começo de segunda semana de festival. Saldo até agora sensacional, e ainda que o meio de percurso não seja o melhor caminho para um diagnóstico, ele cria a oportunidade para um primeiro olhar. Ainda mais porque os destaques se separam, ou costumam se separar entre primeira e segunda semana. Primeira: Oliveira 1, Hong Sang-Soo, Naomi Kawase, Carlos Reygadas (restabelecido como um dos decisivos), Claude Chabrol, Todd Haynes, Apichatpong Weerasethakul, o combo O Estado do Mundo. Segunda: Gus Van Sant, Oliveira 2, Jacques Rivette, David Lynch, Abel Ferrara, o bem faladíssimo Lady Chatterley de Pascale Ferran, o romeno vencedor de Cannes (e, ao menos para mim, ver os que não consegui na primeira semana: I'm Not There e Floresta dos Lamentos, tidos como obras-primas pela maioria da revista que viu). Até agora, parcial da contabilidade, o cinema de imersão sensorial/conceitual, que vinha carregando uma dianteira folgada nos últimos anos (Mal dos Trópicos, Elefante, Last Days, O Intruso, Juventude em Marcha, Café Lumière, Síndromes e um Século), passa a reconviver normalmente com um cinema de dispositivo ou de operações lógicas sobre a narrativa (Haynes, esperamos que Lynch) ou mesmo com o triunfo da confiança de ainda extrair de uma estrutura narrativa "comum" um interesse singular (Mulher na Praia de Hong Sang-Soo, ainda que a estrutura de espelhamento ofereça ao menos um olhar já mais auto-consciente em relação à narração). Muito por questão de panorama, mesmo, acho que vale a pena voltar ao filme de Hong Sang-Soo, porque, excetuando Almodóvar, nenhum dos grandes contemporâneos parece evoluir sua estética no sentido de uma elaboração de história. Num momento de crise da ficção – mesmo cineastas badalados no circuito cult mais convencional, como os Dardenne, carregam seu filme no realismo da instabilidade da câmera e no realismo de tiques de seus atores, pois a história por si mesmo vem sendo cada vez mais banal –, vale a pena chamar atenção para o terreno do íntimo que Hong evoca filme a filme, pois, se na escala natural de nossas vidas parece já haver um esgotamento da surpresa no contar-se das histórias, o microscópio de Hong Sang-Soo reinventa um novo terreno para futuros ficcionadores que esperam fazer algo no futuro além de chover no molhado: filmar o sexo, o caminhar, o beber, apegar-se ao cotidiano e ao desejo na relação homem-mulher (no caso de Hong, já que nenhum de seus casais até hoje foi homossexual), pela minúcia de construção, ainda pode provocar grandes perturbações no terreno hoje relativamente estável que é o cinema que se carrega pela narração, ou, para usar o termo (mais preciso) dos anglófonos, pelo storytelling. (RG)

