TROPA DE ELITE
José Padilha, Brasil, 2007

Tropa de Elite é um filme sobre uma aprendizagem. Ou o oposto dela, dependendo de como se concebe o termo. Porque é, ao mesmo tempo, uma formatação e uma tomada de "consciência", a obtenção de um certo saber e sua conseqüente aplicação, implicando uma mudança de vida. A narrativa do filme é bastante clara, ancorando o fim do filme como um arremate, uma seta perfeita de A para B, tão escandalosa quanto seca: é preciso de um homem que faça o trabalho, e como esse homem não existe, esse homem precisa ser construído. Uma lógica estrita dessas demanda uma economia de guerra, porque o trabalho é um convívio com a guerra: Rio de Janeiro, Bope, uma equipe treinada com todos os rigores de esquadrão de elite numa guerra. E o homem a ser construído é o comandante desse grupo, o soldado perfeito, aquele que analisa todos os fatores sem que, no entanto, o fator humano (o remorso, a decisão sobre a humilhação ou a vida alheia, a sociabilidade) entre na equação. Afinal, é uma guerra. Só que essa guerra não acontece em território de guerra, mas em terreno civil, superpopulado, dentro duma megalópole brasileira regida pelo estado de direito. E o que acontece quando se coloca um grupo armado com plenos poderes e um comportamento de estado de exceção numa área em que, a princípio, impera o reinado da Lei? O mínimo a dizer de Tropa de Elite é que o filme escancara a insanidade desse estado de coisas, não como parábola ou denúncia, não como legitimação ou apologia, mas simplesmente como quem observa um modus operandi intolerável que, ao mesmo tempo, é o café com leite diário das operações policiais do Rio de Janeiro.

Então, e a aprendizagem? Escola selvagem, tão mais selvagem quanto escondida, invisível: só a conhecemos pela voz em off do Capitão Nascimento, protagonista do filme, que relata seu dilema de desejar sair de seu cargo de comando, mas não sem antes escolher seu sucessor entre dois cadetes aplicados, Neto e Matias. Mas essa narrativa de suspense é, como o percurso dos ensinamentos, apenas transmitida via off, cabendo à câmera apenas o registro desses três personagens principais entre vida pessoal e vida profissional. Mas guerra permite vida pessoal? É o caráter mais selvagem, avassalador da aprendizagem, e Tropa de Elite faz questão de deixar tudo bem claro: o processo é excludente, e não possibilita convívio harmonioso entre uniforme e passeio. Troca-se sem perceber o filho e a esposa pelo hábito de fazer valer a própria voz contra todos, e pelas tremedeiras que surgem como efeito colateral desse comportamento. Abandona-se tudo, amigos, namorada, festinhas, ambiente de faculdade, toda espécie de socialização, de universalização – não exatamente por opção, tampouco por clarividência, mas como simples etapa de um percurso protocolar a ser cumprido, um passo a ser dado como consecução lógica. No filme, tudo funciona como máquina, como resultado inelutável de um processo, em que a inscrição de uma vontade "individual" ocupa parte pouca na relação. Simplório acusar de determinismo tosco a partir da cartela inicial ou recorrer à opção do livre arbítrio na irresolvível querela filosófica acerca da natureza das vontades humanas achando que isso resolve a questão: Tropa de Elite cria um cenário e o faz progredir como uma contaminação, como um mecanismo de trocas entre ambientes que, de uma forma ou outra, implicam ou ao menos forçam certos comportamentos. Há um sistema e se está enredado de uma forma ou outra. E isso não serve apenas para os personagens.

