VIAGEM A DARJEELING
Wes Anderson, Darjeeling Ltd., EUA, 2007

Um homem surge apressado em um táxi, pelas ruas de uma cidade indiana, imerso no tráfego caótico tradicionalmente associado a elas. É Bill Murray, com sua tradicional cara de... Bill Murray; com seus notórios trejeitos clown de... Bill Murray; com seu padrão ar entre blasé e crítico de... Bill Murray. O único traço que talvez faça destoar do estilo habitual do ator-personagem é que, ali, perplexo e impotente diante do atraso que está impresso em seu rosto e na velocidade do veículo, ele apresenta um descontrole sobre o mundo que habitualmente seus personagens não apresentam. Ao chegar à estação de trem, ele corre rumo à plataforma, vendo a composição que se afasta. Dispara e o vemos a correr em um plano de perfil, cravado seu rosto no extremo esquerdo, o olhar fixado no direito, a ver algo que está fora, justamente o vagão que parte. Súbito, alguém o alcança. E começa a ultrapassá-lo. E o faz lentamente, ao som de uma canção alegre.

É Adrien Brody, de
terno, bolsas de viagem nas mãos, a correr, também para alcançar o trem. Dali, veremos um plano belíssimo: o homem que corre, em câmera lenta – e como pode ser bonito uma pessoa a correr em câmera lenta numa tela de cinema! –, de perfil, como de perfil também se o final do expresso. Cada movimento é infinitamente real, porque apenas movimento, mas infinitamente fictício, porque soa coreografado, espetacular, esquemático, observado com microscópio. Ele alcançará o trem, em triunfo. Depois, virará, olhará para o “concorrente” parado na estação e lançará um olhar ambíguo, um misto de sensação de vitória e derrota.

Parece uma private joke de
elenco: presente em todos os filmes de Wes Anderson e protagonista de sua última obra, A Vida Marinha com Steve Zissou, Bill Murray não terá, salvo por outra pequena aparição, lugar neste filme. Ator badalado em Hollywood e raramente associado à comédia, Brody parece, na cena, tomar o seu lugar. Parece um momento em que é saudada sua entrada na “trupe” de Anderson, que habitualmente coloca em papéis-chave um grupo habitual (1): Owen Wilson e Jason Schwartzman, os outros dois irmãos protagonistas de Darjeeling, são centrais em outros de seus trabalhos. Igualmente Angélica Huston, assim como Murray.

Mas mais forte do que o riso de “vitória” de Brody talvez seja a dimensão de desconforto do mesmo ato. Ora, Murray, em Zissou, fazia o papel do pai, que é habitualmente o centro das atenções da obra de Anderson. Também assumiu uma dimensão paterna em Rushmore, e algo muito semelhante a um marido-pai em Os Excêntricos Tenenbaums. Aqui, em Viagem a Darjeeling, nãopai. Ele está morto e sepultado. Há pouco. O que resta dele é uma lembrança, um fantasma, um assunto, que guiará a viagem dos irmãos rumo à... mãe.

De
certa forma, então, Darjeeling é a versão de Anderson para Totem e Tabu, o mito criado por Freud para dar conta do nascimento da civilização tanto quanto do nascimento do sujeito. Aqui também os filhos matam o pai (não literalmente, claro) e devoram os seus restos (igualmente de maneira metafórica, claro, embora, como mostrarei, esse devorar será redesenhado). Na forma não apenas das malas e dos pertencesou bens, que uma espécie de herança está sempre em questão, por mais bem sucedidos que pareçam ser os irmãosque cada um mantém junto a si, mas também na forma da disputa por memórias. Não à toa, Peter, o irmão vivido justamente por Brody, é aquele que reivindica a posição de favorito do pai, consolidando a piada da seqüência de abertura.

Igualmente não por acaso parece ser a opção pela inversão de plano que se dá ainda na primeira seqüência: enquanto Murray e Brody disputam o lugar no trem na primeira seqüência, o movimento é da esquerda para a direita, um eixo tradicionalmente, ocidentalmente (e não parece ser de todo desimportante usar este termo aqui), associado à lógica do avanço: escrevemos da esquerda para a direita, logo associamos esse sentido a idas. O contrário, em geral, ao sentido contrário, à volta. Não deixa de ser interessante, então, que, ao se livrar do oponente, Peter seja visto correndo da direita para a esquerda, digamos, no sentido do contrário, “rumo ao passado”. Racionalmente, sabemos que há uma imposição prática ali para a filmagem: é porque é o lado imposto pela plataforma e pelo sentido em que se desloca o trem. Mas ainda assim fica a tentação desse “a calhar” de sentido (que depois será revisitado e revisto quando os irmãos repetirem a perseguição ao trem).

