Assim como o recente Zodíaco,
de David Fincher, Os
Donos da Noite nos coloca diante de uma interrogação
sobre o estilo, o ponto de vista, a
forma, talvez sobre um lugar enigmático da mise en scène na Hollywood atual. Ambos parecem filmes disfuncionais
se comparados ao grosso do que é feito hoje em termos
de ação, thriller policial e gêneros similares. Esse
ar disfuncional, contudo, rapidamente se revela um traçado
preciso, uma forma de essencialismo.
Os Donos da Noite tem um bom roteiro, uma linha narrativa coerente,
um drama forte, mas o grande investimento da obra está
na abordagem de um olhar sobre o conjunto material e
imaterial do filme, e também sobre seus detalhes materiais
e imateriais. Está na mise en scène. O aguardado novo filme
de James Gray é uma usina
de detalhes, mas não um campo de batalha para puras
questões formais. O enredo do filme se desenvolve inteiramente,
e muitíssimo bem, num terreno formal ultra pensado e
concebido, quase teórico, porém sem abdicar de ser emotivo
e visceral.
Em Zodíaco e
Os Donos da Noite, uma certa linha da imagem foi ultrapassada ou mantida
à distância. Estamos muito abaixo ou muito acima de
uma operação de esteta. Ou na fronteira, difícil estabelecer.
Percebemos que o essencial do filme se acha na construção,
mas esta se esquiva, não fica em realce. É um tipo ambíguo
de invisibilidade da direção, onde a mise en scène é tudo e simultaneamente nada. Perto de qualquer
outro filme de Fincher (que se notabilizou
pelos excessos), Zodíaco chega a parecer um cine-jornal. E, no entanto, não se pode
dizer que o diretor abriu mão do estilo, muito pelo
contrário. Reconhecemos que há um filtro estético e
que ele está longe de ser insignificante, mas não sabemos
ao certo em que lugar ele nos instala. Frontalidade,
secura? Ou maneirismo ainda maior que trabalha por vias
alternativas? Os Donos da Noite lança questões semelhantes: James Gray está avançado demais no código, esgarçando o cinema de
gênero como só uma série B saberia fazer, ou recuando
estrategicamente, concentrando-se nos interstícios,
focando as nuances, o drama de fundo do cinema policial
e de máfia. Dá para se ater a essa segunda hipótese,
das nuances e dos interstícios, por boa parte do filme...
Mas o que dizer então quando explodem as cenas de confronto
em tours de force magnificamente orquestrados?
O cinema americano sempre teve essa reserva de penumbra
para os procedimentos estéticos que não se colam nem
a modismos nem à reprodução fiel de um sistema formal
constituído. Os
Donos da Noite traz a consciência de pertencer a
uma história dos estilos e de integrar um imaginário
que atravessa décadas. É um filme policial estilo anos
70 que se passa nos anos 80 e mostra a guerra entre
a polícia e a máfia como nos anos 30. E com estrutura
dramática shakespeariana. Partindo disso, vários curtos-circuitos
são possíveis. Gray não adere
ao vintage, e sua diegese se constrói sem usar os signos de maneira cool
e sem recorrer às referências fáceis que geralmente
são mobilizadas para estabelecer o clima da época em
que a história se passa. Os Donos da Noite é ambientado no Brooklyn
em 1988. Bobby (Joaquin
Phoenix) é o gerente da mega boate El
Caribe, cujos donos são mafiosos russos. Devido ao sucesso
do estabelecimento, Bobby é convidado a administrar uma nova filial, talvez em
Manhattan. Ele é o futuro dono da noite nova-iorquina, como
fala entusiasmado para seu amigo Jumbo.
Mas seu universo entra em colapso quando a mesma máfia
russa dona do El Caribe declara guerra à polícia da qual fazem
parte seu pai e seu irmão, interpretados por Robert
Duvall e Mark Wahlberg. Como em The Yards, Gray demonstra uma grande
sabedoria na escolha do elenco, reunindo atores novos
e antigos.
O início de Os
Donos da Noite já é extraordinário. Primeiro uma
sucessão de fotos documentais em preto-e-branco, mostrando
batidas policiais, locais com drogas, cenas de crimes
etc. Depois o filme vai para o El
Caribe. Lá, Bobby encontra
Amada (Eva Mendes) se masturbando num sofá, com“Heart of Glass” da Blondie tocando ao fundo.