Quinta-feira, 27 de setembro de 2007
Chato o dia de festival em que só se vê, passando de uma sala à outra, filmes entre morno e interessante. Ontem, quarta-feira, foi assim, bem oposto a uma terça-feira mágica, com direito a uma sessão de Mulher na Praia com a platéia totalmente ganha e vibrando com o filme. A quarta garantia algumas expectativas fortes. Primeiro, Antiga Alegria, filme que vinha sendo respaldado dos dois lados do Atlântico. O filme tem lá seus encantos na maneira como trabalha a relação entre os personagens, um pouco entre o desconforto e uma certa simpatia desafetada. Mas, como é freqüentemente o caso nos filmes independentes americanos, existe sempre uma espécie de mesquinharia autopiedosa, aqui em modo melancólico, mas sempre centrada na idéia do ego, na dimensão das proporções de vivência mais à mão. E o filme só deixa tudo mais complicado quando leva seus personagens à selva, sem entretanto jamais abandonar seus amparos antropomórficos em nome da desrazão da selva. Resultado: ao contrário de Apichatpong Weerasethakul ou Claire Denis (e, me contam Júnior e Tati, também o novo filme da Naomi Kawase), a floresta em Antiga Alegria não tem real força, a câmera sendo incapaz de atingir um grau de fabulação em relação àquilo que exibe, sem nenhum poder de instalação. Para usar uma problemática que está na minha cabeça há uns bons meses, a diferença entre o narrar e o mostrar, o filme parece o tempo inteiro chamar atenção para a necessidade da mostração, de criar momentos de indeterminação, mas jamais abandona seus próprios amparos narrativos, direcionando o olhar o tempo inteiro e jamais dando um limiar de liberdade ao espectador para experimentar. É uma pena, pois vendo o filme pensamos muito em Gerry do Gus Van Sant ou em Blissfully Yours de Apichatpoing Weerasethakul. E, naturalmente, Antiga Alegria não suporta a comparação, pois o tempo nele jamais chega a ser qualitativo. Em seguida, Techiné novo, As Testemunhas, sobre o aparecimento da AIDS ali entre 1984 e 1985. O filme vai bem na primeira parte, em que se atém aos dramas de seus personagens, o default de Techiné, nenhum brilho especial. Mas na segunda metade, ao tentar inscrever os dados históricos da recepção da doença por parte de especialistas e da sociedade, e ainda assim tentar manter os dramas pessoas dos personagens que vinha construindo, o filme mete os pés pelas mãos e no final deixa um objeto visual bem aquém do que se espera desse realizador que, se não tem geralmente vôos tão altos, ao menos costuma nos entregar obras precisas e vigorosas. Em seguida, Andarilho de Cao Guimarães. Reproduzo o que postei na comunidade orkutiana de nossos opostos complementares, os cinéticos: "quanto a Andarilho, admiro aquilo tudo, porém bastante friamente, sem um real engajamento, sem encontrar um nexo que junte ritmicamente as duas principais operações do filme (performance dos andarilhos/planos para estabelecer o ritmo da vida de estrada), achando aquela beleza toda meio fetichista e pouco orgânica. Mas de fato alguns planos, em especial o último, são arrebatadores. Mas nada tão perfeito, orgânico, preciso quanto man.road.river (que acho que passou pela cabeça de todo mundo que conhece esse filme ao ver Andarilho)". O cinema do Cao Guimarães em geral me deixa assim, e confesso que ainda não tenho um julgamento final sobre seus filmes – que bom! – mas definitivamente o gut feeling em relação à obra inexiste. Mas tanto os filmes e a carreira são muito instigantes. Em seguida, Estômago, primeiro longa-metragem de Marcus Jorge. Novamente da comunidade da Revista Cinética: "Apesar do filme não ser, confesso que discutir Estômago é um treco meio apaixonante. O filme tem uma entrega comercialona cativante, porque de fato faz tudo para oferecer ao espectador um espetáculo nos moldes meio popular-cult que ele está acostumado, e nisso funciona bem em vários momentos. Em especial o trabalho da música e o joão miguel, realmente soberbo. Estruturalmente, no entanto, é uma bagunça só. A sanfoninha presente-passado funciona mais ou menos só até a metade do filme, e quando vai chegando no clímax o ridículo-charmoso vira ridículo-constrangedor, pela previsibilidade e pelas péssimas soluções visuais e narrativas encontradas (não entro em detalhes pra não entregar o final)". Fiz mais um comentário no que diz respeito à condição do personagem final, jeca que paga de serviçal mas ao fim tece suas vinganças sangrentas. Quem quiser pode fazer as especulações ideológicas que quiser, mas acho que o filme não atribui a isso nada além de uma solução narrativa charmosa e "surpreendente". O interessante do filme é a relativa fluidez e o caráter um tanto evasivo (ou seja, é um filme totalmente autoconsciente de ser uma bobagem), que talvez até garantam uma boa performance de bilheteria. Mas, em se tratando de comédia, tem um número bem alto de situações frustradas e/ou fáceis para que se eleve como algo acima do status de curiosidade. Resta que o dia acaba e continuamos pensando nas maravilhas do cinema de Hong Sang-Soo, então a fotinho do dia vai ser dedicada a ele, com o final delicioso, libertador, de Mulher na Praia... (RG)

