É relativamente fácil
apontar no cinema de Eduardo Coutinho uma tendência
ao emolduramento da fala. Habitualmente, seus filmes
são centrados em
dois mecanismos, a saber, uma regra geral e uma redução
desta regra à dimensão de armadilha: de uma mecânica
de dimensionamento geográfico, a operação do filme
sempre se dobra para dar lugar a um objetivo primordial
de captura de discursos singulares. É assim, por exemplo,
com o princípio geral de Babilônia 2000: subir
o morro para perguntar sobre a virada do milênio se
torna pretexto para afirmar a(s) singularidade(s) dos
personagens tomados a partir do microcosmo desenhado
pela idéia-guia.
Igualmente, o um-prédio-276-conjugados-500-moradores-37-depoimentos de Edifício
Master se curva à rede de polifonia criada pelas vozes comprimidas pelo
sistema de coleta de Coutinho. Acontecerá sempre, e sempre de maneira peculiar,
a cada filme. A partir das histórias de transcendência religiosa de Santo
Forte, singularizam-se pessoas dotadas de religiosidade; a partir de
histórias de vida operária de Peões, singularizam-se falantes dotados
de personalidade própria apesar da suposta categoria a que pertencem.
Ou seja, de certa forma, há sempre uma presença da estrutura como elemento
forte do filme. Por mais que a estrutura seja algo de que se fuja, da qual
se promova um afastamento rumo à “desobediência à estrutura”. Em um momento
ou outro, entretanto, essa estrutura soará mais pronunciada. O caso em
que isso é mais patente é justamente aquele em que ela é de certa forma
invisível, O Fim e o Princípio. Nele, princípio (regra) e fim (finalidade)
se confundem em um jogo de palavras voltado para emoldurar os discursos
(sobretudo aqueles sobre o fim, a morte, e sobre o fim... da vida) originários
das conversas oriundas da lupa uma-cidadezinha-do-Nordeste-e-entrevistas-sem-pesquisa-prévia.
Jogo de Cena é (mais) um filme singular de Coutinho.
Mas traz uma singularidade absolutamente especial: desta
vez ele traz para o – não resistamos ao trocadilho –
centro do palco aquilo que Coutinho sempre escamoteou,
aquilo que sempre foi dado como subjacente, exatamente
a estrutura. No filme, se há um personagem digno de
nota – por mais que o habitual garimpo dramatúrgico
do diretor traga para as luzes narrativas efetivamente
especiais –, esse personagem é uma abstração de narratividade,
uma contraposição metalingüística entre aquilo que é
contado e a situação em que é contado.
Os personagens de Coutinho – e essa associação não vem apenas porque eles
estão “realisticamente” em seus filmes, mas porque são sempre efetivamente
construídos pelo diretor – estão constantemente preocupados com a estética
de suas narrações. Daí, em certo sentido, Jogo de Cena ser o filme
dos filmes de Coutinho. Jogo de Cena é sobre todos os seus filmes.
Assim, o filme vai desenhando e apresentando diante dos olhos sua própria
estrutura. Mais que isso, esse desenho ocupa todos os espaços da metragem.
Mas em vez de apresentar as linhas de uma planta baixa – como se fosse um making
of –, ele mostra o ar entre as paredes, a pura relação entre os elementos.
E é nesses elementos que reside a “regra do jogo” que Coutinho sempre estabelece.
A regra, então, como já notoriamente apresentada: vemos mulheres “comuns” a
contarem suas histórias; e vemos também atrizes, a reproduzirem essas narrações.
Algumas dessas atrizes são famosas, rostos conhecidos do público brasileiro;
algumas outras são absolutamente desconhecidas. E o “ar entre as paredes” está justamente
na indistinção entre as operações de exposição. Porque é de exposição que
se trata. Quando um senhor canta “My Way” em Edifício Master, ele
está se dando esteticamente tanto quanto a atriz Andréia Beltrão. Alguma
diferença microscópica possível – sim, porque macroscopicamente, as diferenças
são óbvias. Uma atriz “profissional” terá uma relação com a técnica de interpretação
diferente de uma pessoa de outra profissão – estará na ordem da reflexividade
(o quanto de metalinguagem estará contida na atitude narrativa, o quanto
se deposita um investimento de regularidade no que se fala).
Mas o que importa aqui nem são tanto as técnicas, é a redução ao sistema. É o
choque entre as narrações, a impossibilidade de distinção entre os corpos
narrativos, o que chama mais atenção. Nem tanto pelo falseamento, por uma
brincadeira de Coutinho para nos enganar impedindo-nos de descobrir quem é atriz
e quem não é. Isso até acontece. Mas, mais radical e profundo que isso, o
que ocorre ali é a constatação de que, de perto, todas as narrações são normais,
ou seja, possuem normas operacionais, retóricas, elementos típicos.
