A última
imagem de Conduta de Risco é, de longe, sua
mais
antecipável. É o rosto de George Clooney, num longo plano-seqüência
frontal, à
medida que seu táxi avança pelas ruas de Nova York. Nesse momento,
o fim do filme, com
os créditos passando ao lado, todo o circo de gato-e-rato do mundo corporativo
já foi armado e demolido, transformações já foram
operadas, justiça
(tanto a legal quanto a com as próprias mãos) já foi feita. É o
momento que
justificaria o nome do personagem de Clooney como o próprio título
original do filme: Michael Clayton nu, exposto diante de nossos olhos, uma vez
que a
própria estrutura de poder da qual ele era o mais empenhado porta-voz
acaba
também de se expor. Um turbilhão de informações passando
por sua cabeça justo
no momento seguinte à grande libertação das amarras profissionais
(mas, acima
de tudo, morais) que o prendiam até então. Deveria ser o momento
em que
finalmente nos conectamos à verdade deste personagem, não fosse
esta uma total impossibilidade diante da consistente negativa de Tony Gilroy
em enxergar a
trajetória de seu protagonista como uma história de redenção.
É o que, de política, há de
mais interessante em Conduta de Risco:
o reconhecimento quase embaraçado de que não há thriller corporativo capaz de dar conta de um sistema que é a
própria natureza constitutiva das relações econômicas e sociais no mundo "civilizado". E se
este sistema é também aquele pelo qual funcionam as personalidades daqueles que
fazem parte dele, de tal maneira modulador de caráteres que uma conversa de um
pai com seu filho de dez anos de idade é conduzida no mesmo tom que o arranjo
que este mesmo pai faz com um policial corrupto, então a humanização pura e
simples (como se imagina que um longo plano estático do rosto de uma pessoa em
toda sua fragilidade possa significar) não pode ser promovida sem que se equacione
o tipo de humanidade alcançável aqui.
Com o lado "do mal", Conduta de Risco será bastante rigoroso
(como convém ao tipo de cinema liberal dentro do conservadorismo que Clooney e
Steven Soderbergh têm produzido nos últimos três anos, sempre muito dedicado à
denúncia daquilo que um acordo tácito em Hollywood sempre evitava mencionar). A
personagem de Tilda Swinton é a ponta mais fraca da cadeia. Chefe
recém-promovida da grande empresa que está poluindo uma área agrícola familiar
e causando grandes danos à saúde local – o
mote ambientalista não poderia estar
de fora, evidentemente – seu
retrato de pessoa-por-trás-da-coorporação tenta
disfarçar interesse onde há, na verdade, puro julgamento. Só encontramos
Swinton nos momentos em que está prestes a pronunciar um grande discurso,
liderar uma reunião com acionistas ou responder perguntas de uma repórter.
Momentos em que se exige grande controle e confiança nas palavras ditas, mas
a montagem paralela de Gilroy intercalará as exibições públicas dessa firmeza
com o martírio privado por qual esta mulher precisa passar diariamente,
ensaiando seus discursos, testando fraseados diferentes, medindo cada termo (e
se decepcionando quando não consegue o efeito ideal). Não raro, estas cenas se
darão enquanto Swinton se veste para o trabalho – e
há uma clara oposição entre
os terninhos bem alinhados de lá e os sutiãs e calcinhas que deixam os excessos
da meia-idade escapar aqui.
Esta dinâmica de preparação e
atuação não soa, em nenhum momento, como a atitude de quem
se
permite olhar o inimigo
com algum desejo de compreensão. Quando virmos esta mesma mulher mais
adiante,
já completamente desarmada por um ato extremo de servilismo à sua
empresa,
trancada num banheiro público completamente apavorada, e exibindo para
a câmera
a enorme marca de suor na região das axilas, aí ficará mais
que claro que a Conduta de Risco não interessa
outra
relação com o mal que não constrangê-lo ao limite
do patético. O que não é, a
princípio, nenhum equívoco por si, não fosse a presença
inquietante de Sidney Pollack ali ao lado, como o presidente da firma de advocacia
que defende a empresa
criminosa, incorporação mais eficiente do mal dissimulado no cinema
contemporâneo (como bem diz Filipe Furtado). Em cada abraço de Pollack
em seu
"amigo" Michael Clayton, em cada sorriso simpático, um abismo
de falta de
escrúpulos que não podemos nem calcular, e isso só confirma
que o tratamento
dado à personagem de Tilda Swinton não é mais que sadismo
disfarçado de compaixão.