Quarta-feira, 26 de setembro de 2007
Muitos filmes por dia, cotações, debates, argumentações. Não, não se trata da vivência de um festival de cinema, mas de uma experiência pré-festival. As atividades finais do comitê de seleção internacional do Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro, o Curta Cinema, do qual fiz parte, me consumiram os primeiros três dias de Festival do Rio. Como consolo, além de um amplo panorama do que está sendo realizado em audiovisual no mundo, a antevisão de que teremos uma bela amostra de curtas-metragens estrangeiros durante o festival, que ocorrerá de 25 de outubro a 4 de novembro. A lista final encontra-se aqui. Passado este período de intensa garimpagem e descobertas, mergulho finalmente no Festival do Rio e me deparo com Homens na Terra, de Ariane Michel. A aposta pessoal no filme, advinda da pesquisa no site dedicado a ele, se confirma na projeção. Obra de estranheza extrema dentro de um festival de cinema, com seu tempo contemplativo ao limite e sua narrativa quase impenetrável, Homens na Terra me instiga profundamente e me faz querer conhecer outras obras de Michel. Artista plástica e vídeo-artista, a diretora confirma, em entrevista sobre o filme, o que se vê na tela: um verdadeiro estudo sobre a construção do olhar, interessado sobretudo na opacidade da vida animal. Mais no texto que escreverei sobre o filme. Em termos de apostas coletivas, ontem foi o dia de estar face-a-face com o aguardado I’m Not There, de Todd Haynes, em cabine de imprensa. Na tela, a obra atinge a expectativa e a ultrapassa, como em todo grande filme. I’m Not There é o monumento que esperávamos e é mais: é fluxo de imagens e sons impossíveis de serem previstos. Arrebatamento dos sentidos, profusão de emoções. O filme de Todd Haynes é uma obra em auto-ebulição, uma avalanche e um quebra-cabeça cinematográfico, que provoca a um só tempo maravilhamento e dificuldade crítica. Na saída do cinema, a sensação de ter vivido mais do que o possível em duas horas (sensação, aliás, partilhada pela experiência efusiva do filme de Naomi Kawase, Floresta dos Lamentos) e a certeza de que ainda falaremos muito sobre ele. (TM)

Quarta-feira, 26 de setembro de 2007
Filmes em episódios feitos por vários diretores de vários países... eles estão na moda no circuito internacional de festivais, eles são a condensação do "world cinema". O principal representante do fenômeno em 2007 é O Estado do Mundo, ao qual assisti ontem. O filme tem um aspecto interessante de se assemelhar, na era das câmeras digitais portáteis, ao desejo de Lumière de espalhar seus cinegrafistas pelos quatro cantos do planeta e compor registros sobre as coisas mais variadas, desde monumentos históricos até passagens de transeuntes, uma enciclopédia do mundo em movimento. Os episódios bons vêm de quem já prevíamos. Vicente Ferraz pagou mico internacional. O tal do Ayisha Abraham? Fez um diário com ares miserabilistas e enfadonhos. Wang Bing? Conceitualmente interessante, mas um filme fácil no fundo, um teatrinho brechtiano que amontoa num mesmo espaço a China contemporânea e seu passado maoísta. Fórmula simplista demais para um diretor de quem eu esperava tanto... Mas restam lá algumas imagens fortes, de textura e luz bastante expressivas em meio à assustadora paisagem industrial. Apichatpong? Um belo filme ritualista e vitalista, uma correnteza ora serena, ora turbulenta. Pedro Costa? Jogou em casa e fez um filme bem forte, com a mesma identidade estética de Juventude em Marcha, ambientado naquela terra imaginária esquisita, idílica e poética, como um universo pictural que precisamos prolongar mentalmente a partir do quadro exuberante que o artista nos oferece. E tem a Chantal Akerman... esta proporcionou a grande experiência do filme. Ela captou alguns momentos do anoitecer em Xangai, lugar de arranha-céus e saturação de signos visuais e sonoros. As poucas pessoas que aparecem no filme são efemeridades, às vezes são somente vultos fugidios em contra-luz. No fim, sobram apenas as imagens, elas são as únicas coisas com poder de permanência nesse lugar. De tão onipresentes, essas imagens nem recebem mais o olhar das pessoas (é o contrário que ameaça acontecer). Um mundo de anônimos vigiado por imagens, e por fim um mundo só de imagens e sons. Tem a música no fundo, hits pop em idiomas diversos. No longuíssimo plano final, Akerman traça um arco de Lumière à vídeo-instalação, à imagem-ambiência, passando, claro, por Andy Warhol. (LCOJr)