Coutinho mesmo entra no jogo. De repente, pegamo-lo trabalhando como... ator.
Em determinado momento de uma história que sabemos ser narrada por uma atriz,
vemo-lo fazer a mesma pergunta feita na entrevista “real”. Vemo-lo, então,
fazer-se objeto do principal objeto de seus filmes, a pura relação. Ele precisa
dar a deixa, precisa fazer com que a situação de fala seja ela mesma uma
situação, ou seja, tenha seus elementos constituintes presentes.
Não à toa, por exemplo, o retorno da personagem real – a reumatologista separada
da filha por sua severidade e ela também filha de um pai severo – para cantar
soa tão emblemático. Colocado no final da montagem, o momento nem por isso é um
puro clímax emocional – é sabido, por exemplo, que Coutinho retirou o cantor
de “My Way” do final de Master para não produzir um efeito emocional
dessa monta, embora a ordem cronológica dos depoimentos o determinasse. Em
vez disso, a cena é mais uma “denúncia” do investimento dos, digamos, “atores
sociais” na narratividade. O uso do termo “ator" aqui é obviamente central.
A metáfora do teatro tem sido questionada há algum tempo. Um dos motivos é uma
suposta ingenuidade na separação entre “ação sincera” e “ação dotada de estratégia”.
No que diz respeito ao que acontece no cinema de Coutinho e particularmente
na maneira como ele se aproxima de seus entrevistados (com a câmera e com
a fala), faz pouca diferença se dizer que não há atores ou que só existem
atores. O que importa é o reconhecimento da pura ação das exibições e seus
resultados na relação. As pessoas que falam com ele fazem com que suas falas
fiquem, com que elas se tornem entidades constituintes de um fenômeno relacional,
elas criam uma, digamos, “reputação estética”.
E é nesse sentido que a cena do retorno para cantar – assim como o momento
em que, depois de uma apresentação verossímil ouvimos um “Foi assim que ela
contou” ou como na história pessoal de Andréia Beltrão – se torna um momento
estruturante: ali estão todos os personagens de Coutinho desde sempre. Ali
está uma espécie de DNA da “apresentação de si”. A personagem – que no filme
tem seu contraponto “profissional” em Marília Pêra – diz que queria cantar
porque não queria que sua história ficasse registrada como trágica. Ela se
preocupa, então, com sua biografia, com a síntese. A fala, ali, deixa de
ser gerúndio e passa a ser infinitivo. De “falando” vira “falar”. De ação
em ação vira ação solidificada.
Jogo de Cena, então, é um sistema de sistematização.
É o grande filme de Coutinho sobre ele mesmo. Claro,
há uma ótima discussão possível sobre a arte cênica
e outra discussão sobre a mulher. Mas ambas são parte
de uma outra, maior e mais poderosa que elas, que está
contida na montagem do filme: quando edita um trecho
e corta para colocar a fala de outra mulher dizendo
a mesma coisa ou quando decide colocar mais de uma história
envolvendo sonhos ou mais de uma envolvendo homens que
partem ou perdas de filhos, Coutinho se revela totalmente,
desmonta seu próprio jogo de cena: ele se reduz e a
todos os seus personagens a uma mesma substância. A
singularidade desestruturante de todos os seus filmes
dá uma volta sobre si mesma sem se renegar – não se
pode dizer de forma nenhuma que o filme seja um desmentido
da singularização, até porque ele mesmo traz narrativas
singulares: essa desestruturação, por meio da presentificação
da estrutura mostra afinal o que está em jogo no cinema
coutiniano, o momento do parto da palavra, em que ela
deixa o recôndito da gestação mental e ganha o mundo.
Não à toa, talvez, o chorar seja tão relevante no filme. A incapacidade de
Andréia Beltrão e Fernanda Torres para segurar o choro diz muito sobre isso.
Afinal, ao nascer, o bebê chora. É que, ali, Coutinho centra seu olhar no
processo de geração da palavra, algo invisível até então em seu cinema, porque
funcionava com acessório das belas crianças que eram as histórias que ouvia.
O filme, aliás povoado de maternidades – mães que perdem filhos, que se afastam
de filhas, que ficam grávidas, que estabelecem relações maternais – intensifica
o olhar sobre o fenômeno da narratividade a ponto de emoldurar não mais o
conteúdo das palavras. E nem a forma. Mas sua natividade. Sua atividade.
Alexandre Werneck
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