Eles estão prestes a transar, mas Jumbo
bate na porta e interrompe o namoro. Bobby
precisa ir no andar térreo resolver uma confusão provocada
por duas mulheres dançando semi-nuas em cima do balcão do bar e alguns bêbados brigando.
Gray faz um contraste entre
essa situação caótica e a confraternização bem comportada
dos policiais, no galpão ao lado de uma igreja (cuja
arquitetura remete ao El Caribe,
num espelhamento em certa medida até clichê entre o
templo religioso e a boate moderna). A conversão de
Bobby a policial já está indicada
nessa passagem de espaços na seqüência inicial do filme.
Trata-se menos de uma escolha moral do que de uma transmissão
familiar inelutável – o assustador desse processo é
que ele envolve a perda de uma "liberdade"
que o irmão no fundo invejava em Bobby. Se por
um lado há uma influência setentista
forte, por outro não estamos no terreno da corrupção
policial como em Serpico (Sidney Lumet) ou Operação França (William Friedkin). O filme
se concentra menos na corporação do que na família.
Alguém pode lembrar, e com razão, da voga de ficções
familiares desta década, de Sopranos ao Cronenberg
recente, mas o registro aqui é totalmente outro.
A ação tem um valor todo próprio em Os
Donos da Noite. Para um filme que não é o que se
pode chamar de “agitado”, e que na verdade deve provocar
o tédio de muita gente, é no mínimo curioso constatar
que ele possui: 1) a melhor cena de perseguição de carro
dos últimos anos (podem falar da – realmente delirante
– seqüência final de À Prova de Morte do Tarantino
à vontade, porque garanto que Gray
foi além), 2) uma cena de emboscada extremamente tensa
e imersiva e 3) um clímax
arrebatador, daqueles de ficar impregnado na memória,
pedindo uma revisão do filme. Na perseguição, quase
todos os planos são feitos de dentro do carro de Bobby.
Chove torrencialmente, os mafiosos cercam seu carro,
mandam tiros, o pai dele é morto logo à frente, o carro
pega uma contramão e quase bate em dezenas de outros:
acontece de tudo e a seqüência é filmada entre a confusão
completa (realmente estamos tão atordoados com a perseguição
quanto o personagem) e a suprema mestria na construção
dos pontos de vista e no uso do som. O ponto de vista,
aliás, é uma questão estética crucial no filme. Quando
Bobby vai ao encontro dos
mafiosos com uma escuta escondida no isqueiro, Gray
vai progressivamente mergulhando na construção subjetiva,
a cena se pautando cada vez mais nos sons e nas visões
de Bobby. No encontro anterior,
com o capanga de Vadim (vilão
dos vilões), sabíamos de antemão que Bobby
se entregaria por um detalhe: ele acende seus cigarros
com fósforo, mas a escuta está num isqueiro. Uma vez
descoberto por Vadim, Bobby solta a senha mágica, já combinada anteriormente, e
a polícia chega. No meio do tiroteio, uma bala zune
no ouvido de Bobby e o mundo fica abafado e irreal. Uma troca de tiros
monumental, uma verdadeira guerra, em questão de segundos
se torna “leve como uma pena”. No clímax, depois que
Bobby entra à caça de Vadim
no meio do mato, ao qual foi atiçado fogo, ocorre uma
nova cena de total imersão, reforçada pela fumaça que
toma conta da imagem e, novamente, pelo peculiar uso
do som. A cena de Bobby retornando
do meio da fumaça tem uma dimensão espiritual que não
estamos acostumados a ver no cinema de gênero contemporâneo.
Momentos de êxtase, portanto, não faltam. Acontece que
James Gray rejeita operações confortáveis na sua mise en scène – nem o conforto do bom artesão lhe interessa. Suas
exigências, assim, tornam-se ainda maiores; seus deleites
visuais, mais recônditos. À exceção de um ou outro slow motion (há um de Eva Mendes fumando que é sensacional),
Gray rejeita também as facilidades
do icônico, instalando-se num universo de enquadramentos
regidos por dinâmicas mais complexas, como a claustrofobia
de alguns planos. A suprema arte de Gray se deixa ver nos corpos dos atores, nos ambientes, nos
gestos de aproximação ou distanciamento entre os personagens
(como em toda a impressionante relação de Phoenix
com Wahlberg). E nas sombras inquietantes, vez ou outra vampirescas, desse filme noturno e fascinante pelo qual James
Gray nos fez aguardar durante
não menos que seis anos. Tudo bem: deve ser o tempo
de amadurecimento do seu talento e da sua exigência.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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