Terça-feira, 25 de setembro de 2007
Já dá para dizer que temos um bom Festival do Rio. Em quatro dias, revi pela segunda vez um belo filme (O Sol) e pela quarta vez uma obra-prima de outro mundo (Síndromes e um Século); tivemos um Christopher Guest bacana, o bonito De Volta à Normandia de Nicolas Philibert, Chabrol sensacional em Uma Mulher Dividida em Dois... E ontem, com Floresta dos Lamentos, Naomi Kawase ofereceu uma rara experiência estético-existencial, novamente tendo a vida e a morte como forças motrizes em seu cinema e complementares na vida (meu texto sobre o filme já está no ar). Nenhum festival que tem Floresta dos Lamentos pode passar em branco, isso eu garanto. Como aliás já havia sido marcante a exibição de Shara em 2003, também de Kawase. Este novo filme é ainda mais intenso, por incrível que pareça (aos que não viram, passa de novo no sábado). Mas como festival não é feito só de filme bom, às 23:45 lá fui eu pra uma dessas furadas inofensivas tão características dessa época do ano devotada ao cinema. O filme se chama A Felicidade dos Sakai, dirigo por Mipa Oh (isso mesmo). Se na primeira meia-hora parecia aquele típico filminho todo-errado-porém-simpático, depois o todo errado predomina sobre o resto. Não vou negar que o filme até possui sua fração de simpatia... Mas quando deixa de ser uma comédia familiar filtrada pelo olhar de um adolescente tímido e passa a ser um drama sem pé nem cabeça, fica difícil acompanhar a onda do filme. Os micro encantos que poderiam existir acabam se esvaziando, ao passo que nosso saco se enche. Destaque para a menininha da família Sakai, um respiro de vida e graça. (LCOJr)

