Tropa
de Elite é um filme sobre uma aprendizagem. Ou o
oposto dela, dependendo de como se concebe o termo.
Porque é, ao mesmo tempo, uma formatação e uma tomada
de "consciência", a obtenção de um certo saber
e sua conseqüente aplicação, implicando uma mudança
de vida. A narrativa do filme é bastante clara, ancorando
o fim do filme como um arremate, uma seta perfeita de
A para B, tão escandalosa quanto seca: é preciso de
um homem que faça o trabalho, e como esse homem não
existe, esse homem precisa ser construído. Uma lógica
estrita dessas demanda uma economia de guerra, porque
o trabalho é um convívio com a guerra: Rio de Janeiro,
Bope, uma equipe treinada com todos os rigores de esquadrão
de elite numa guerra. E o homem a ser construído é o
comandante desse grupo, o soldado perfeito, aquele que
analisa todos os fatores sem que, no entanto, o fator
humano (o remorso, a decisão sobre a humilhação ou a
vida alheia, a sociabilidade) entre na equação. Afinal,
é uma guerra. Só que essa guerra não acontece em território
de guerra, mas em terreno civil, superpopulado, dentro
duma megalópole brasileira regida pelo estado de direito.
E o que acontece quando se coloca um grupo armado com
plenos poderes e um comportamento de estado de exceção
numa área em que, a princípio, impera o reinado da Lei?
O mínimo a dizer de Tropa de Elite é que o filme
escancara a insanidade desse estado de coisas, não como
parábola ou denúncia, não como legitimação ou apologia,
mas simplesmente como quem observa um modus operandi
intolerável que, ao mesmo tempo, é o café com leite
diário das operações policiais do Rio de Janeiro.
Então, e a aprendizagem? Escola selvagem, tão mais selvagem
quanto escondida, invisível: só a conhecemos pela voz
em off do Capitão Nascimento, protagonista do filme,
que relata seu dilema de desejar sair de seu cargo de
comando, mas não sem antes escolher seu sucessor entre
dois cadetes aplicados, Neto e Matias. Mas essa narrativa
de suspense é, como o percurso dos ensinamentos, apenas
transmitida via off, cabendo à câmera apenas o registro
desses três personagens principais entre vida pessoal
e vida profissional. Mas guerra permite vida pessoal?
É o caráter mais selvagem, avassalador da aprendizagem,
e Tropa de Elite faz questão de deixar tudo bem
claro: o processo é excludente, e não possibilita convívio
harmonioso entre uniforme e passeio. Troca-se sem perceber
o filho e a esposa pelo hábito de fazer valer a própria
voz contra todos, e pelas tremedeiras que surgem como
efeito colateral desse comportamento. Abandona-se tudo,
amigos, namorada, festinhas, ambiente de faculdade,
toda espécie de socialização, de universalização – não
exatamente por opção, tampouco por clarividência, mas
como simples etapa de um percurso protocolar a ser cumprido,
um passo a ser dado como consecução lógica. No filme,
tudo funciona como máquina, como resultado inelutável
de um processo, em que a inscrição de uma vontade "individual"
ocupa parte pouca na relação. Simplório acusar de determinismo
tosco a partir da cartela inicial ou recorrer à opção
do livre arbítrio na irresolvível querela filosófica
acerca da natureza das vontades humanas achando que
isso resolve a questão: Tropa de Elite cria um
cenário e o faz progredir como uma contaminação, como
um mecanismo de trocas entre ambientes que, de uma forma
ou outra, implicam ou ao menos forçam certos comportamentos.
Há um sistema e se está enredado de uma forma ou outra.
E isso não serve apenas para os personagens.
Porque a grande operação expressiva que José Padilha
realiza no filme diz respeito ao trabalho com o ponto
de vista, ou, de forma mais elaborada, com a construção
do lugar do espectador. Porque, se a experiência do
espectador se cola à experiência do protagonista-narrador
em sua busca, isso não se dá sem uma negociação com
alguns valores aberrantes, ou que ao menos perspectivem
a relação com o personagem. Não temos diante de nós
um herói positivo – porque, no mínimo, o comportamento
que ele tem nas ações heróicas contamina sua vida pessoal,
destrói sua família e o obriga a viver com remedinhos
para a cabeça – nem um herói problemático, maldito,
como o tipo tão comumente interpretado por Clint Eastwood.