Porque a grande operação expressiva que José Padilha realiza no filme diz respeito ao trabalho com o ponto de vista, ou, de forma mais elaborada, com a construção do lugar do espectador. Porque, se a experiência do espectador se cola à experiência do protagonista-narrador em sua busca, isso não se dá sem uma negociação com alguns valores aberrantes, ou que ao menos perspectivem a relação com o personagem. Não temos diante de nós um herói positivo – porque, no mínimo, o comportamento que ele tem nas ações heróicas contamina sua vida pessoal, destrói sua família e o obriga a viver com remedinhos para a cabeça – nem um herói problemático, maldito, como o tipo tão comumente interpretado por Clint Eastwood. Trata-se de um protagonista ao qual nos colamos pelo mecanismo de narração mas ao qual não podemos nos identificar – mesmo com o carisma, mesmo com o costumeiro habeas corpus dado ao protagonista, aqui levado a limites extremos – sem realizar raciocínios e juízos morais, medir moralmente nosso comportamento e o do protagonista. A distância que o filme nos retira para medir o personagem é perfeita. Não temos aqui o mediador costumeiro como protagonista, nosso guia simpático ao submundo para facilitar nosso acesso (Cidade de Deus, Carandiru, Cidade dos Homens), mas alguém que está até o pescoço mergulhado no processo – e com complicações, necessariamente. Antes de propor qualquer coisa, Tropa de Elite joga com o espectador, faz a ele uma pergunta: até que ponto para você esse homem encarna um herói? Até o ponto em que ele vira o avesso de um? Até o ponto em que a justiça carregada nas próprias mãos transforma-se em seu oposto? O jogo de ponto de vista, notável e até certo ponto comparável com o praticado em Família Soprano (em que Tony Soprano é, ao mesmo tempo, um terrível assassino e um personagem carismático), assume um salutar, cívico até, papel de transitividade: sem promover julgamentos, apenas descrevendo os procedimentos de seus personagens, ele deixa a parte moral exclusivamente ao espectador. E há de se fazer muito esforço para não lutar com o que o filme apresenta.

Se o filme todo se conforma expressivamente nas operações de ponto de vista, seria ao menos necessário que a câmera tivesse uma maneira de se apropriar do espaço e do tempo de forma a confirmar e ampliar as opções narrativas. José Padilha optou por uma câmera instável, imprecisa, que se colasse nas situações mesmo desajeitada, e que pela própria falta de controle servisse, um tanto ideologicamente, como um substrato de real. Mas se de um lado ela faz um pouco o jogo fácil do verismo dos filmes ditos políticos em sua ânsia "realista", ela por outro lado opta por uma excelente montagem que, mais do que transformar o filme num thriller, instala o filme numa situação de perturbação dramática e adrenalina não muitas vezes atingida (pensemos, no ano passado, no belo Os Infiltrados e no eficiente mais que belo United 93). O jogo com o gênero é, em termos de mercado, o correlato da colagem protagonista-espectador na construção do ponto de vista: a garantia da transitividade, o jogo com aquele que vê. Porque a adesão ao gênero é aqui mais do que um simples mecanismo de mercado, ma uma adequação a um projeto de filme-acontecimento, de estranho fenômeno catártico no qual a sociedade se reconhece pelas suas contradições e tenta tatear soluções, ora pela adesão ensandecida (absurdo olhar para o filme como a construção positivante de um herói), ora pela recusa através do asco (a facilidade de termos como "fascista", etc.). A honestidade intelectual de Tropa de Elite, transformada em precisão artística, é simplesmente se colocar diante de um procedimento de caráter altamente excepcional, cujo funcionamento cotidiano gera inúmeros problemas filosóficos, legais, morais, etc., e com uma frontalidade tão inesperada quanto impactante chamar seu espectador à realidade colocando a questão nos seguintes termos: a vida do Rio de Janeiro depende de uma lógica de guerra em pleno espaço urbano e vida de estado de direito – sabemos mesmo quão insana é nossa sanidade?


Ruy Gardnier

P.S. Se passamos ao largo de certos pontos considerados "problemáticos" do filme, como a representação das pessoas que trabalham em ONGs, a solução radical do Bope diante dos fãs de cannabis que estudam na PUC ou de forma geral a forma como a classe média da Zona Sul carioca é representada no filme, isso não se deve a uma tentativa de facilitar o elogio, mas uma doce gentileza que fazemos convidando o leitor a fugir de chatices que em todo caso ele pode, caso queira, se fartar de ler em outros lugares.