Segunda-feira, 24 de setembro de 2007
Domingo foi um desses costumeiros dias em festivais que se vai programado, certinho, e outras circunstâncias obrigam a refazer a programação. A de ontem foi o atraso para o primeiro Chabrol, o que me forçou a recolocá-lo na sessão da noite e, assim, deixar para uma outra oportunidade a visita ao Estação Ipanema para ver o filme dirigido pela Sandrine Bonnaire (e o japonês que vinha em seqüência como brinde). O brinde da meia-noite acabou sendo coreano, um filme boboquinha bem intencionado sobre o qual escreve-se uma pílula e está bem. O centro do dia, como não poderia deixar de ser, foi Síndromes e um Século, filme que se transformou numa espécie de ritual pra mim. Visto em enormes condições de cansaço na Mostra de São Paulo, depois revisto em vídeo, visto novamente em cabine de imprensa e enfim revisto pela última vez em película até sabe-se lá quando, o filme de Apichatpong Weerasethakul é desses que têm com o não-saber uma relação fundamental. O não-saber em pelo menos dois estados: a) sai-se muito burro da primeira visão do filme, pela estrutura, pela construção, pela incerteza quanto a como atribuir significado a tal ou tal cena ou seqüência; por vezes, mesmo, dificuldade em compreender o que o diretor quer com isso; b) não-saber próprio do diretor, que faz questão, como diz Manoel de Oliveira, de criar "uma saturação de signos magníficos que se banham na luz de sua ausência de explicação". A base do trabalho cinematográfico de Apichatpong Weerasethakul situa-se radicalmente entre o narrar e o mostrar. Mas para ele isso não é um dilema nem se desenvolve elegendo um em detrimento do outro. Ele faz um pouco como David Lynch em filmes como Estrada Perdida ou Mulholland Drive: ele cria uma estrutura de base, tenuemente narrativa, suficientemente esburacada, para inscrever aquilo que ele quer, a vida que passa, o tempo que transcorre e a ocupação desse tempo por parte das pessoas. Há um prazer renoiriano (Jean e Pierre-Auguste) em observar a pujança da vida tal qual Weerasethakul nos mostra, são imagens que exercem um função afetiva, um deslumbre diante das diversidades não-sintetizáveis ou dialetizáveis do mundo. Brincando, falei pro co-editor Júnior: a única sinopse possível para esse filme é a frase aristotélica "O ser se dá de diferentes maneiras". Mas, ao invés apenas de uma coleção de momentos deleitáveis, esse jovem mestre tailandês reparte seu filme em dois (apesar de cada parte também ser divisível em partes menores, o que não se dava em Mal dos Trópicos de forma tão determinante) e aproveita a operação para criar diversas analogias: visuais (eclipse/cano que suga fumaça), de situação (orquídea selvagem/ovni de brinquedo fazendo os personagens olharem muito para cima), de tema (mulher curando uma perna menor com outra com areia ou prótese). Mas ele se furta a ser discursivo ou comparativo quanto a isso: dividir o filme entre um hospital no campo e um hospital na cidade não é prerrogativa para ser taxativo quanto à tecnologia ou à sabedoria tradicional. O filme exibe as duas, freqüentemente imbricadas uma na outra, mas não se alonga sobre o tema, ou não faz questão de colocar isso como ênfase especial do filme (apesar de ser o que o título sugere com mais força: síndromes e como a distância dos séculos responde a elas). Para Apichatpong Weerasethakul, existe um prazer enorme em fazer o filme sair daquilo que a gente chama de diegético (aquilo que diz respeito à consistência da ficção sendo apresentada, o "mundo" em que habitam os personagens do filme) e simplesmente fazer planos que flagram simplesmente as pessoas em momento de recreação. Isso se dá com mais força lá para o fim de cada uma das duas partes, a primeira aproveitando a música de um show numa tenda, inicialmente cortando para espaços que se supõem contíguos à música sendo executada, e em seguida cortando para qualquer espaço, até chegar novamente ao hospital. A segunda utiliza a musiquinha da ginástica em praça pública (que também era o final da primeira parte de Mal dos Trópicos) para obter efeitos semelhantes. A pergunta principal de Joe Weerasethakul em Síndromes e um Século é: como fabular o universo, espaço e habitantes, de dois hospitais? As muitas histórias sendo contadas, merecendo ou não flashbacks, chamam atenção para como o relato é decisivo no cinema desse realizador. Ele varia os registros, pergunta-se o tempo inteiro sobre a necessidade das ficções em todos seus registros: mito, fábula, relato confessional, história vivida, caso inventado, ou simplesmente ausência de história, o simples mostrar-se da imagem acontecendo à revelia de qualquer discurso. E isso faz de Apichatpong Weerasethakul um cineasta único e fundamental no cinema que se produz hoje. Por isso a profusão de estrelas no quadro da revista e essa disposição, considerada loucura por muitos, de revê-lo quantas vezes for possível num festival. Fazer o quê? O filme compensa... (RG)