Trata-se de um protagonista ao qual nos colamos pelo
mecanismo de narração mas ao qual não podemos nos identificar
– mesmo com o carisma, mesmo com o costumeiro habeas
corpus dado ao protagonista, aqui levado a limites
extremos – sem realizar raciocínios e juízos morais,
medir moralmente nosso comportamento e o do protagonista.
A distância que o filme nos retira para medir o personagem
é perfeita. Não temos aqui o mediador costumeiro como
protagonista, nosso guia simpático ao submundo para
facilitar nosso acesso (Cidade de Deus, Carandiru,
Cidade dos Homens), mas alguém que está até o
pescoço mergulhado no processo – e com complicações,
necessariamente. Antes de propor qualquer coisa, Tropa
de Elite joga com o espectador, faz a ele uma pergunta:
até que ponto para você esse homem encarna um herói?
Até o ponto em que ele vira o avesso de um? Até o ponto
em que a justiça carregada nas próprias mãos transforma-se
em seu oposto? O jogo de ponto de vista, notável e até
certo ponto comparável com o praticado em Família Soprano
(em
que Tony Soprano é, ao mesmo tempo,
um terrível assassino e um personagem carismático),
assume um salutar, cívico até, papel de transitividade:
sem promover julgamentos, apenas descrevendo os procedimentos
de seus personagens, ele deixa a parte moral exclusivamente
ao espectador. E há de se fazer muito esforço para não
lutar com o que o filme apresenta.
Se o filme todo se conforma expressivamente nas operações
de ponto de vista, seria ao menos necessário que a câmera
tivesse uma maneira de se apropriar do espaço e do tempo
de forma a confirmar e ampliar as opções narrativas.
José Padilha optou por uma câmera instável, imprecisa,
que se colasse nas situações mesmo desajeitada, e que
pela própria falta de controle servisse, um tanto ideologicamente,
como um substrato de real. Mas se de um lado ela faz
um pouco o jogo fácil do verismo dos filmes ditos políticos
em sua ânsia "realista", ela por outro lado
opta por uma excelente montagem que, mais do que transformar
o filme num thriller, instala o filme numa situação
de perturbação dramática e adrenalina não muitas vezes
atingida (pensemos, no ano passado, no belo Os Infiltrados
e no eficiente mais que belo United 93).
O jogo com o gênero é, em termos de mercado, o correlato
da colagem protagonista-espectador na construção do
ponto de vista: a garantia da transitividade, o jogo
com aquele que vê. Porque a adesão ao gênero é aqui
mais do que um simples mecanismo de mercado, ma uma
adequação a um projeto de filme-acontecimento, de estranho
fenômeno catártico no qual a sociedade se reconhece
pelas suas contradições e tenta tatear soluções, ora
pela adesão ensandecida (absurdo olhar para o filme
como a construção positivante de um herói), ora pela
recusa através do asco (a facilidade de termos como
"fascista", etc.). A honestidade intelectual
de Tropa de Elite, transformada em precisão artística,
é simplesmente se colocar diante de um procedimento
de caráter altamente excepcional, cujo funcionamento
cotidiano gera inúmeros problemas filosóficos, legais,
morais, etc., e com uma frontalidade tão inesperada
quanto impactante chamar seu espectador à realidade
colocando a questão nos seguintes termos: a vida do
Rio de Janeiro depende de uma lógica de guerra em pleno
espaço urbano e vida de estado de direito – sabemos
mesmo quão insana é nossa sanidade?
Ruy Gardnier
P.S. Se passamos ao largo de
certos pontos considerados "problemáticos"
do filme, como a representação das pessoas que trabalham
em ONGs, a solução radical do Bope diante dos fãs de
cannabis que estudam na PUC ou de forma geral a forma
como a classe média da Zona Sul carioca é representada
no filme, isso não se deve a uma tentativa de facilitar
o elogio, mas uma doce gentileza que fazemos convidando
o leitor a fugir de chatices que em todo caso ele pode,
caso queira, se fartar de ler em outros lugares.
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