Logo na primeira seqüência
de Hairspray, aquela que já nos introduz ao primeiro número musical
do filme, vemos a gordinha Tracy Turnblad cantar bom
dia à cidade em que vive, e a acompanhamos da cama
até o banheiro (onde se apronta com maquiagem e muito
laquê), e depois no caminho pela rua até a escola,
por onde segue nos apresentando tudo aquilo que mais
lhe encanta na Baltimore de 1962. Longe os
símbolos da vida pacata e simplória que sua própria aparência parece informar,
o que a gordinha nos aponta são bêbados caídos em bares, peruas fumando compulsivamente,
ratazanas enormes comendo migalhas na calçada em plena luz do
dia e, lá no meio, a aparição especial de John Waters. Sua figura não é, evidentemente,
uma assinatura: Waters não parece ter nenhum problema em viver hoje como a sombra
de uma postura marginal que se tornou insustentável, e da
qual ele não é mais que a memória viva e devidamente domada.
Uma refilmagem de seu Hairspray original,
de 1988, realizada nestes anos 2007 por um diretor que não tem no
currículo nenhum filme acima da linha do medíocre, não poderia se utilizar deste
ex-ícone underground como mais que isso mesmo, uma imagem que guarda apenas alguma
semelhança com o objeto original – que até pode contar com a presença deste objeto
original, mas que tem consciência de que nunca o será,
verdadeiramente. Não à toa, a pequena aparição de Waters é no papel do exibicionista
do bairro, que se veste num sobretudo pesado só para, quando em frente a uma
mulher, abri-lo e revelar suas partes íntimas à senhora assustada. De tudo aquilo
de que Waters pôde preencher o cinema, ao longo de sua carreira, o que Adam Shankman
quer (e precisa) para seu próprio filme é esta disposição
ao descaramento, à falta de vergonha – uma disposição, enfim, ao exibicionismo.
Esta é uma sensação que se espalha por todo Hairspray, e que se casa muito bem com
o
musical peito-aberto que Shankman quer encenar aqui. Há um franco espírito de
"façamos
tudo pela platéia", e ele não acompanha apenas os números de canto e
dança (aí bastante fundados no espetáculo da Broadway adaptado do filme de Waters,
quatro anos atrás, e na experiência de Shankman como coreógrafo). É algo na própria
formação do elenco, na maneira como cada ator parece entregue ao despudor. O
mais obviamente dedicado a isto é John Travolta, mas se a idéia de um homem interpretando
a mãe igualmente gordinha de Tracy é mantida (no filme de 1988, o travesti Divine,
nos palcos o ator gay Harvey Fierstein), o
tom é completamente outro. Seu desafio auto-imposto – e largamente vencido – não é o
de transformar a figura do macho hollywoodiano ideal numa senhora de seios fartos,
mas o de conseguir interpretar uma mãe devota e uma esposa apaixonada. O humor
já está garantido por sua caracterização em látex e batom: o barato parece ser
conseguir trocar um olhar com Christopher Walken (seu marido na trama) e jogar,
no limite da inverossimilhança, com a possibilidade de convencer o espectador
que nem toda a maquiagem e canastrice esconde que há um amor verdadeiro ali,
entre eles dois.
Mas é no quociente político de Hairspray que se revela verdadeiramente este impulso desavergonhado.
O mote original da segregação racial é levado a sério por Shankman, sem nunca
parecer solene, muito pelo contrário. A ambientação da trama em 1962 se transforma
num curioso passe-livre para uma série de
considerações sobre a cultura negra e sua relação com a cultura branca que, encenada
nos dias de hoje, certamente sofreria algum tipo de patrulhamento. É com algum
prazer que os personagens repetem, à exaustão, a palavra "negro", termo
de uso
impensável na sociedade midiática americana atual. Foi preciso arranjar um filme
de época para que se pudesse escapar do politicamente correto "afro-americano",
sobretudo porque Shankman sabe que essa denominação que separa as pessoas por
sua ascendência ignora o fato de que, para a cultura dos
Estados Unidos, a importância dos negros é a de um americano-americano, construtores
legítimos das bases de tudo isso em que o filme se funda.
Assim, mesmo quando disfarça que está encenando apenas um pequeno e localizado
conto moral, Hairspray vai forjar uma
série de imagens "históricas", alguns atrevimentos narrativos
que só são possíveis a quem se dispôs, desde o começo, a mostrar tudo o que tivesse
a chance. Não são simples comentários políticos, mas a própria
materialização destes marcos sociais. Quando a gordinha branca é mandada pela
primeira vez para o castigo, na escola, chega à sala onde estão todos os alunos
punidos
e lá encontra apenas negros. Lá, com um aparelho de som ligado e
uma animação que faz parecer que estão num baile qualquer, todos eles
dançam, ensaiam novos passos, curtem músicas recém-lançadas, como se ali fosse
um pequeno laboratório pulsante da cultura negra, ao qual os brancos (como Tracy
e seus amigos) precisam recorrer rápido se quiserem se contaminar do que
há de melhor no cenário artístico do país. Mais à frente, no meio do
estardalhaço que se faz para o grande número musical final, quando todos os personagens
se reúnem no The Corny Collins Show, acontece um beijo interracial na frente
das câmeras do falso programa de dança. Nada de
mais, não fosse aquele o primeiro beijo interracial da história da televisão
americana – mas como o negócio é exibir, é jogar com o espectador, o apresentador
do programa justifica o acontecimento histórico com um simples "ah, eu adoro
a tevê ao vivo!".
A constante tentativa de olhar com leveza para toda a
seriedade de que está naturalmente investido é o que torna estas colocações todas
de Hairspray tão pouco sisudas e, ao
mesmo tempo, tão passíveis de seus exageros e diversões. Num outro filme qualquer,
talvez a encarnação de Tracy Turnblad como uma espécie de Shrek de saias pudesse
parecer despropositada, mas é a gordinha incansável e sempre risonha que congrega
não só os negros, mas também obesos, esquisitos, e todo o
tipo de gente que não se encaixe no padrão branco-magro-e-lindo que domina a
cena americana da época. Por vias tortas, Hairspray acaba
defendendo o mesmo partido que John Waters, por tanto tempo, se dedicou a filmar.
Mas os outsiders de Adam
Shankman não se reúnem apenas para marcar ainda mais sua diferença do resto das
pessoas. O mandamento ainda é o do despudor, o de mostrar-se ao mundo
(belíssima a seqüência em que Tracy consegue retirar sua mãe de casa, depois
de
anos escondida por não apresentar mais o manequim 38 da juventude). A ele, ao
mundo, este grupo de jovens cheio de jogo de cintura não pode oferecer mais que
um irresistível desejo de felicidade. E tanto melhor que Shankman não deixe este
desejo ser espalhado aos quatro cantos pelos números musicais que irrompem no
meio da rua sem que se tenha conquistado o direito de olhar a vida com um pouco
de (bom) cinismo.
Rodrigo de Oliveira
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