Domingo, 23 de setembro de 2007
Depois de um dia magro em número de filmes na sexta-feira (mas um dia em que se vê A Prova de Morte jamais pode ser magro em experiência cinematográfica), sábado compensador com cinco longas-metragens. Comecemos com o primeiro, Silenciosa Luz, que faz Carlos Reygadas voltar ao rol dos diretores obrigatórios de se ver. Pode-se não gostar, e é verdade que ele tem com a forma cinematográfica uma relação solene e nobre que por vezes fica meio forçada, um ímpeto de fazer de cada plano uma obra-prima em si mesma que acaba por pesar um pouco o conjunto. Mas Reygadas é um soberbo filmador, tem um talento singular na criação de imagens e na instalação de uma estranheza que o olhar externo (dele mesmo, da câmera, sem dúvida) provoca. Seu primeiro longa, Japón, problematizava esse estranhamento). De alguma forma, ele ainda não conseguiu sair dele, o que faz de sua estética ainda algo um pouco travado. Mas quando acerta, acerta em cheio. Uma experiência, e se pudéssemos falar isso de todo filme que vemos em festival, o mundo seria bem melhor... Em seguida, De Volta à Normandia, de Nicolas Philibert, filme bonito em sua estreiteza de laços com o passado, com as pessoas e com o imaginário que o cinema desempenha em pessoas pouco habituadas com ele (o filme é um retorno às locações e às pessoas que trabalharam no filme Eu, Pierre Rivière..., de René Allio, 1975, do qual Philibert foi assistente). Bom filme, sólido, um tanto morno por vários momentos, final comovente. Em seguida, mesma sala, ainda documentários, dessa vez José Lins do Rêgo e O Engenho de Zé Lins, de Vladimir Carvalho. O veterano Vladimir parece ter assumido definitivamente o papel de aposentado idiossincrático, fazendo filmes que claramente não têm coesão ou desenvolvimento estilístico, temático ou rítmico, mas que ainda assim contêm coisas interessantes de se ver. O filme é assim, e apresenta piadas de Ariano Suassuna quando acha que deve, movido por uma curiosidade pessoal que não é tão grande para dar um charme particular ao filme, nem tão aguda para criar uma visão sobre o universo retratado. Resta a denúncia do estado da memória brasileira com sua literatura e, sobretudo, com o imaginário da época de engenho, hoje em ruínas. Depois, Botafogo para Centro e A Casa de Alice, de Chico Teixeira, antecipado por um curta-metragem falcatrua chamado Picolé, Pintinho e Pipa, filme anteriormente exibido em outros festivais com outra duração e final, mas que para se manter nos padrões de minutagem do Festival cortou na cara dura toda a resolução da trama, criando um objeto audiovisual sem pé nem cabeça, selecionado visivelmente pela bondade social dos organizadores (pois mesmo o que permaneceu após o trabalho de açougueiro na remontagem não passa de escolar). De A Casa de Alice nada muito a dizer além de que trata-se do Cronicamente Inviável para mulheres histéricas. O filme é de uma previsibilidade atroz na construção de um mundinho cão de classe média baixa paulistana, um pouco à maneira de Contra Todos de Roberto Moreira, só que sem favela. Dramaticamente pobre, o filme segue a lógica da análise combinatória de personagens e do "vai dar merda" muito comum nesses filmes-painel metidos a marotos e críticos. O diferencial do filme é o sentido de despojamento provocado pela câmera de Mauro Pinheiro e pela filmagem dos corpos em espaços exíguos, mas quem tem Crash na cabeça não chega a O Pântano. A noite terminou em chave doce com a estréia de Ainda Orangotangos de Gustavo Spolidoro. Não escreverei mais extensamente sobre o filme porque quando vi pela primeira vez o diretor era organizador de festival e eu era jurado e colega diário de papos & comes & bebes, então não me sinto muito à vontade. Digo que, em sua irregularidade, gosto do clima, gosto de situações, me emociono em momentos, rio um bocado de vezes, e em outros momentos fico enfastiado porque certas situações claramente se prolongam mais do que deveriam. O filme faz esse ano, com Conceição, o par de filmes cujo espírito é mais importante do que o resultado final irregular, e que colocam o prazer de filmar à frente do perfeccionismo meio estéril que reina na maioria da produção brasileira. (RG)