Pois bem, em quase toda a metragem de Viagem a Darjeeling, veremos uma operação estética repetida por toda a obra de Anderson e que é determinante na seqüência descrita mais acima: sua filmagem é guiada pela ortogonalidade. Tudo que está diante dos olhos é apresentado ou no plano da câmera ou voltado 90º para ele. Nãoquase diagonais em seu mundo – a exceção são alguns momentos em que ou o trem ou os personagens se afastam da câmera em um desvio, tomando “outra direção”, assim como a trama, o que não deixa de ter seu significado. se havia visto o uso desse recurso, por exemplo, em Zissou, sobretudo nos momentos em que ele apresenta revelado o esqueleto da navegação como cenário, como corte transversal de perfil, cada cômodo como um ambiente a ser explorado pela câmera. Mas o que chama a atenção aqui é esse olhar totalizador. Ele sempre se aproxima dos objetos como se eles tivessem apenas duas dimensões, ou como se para conquistar a terceira dimensão eles tivessem que ou se mover para o fundo ou usar a quarta, o tempo.

A
disputa por um lugar no trem e o uso dessa “regra dos 90º” – segundo a qual veremos, por exemplo, muitos planos de “rosto olhando para a câmera”, embora eles não olhem para o espectador – apontam para uma operação central de Anderson: a montagem de um universo de regras internas, ligado ao plano do realismo apenas por um conjunto de referências, mas consideravelmente autônomo em sua lógica, feita de construções sobretudo estéticas.

E
isso fica ainda mais claro quando finalmente se dá o encontro dos três irmãos: Francis, rosto desfigurado e coberto de ataduras, propõe/impõe aos dois outros uma “viagem iniciática”. Mas antes de tudo o que ele propõe é um jogo, um mergulho em um conjunto artificial de regras de ação. Demarcada pela resposta a um estranhoVocês poderiam concordar com isso [essas regras]?”, a aventura do filme é antes de tudo um mergulho de figuras de pura dramaturgia em um sistema de puro mise-en-scène.

Do
encontro entre eles, o que se verá é uma espécie de discussão de relação. Clínica, quase metodológica, quase como se Francis fosse o alter ego de Anderson, dando a seus dois companheiros de viagem, em cartões plastificados, os passos de sua jornada rumo “à luz”, à “espiritualidade”. A iluminação alaranjada e dourada, quente, que marca quase tudo no filme – e que se posiciona em oposição ao cinza azulado, frio, da filmagem de Paris no curta-metragem que precede à apresentação do longa, construído o “cenário anterior” à aventura – ajudará a compor esse jogo entre os dois elementos mais centrais do filme, posicionados ambos em uma antítese, a ascese espiritual e o mergulho no sofrimento. Igualmente, ouviremos na trilha sonora alguns rocks que feições juvenis e nostálgicas – o tema mais apresentado, This Time Tomorrow, com o The Kinks, não deixará de trazer uma ambiance nostálgica e, ao mesmo tempo, iniciática, até pela certa cara de Beatles que muitas bandas dos 60/70 apresentam. Massobretudo muita músicahindu”. Ouvidos treinados ajudarão a fazer reconhecer, entretanto, que mais do que música indiana, o que se ouve é música de cinema indiano, música de filmes, sobretudo obras musicais/cinematográficas do mestre Satyajit Ray. É pelo plano da apreensão estética de sua lousa que Anderson cria seu mundo.

Assim, quando Francis, totalmente clichê, diz que o templo que eles visitarão é “um dos lugares mais espirituais do mundo”, ele não está senão jogando “Banco Imobiliário”, dizendo aos irmãos que, em sua imaginação de puro personagem, um ritual é condição necessária e suficiente para um objetivo: para ele, é possível alcançar a graça e a sublimação apenas se seguindo um manual de ações, indo-se a um lugarespiritual”, promovendo umreencontro”, “conversando” com os irmãos.

Eles três, aliás, são padrões: Francis sofreu um acidente e viveu uma experiência de morte, o que o, digamos, sensibilizou para a “finitude da vida”; Peter é o homem cuja mulher é uma presença absoluta e que reluta em ser um homem modelo ao lado dela; Jack é o homem devorado por uma mulher poderosa e que não consegue se livrar dela, embora tenha considerável sucesso com as mulheres. Os três tentam, a pedido de Francis, reconstituir a relação de família, abalada pelo passado, e colocada em stand by desde o enterro do pai, um ano antes. Nenhum dos três quer estar ali. Mas todos têm que estar. Por que?