O desconhecimento, esse
abismo de onde não se tiram muitas certezas a não ser uma sensação
de que há "algo de podre" naquele reino, é parte da própria
constituição do protagonista.
Por um lado, temos a impressão de que Michael Clayton será o tipo
clássico do
herói redimido: é viciado em jogo e deve dinheiro à máfia,
tem um trabalho
difícil de definir, um "consertador" que faz todo tipo de trabalho sujo
para os
patrões, mas ao mesmo tempo é mostrado integrado em sua família,
tendo uma
relação saudável com o filho, dividindo uma amizade franca
com um advogado da
mesma companhia. Mas não se tira nenhum resultado certo a partir da equação
destas
diversas partes. O que passa pela câmera é sempre um corpo exaurido,
uma fadiga existencial evidente em cada movimento facial, uma ressaca permanente,
e ao
humano que interessa a Conduta de
Risco,
este que ainda insiste em fazer a coisa certa, por alguma razão confusa
entre a
lealdade, o resgate do amor-próprio e a responsabilidade com o coletivo,
a
ressaca não parece ser um estágio, mas um estado.
É o humano à beira do colapso
de consciência, e que possibilidades de encenação existem
aí para um filme cujo maior mote é exatamente a retomada de consciência
de alguém que cortejou
o lado negro e agora precisa se regenerar. Os primeiros quinze minutos de Conduta de Risco são absolutamente
siderantes. Uma narração longa de Tom Wilkinson (o advogado amigo
de Michael
Clayton) é a primeira coisa que o filme nos apresenta, sobreposta a imagens
de
escritórios e salas de reuniões completamente vazias. É uma
narração que não
tem qualquer nexo, abrindo portas para todo tipo de consideração
bizarra e caótica
sobre a vida. Só muito tempo depois descobriremos se tratar das revelações
de
um sujeito que acaba de surtar por ter suspendido a medicação que
tomava. Mas
ali naquele começo – e
de tal modo que contamine o filme inteiro,
mesmo quando
já soubermos que tudo não passava de um distúrbio químico – o
clima febril já
está instalado de maneira definitiva. Mais adiante, seremos apresentados
ao
protagonista em três pequenas seqüências. Numa, ele joga cartas
num cassino
ilegal, escondido em algum porão do lado perigoso da cidade. No seguinte,
aparece na casa de um grã-fino tentando lidar com o atropelamento-e-fuga
que o
sujeito acabara de cometer. E por fim, sem avisos, sem explicações,
veremos
George Clooney dirigindo pelo campo, até que estacione o carro no meio
de lugar
nenhum e suba uma colina, onde vai se encontrar com três cavalos que pastam
por
ali. Este encontro é filmado por Gilroy como algo sobrenatural. E não
duvidamos
que fosse mesmo.
Quando a estrutura do filme
se dobrar sobre estes eventos fora do ordinário, e voltar no tempo explicando
aos poucos como cada um deles pôde acontecer, a impressão de delírio já estará
impregnada demais para se desfazer. Este parece ser o preço a ser pago pelos
anos de competitividade feroz e esfacelamento moral e físico dos jogos de
poder. A humanização possível dos personagens presos no meio desta engrenagem não
pode ser mais a da reabilitação total, retorno transformado à vida saudável e
feliz de outrora. O mais humano a se fazer é respeitar, e até mesmo olhar com
algum carinho, como fazem Gilroy e Conduta
de Risco, a completa e irreversível insanidade destas pessoas.
Rodrigo de Oliveira
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