Sábado, 22 de setembro de 2007
Ontem foi um primeiro dia modesto. Apenas dois filmes: uma revisão de O Sol e um caminho com endereço certo, no caso do filme de Christopher Guest, autor de mockumentaries que costumo apreciar. Rever O Sol, de Sokurov, me fez admirar ainda mais o filme, cujo texto devo desde a Mostra de São Paulo do ano passado (sim, as piadas são fáceis... mas o sol há de reaparecer no horizonte em breve, é um belíssimo filme que merece uma crítica rapidamente).
Quanto a For Your Consideration, de Christopher Guest, recomendo com tranqüilidade. Na comédia americana atual, poucos diretores conseguem incidir tão precisamente sobre, a um só tempo, as duas pontas do showbiz americano. For Your Consideration estabelece a ligação orgânica entre o tapete vermelho e o circuito underdog do comércio do espetáculo. Aquela história: celebridades concorrendo ao Oscar, para num momento seguinte serem flagradas vomitando no próprio pé ao sair de uma boate. Para além de um humor ácido em cima de provincianos fracassados e iludidos com a hipótese de um reconhecimento da indústria, o principal dos filmes de Guest são as qualidades de comédia do elenco. Ao contrário da turminha Stiller-Ferrell-Wilson, que não se aglutina em torno de um diretor com uma proposta X de cinema (e nada de mal nisso, que fique claro), o elenco de Guest constitui uma verdadeira trupe, e seu projeto possui uma unidade enfatizada de um filme a outro. São atores que se entregam àquele universo de uma forma que extrapola a sátira, e isso é um de seus traços distintivos. É uma comédia feita com mais verdade do que a maioria das comédias que vemos. Eugene Levy, John Michael Higgins, Harry Shearer, Catherine O'Hara (sem falar no próprio Guest): excelentes atores que vão até o fundo do poço com seus personagens, e não simplesmente atores consagrados que atuam do alto de um pedestal, enquanto figuras imaginárias (muito diferentes deles, no fundo) se afundam emancipadamente dos corpos que lhes servem de suporte. Os atores da trupe de Guest não têm vergonha dos personagens que encarnam. Pelo contrário, esgarçam a pele enquanto os representam. Como disse Kent Jones, na personagem de O'Hara em For Your Consideration vemos uma das mais assustadoras e engraçadas caricaturas da cultura da celebridade. Nenhum representante do cinema indie americano sabe tratar tão bem de personagens fracassados como Christopher Guest. (LCOJr)