Porque, curiosamente, todo artificialismo de Anderson não cria personagens planos. Pelo contrário. É justamente porque faz seus personagens tão singulares em termos, digamos, literários, é que sua construção é tão verossímil. O termobizarro” é constantemente associado a sua fauna. E recheados de idiossincrasias serão mesmo os três. E a mãe. E o pai era. E as mulheres são. E todos somos.

Ali, então, todos têm que seguir a viagem por duas razões, ambas de mesmo peso: 1) a regra do filme assim impõe; 2) a regra do laço familiar assim impõe.

Paira
em todo cinema de Anderson uma lógica a respeito da família. É aquela demarcada pela fala-chave de Tenenbaums: “Família não é uma palavra; é uma sentence”. O uso do termo aqui em inglês é claro: sentence quererá dizer tantofrasequantosentença”. Estamos condenados à família. E, ao mesmo tempo, uma família é uma sintaxe. E o centro do universo cinematográfico de Anderson é essa dualidade. Seus filmes criam relações sintáticas e simbólicas peculiares entre os integrantes de famílias. Igualmente, eles sempre partem de uma constatação, a de que a familiaridade é um fenômeno incontornável.

Sim, porque aquilo que definirá uma familiaridade, em Anderson e fora dele, será uma noção de previsibilidade e de inevitabilidade de uma relação. Uma relação de família é uma relação inevitável, por mais que não seja prática. Não se deixa de ser pai ou filho, por mais que não haja ações paternais ou filiais.

O
que pode faltar a uma relação familiar, entretanto, é a harmonia. E essa falta é sempre o ponto de partida do cineasta. E é justamente o que o conduz à busca pela ascese neste filme. Ora, de certa maneira, os personagens sempre buscam a ascese nos filmes de Anderson. Essa utopia de paz interior, que aqui toma a forma de um reencontro espiritual consigo, é, no final das contas, sempre a harmonia familiar. E o elemento chave é uma harmonia na diferença, na diferença que iguala a todos. Por isso os personagens do diretor são constantemente considerados esquisitões. São um bocado farinha do mesmo saco. Mas mesmo igualmente diferentes, guardam diferenças entre eles.

Esse olhar fez de Anderson uma espécie de inseminador de uma onda de filmes em Hollywood, onde que começa a quase se consolidar quase como um gênero, o filme-de-família-disfuncional-que-se-ama-apesar-dos-conflitos-e-que-se-dá-ao-riso. Depois de Os Excêntricos Tenenbaums (2001), ele mesmo um turning point no certo clichê de família disfuncional aberto por Beleza Americana (1999) surgiram trabalhos como As Confissões de Schmidt (2002), de Alexander Payne; A Lula e a Baleia (2005), de Noah Baumbach, aliás pupilo de Anderson; ou Pequena Miss Sunshine (2006), de Jonathan Dayton e Valerie Faris. Mas enquanto esses filmes mais se aproveitam os personagens como bucha de canhão para a comédia e a tortura, criando neles uma espécie de versão intelectualóide de Os Simpsons, Anderson tem operado sempre uma operação de fabulação da elevação espiritual na forma da (re)conquista da paz em família. Em seus filmes, uma dramaturgia peculiarum universo mesmo –, é criada para dar conta de um drama das validades possíveis de relações entre personagens que reconhecem cada um suas singularidades. Os personagens de Anderson são sistematicamente egoístas.

Em Viagem a Darjeeling, essa busca por harmonia/ascese é dada, então, como traçado. Traçado que, no princípio, busca ignorar, como disse acima, a descida ao inferno. Parece ser justamente esse o objetivo de Francis, apagar o conflito do passado por meio de uma espécie de adoçamento ritualístico new age. Sua esperança é a de que se for encontrada a paz-fim, o conflito-meio não será necessário. Mais que isso, para ele a única forma de se chegar à paz é pelo esquecimento do que impedia a paz.

Não à toa, vemos a mãe como alguém que abandonou a família justamente em busca da elevação. Como freira. Como missionária católica. E vemos Francis a imitar os passos da mãe, como se descobrirá, por trejeitos e hábitos, que ele faz o tempo todo. Esse jogo de contradição – o que lhe deu possibilidade de amar a família foi estar a milhares de quilômetros dela, ligada a outra, a “de Cristo” – não apenas espelha a busca dos irmãos como ajuda a explicar a opção aparentemente “antropológica” do filme. Ora, a explicação mais fácil para a escolha da Índia como cenário é a da busca pelo exótico, pelo estranhamento que poderia igualar os irmãos. Mas o que se dá na prática no filme é que o lugar serve muito mais como metáfora eclesiástica. A Índia do filme é mais uma atitude do que um lugarpor mais que se queria fazer uma crítica a sua etnografia questionável e a momentos como o do menino que rouba o calçado de Francis. E, ao mesmo tempo, é mais um cenário onde se possa ritualizar a vida sem constrangimento.

Assim como o espaço-personagem que era o barco de Steve Zissou, o trem é desnudado por um plano que o atravessa o trem (de perfil, claro), de ponta a outra, apresentando uma quase absurda galeria dos personagens do filme, cada um em uma cabine, a mulher grávida de Peter, a ex-mulher de Jack (que o encontraria em Roma), os indianos do trem, e até o homem de negócios vivido por Bill Murray. Mundo à parte, essa cena se soma a outras, dentre as várias caminhadas e visitas a templos e mercados, em que uma espécie de deslugar, de outra dimensão é construída. Sobretudo pelos diálogos um tanto non sense entre os três. O jogo de infidelidades deles, um contando ao outro a história do terceiro sobre a qual jurara segredo, apenas a fim de tirar vantagem, é uma reiteração da teatralidade com a qual Anderson mais uma vez compõe sua fabulação.

Francis
tenta banir o conflito, mas Anderson não permitirá. E fará isso com sua operação de construção de um ambiente em si, trazendo à tona o tempo todo metonímias que retomem as chagas que impedem o amor, a fraternidade entre os irmãos (como o cinto de Francis que Peter “toma emprestado” e depois ganha de presente e depois se forçado a devolver). Em determinado momento, isso, e a própria mecânica de Anderson, ficam escancarados, numa fala de Jack: “Vocês acham que seríamos amigos na vida real, quero dizer, não como família, mas como pessoas”. Ora, está tudo ali. Vida real e vida em família são opostas. A obrigatoriedade da relação determinada se torna um obstáculo para eles. A resposta de Peter: “Pelo menos teríamos mais chances”. Como se aquele reencontro não fosse uma.

Por isso mesmo, a operação de Anderson cria um esquematismo fabulesco que mais mitifica sua narração do que a confere realismo (estético, não existencial, desse eleconta com propriedade). O grande índice disso, claro, é o espelhamento a que a trama se impõe: se se separaram depois de um funeral, os irmãos apenas poderão se juntar novamente de fato após outro. E se o primeiro dos sepultamentos foi o do pai para os quais eles não foram bons filhos e do qual receberam uma paternidade discutível, o segundo terá que ser de um filho, de uma criança. A dor da perda do futuro se dá a eles como algo infinitamente mais poderoso do que a dor da perda do passado.

Filhos, vêem-se morrer na morte da criança que, afinal, eles, adultos, não conseguem salvar. No final das contas, era o fato de eles serem ainda crianças o que os impedia de serem amigos, irmãos. Sem filia nãoágape. E, disso, vem a conexão mais importante com Totem e Tabu, por oposição: em vez de comerem de fato as partes do pai, eles as deitam fora. Em uma repetição do formato da primeira cena, a da corrida em câmera lenta para alcançar o trem, Anderson faz as malas que marcam a presença paterna em torno dos irmãos serem abandonadas. Vemos, então, os restos mortais de cada um deles no passado, os restos mortais dos filhos que foram atrás do carro do progenitor na cena em flashback, serem trocados pelo vazio do futuro, pelo puro percurso, pela viagem.

Alexandre Werneck

1. Até o fechamento deste texto, não havia nenhuma indicação de que Brody estará no elenco de The Fantastic Mr. Ford, próximo filme de Anderson (previsto para lançamento em 2009), que deverá ser protagonizado por George Clooney e Cate Blanchet. Bill Murray, entretanto, está confirmado no elenco, mas provavelmente como narrador, tendo apenas suas voz aparecendo na película. Parece, então, – permitamo-nos a piadaque o riso de triunfo de Brody veio cedo demais. Ele se tornou um outro objeto habitual no cinema de Anderson, o “astro visitante”, papel que coube a nomes como Ben Stiller, Gwyneth Paltrow, Wille Dafoe e Natalie Portman.