Sexta-feira, 21 de setembro de 2007
Começo de Festival do Rio, as preocupações editoriais são sempre
as mesmas: colocar a edição no ar, sempre em cima da hora e depois do que se previa, ir atrás do credenciamento, sempre em cima da hora (nesse ano, 14h de sexta em Copacabana), já no meio da correria, mas em todo caso melhor do que em festivais anteriores. Afinal de contas, muitos se lembram das horas de espera até o começo da noite para a entrega das credenciais. Mas vamos ao que interessa que reclamação de crítico não dá camisa a ninguém. Ontem aconteceu finalmente a primeira exibição oficial na cidade de Tropa de Elite. Digo na cidade porque aparentemente Jundiaí estreou o filme dia 14 apenas para servir de justificativa para lançá-lo como candidato ao Oscar de filme estrangeiro. Não estive lá ontem mas estive na cabine de imprensa de quarta-feira, lotada, em que o clima geral, partilhado inclusive pela assessoria de imprensa, era de que todo mundo já tinha visto a versão pirata. O pessoal da segunda e da terceira fila (como nós da Contracampo, Eduardo Valente da Cinética e alguns outros somos conhecidos) até estranhou esse clima de confraternização semi-hipócrita, mesmo porque curiosamente nenhum de nós tinha visto (não pelo respeito ao demônio do copyright, mas porque alguns ainda acreditam na idéia de ver o filme depois que o diretor dá o assentimento final sobre sua obra). Ironicamente, o que foi apresentado à imprensa foi uma versão digital, ainda incompleta, faltando marcação de luz (alguns planos muito escuros) e um ou outro detalhe de acabamento. Não sei atender à pergunta que não quer calar, se há cenas a mais ou não, porque continuo sem ter visto a cópia pirata. Sei que Tropa de Elite é um filme perturbador, que desperta discussões sérias a ponto de atiçar os ânimos. Eu mesmo tive uma dessas no mesmo dia com meu amigo Ricardo Miranda, montador dos melhores filmes de Arthur Omar e de A Idade da Terra de Glauber Rocha, além de colega professor da Escola Darcy Ribeiro (e personagem de Conceição, filme de Daniel+4 [ou Guilherme+4, Samantha+4, etc.]). Mas a mais significativa foi ainda na ante-sala do Espaço 2, com um bom grupo da Contracampo, o diretor e amigo Gustavo Acioly e o ex-contracampista Valente. De modo geral, muitas discordâncias de opinião e acima de tudo sobre os procedimentos de ponto de vista que o filme realiza. Para os que gostam (e eu me incluo tranqüilamente no time), o filme revela a sandice que é a realidade de ter uma equipe de guerra em atividade numa área urbana, o que reflete em parte a sandice da situação social e política do Rio. Para os que deploram, o filme glorifica o Bope e considera os personagens principais, em especial o protagonista interpretado por Wagner Moura, como herói positivo. Bom, os dados estão lançados, falaremos mais do filme na crítica (ou nas críticas, ainda não está decidido). E falaremos sobre cinema, todo dia, aqui no diário do Festival do Rio. (RG)

 

 

 







Foto do dia (04/10):

Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho

O plano enigmático de Jogo de Cena: seriam as manifestações das atrizes e, por conseqüência, das não-atrizes, uma "projeção" da mente de Eduardo Coutinho?

Foto do dia (03/10):

Jia Zhang Vai para Casa, de Damien Ounouri


Foto do dia (02/10):
I'm Not There, de Todd Haynes


Foto do dia I (01/10):
A Idade da Terra, de Glauber Rocha


Foto do dia II (01/10):
Cochochi, de
Laura Amélia Guzmán e Isabel Cárdenas


Foto do dia (29/09):

Paranoid Park
, de Gus Van Sant



Foto do dia (27/09) e, bis, do dia (28/09):

Mulher na Praia
, de Hong Sang-Soo



Foto do dia (26/09):

Homens na Terra
, de Ariane Michel



Foto do dia (25/09):

Floresta dos Lamentos
, de Naomi Kawase


Foto do dia (24/09):

Síndromes e um Século
, de Apichatpong Weerasethakul



Foto do dia (23/09):

Silenciosa Luz
, de Carlos Reygadas



Foto do dia (22/09):

For Your Consideration
, de Christopher Guest


Cena do filme dentro do filme. Destaque para a grande
atriz Catherine O'Hara, em uma atuação brilhante.

Foto do dia (21/09):
Tropa de Elite, de José Padilha

O personagem principal de Tropa de Elite, Capitão Nascimento, interpretado por Wagner Moura: herói positivo ou retrato estilhaçado de uma cidade que recorre a uma situação extrema em nome da ordem?