O Dia que o vampiro retomou a cinemateca
(sobre a sessão de filmes do Jairo Ferreira no Fest. Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo)

“Falhas técnicas? Isso é uma especialidade do Brasil, terra sem know how. O documentário que, como diz Marcio Souza em sua modéstia, devia ficar para o cinema brasileiro de hoje como Aruanda para o cinema novo, deverá ser exibido em Brasília – é de esperar - caia como um espinho na garganta dos boçais que ainda não descobriram o Brasil, aliás, Oswald de Andrade, antropófago, designer de linguagem, revolucionário e o que mais de bom possa existir nessa seção do terceiro mundo, o Brasil.”
-- Jairo Ferreira

“o cinema brasileiro está tão ruim que só tem como melhorar.”
“o cinema brasileiro está tão ruim que só tem como piorar.”
-- Rogério Sganzerla em pontos diferentes de Horror Palace Hotel

O evento que aconteceu no último dia 28 de agosto na Cinemateca Brasileira foi único não só pelo que transcorria na tela, como pelo clima que marcava a sessão. Havia um genuíno tom conspiratório – no bom sentido - no ar, enquanto na tela o vampiro Jairo Ferreira retomava a posição que lhe era de direito.

Jairo, afinal, foi sempre uma figura à parte dentro da história oficial do cinema brasileiro, e faz todo o sentido que uma das raras sessões com seus filmes terminasse por quebrar completamente a lógica habitual dos grandes eventos de cinema que temos por aqui. O Festival de Curtas de São Paulo, apesar de toda a sua simpatia, não tem como não ser, graças a seu tamanho, um evento de caráter ao menos semi-oficial, e uma mostra com os curtas-metragens de Jairo Ferreira foi um bem-vindo corpo estranho a bagunçar a ordem esperada.

Já sabíamos que a sessão seria única no momento em que entramos na sala da Cinemateca e a primeira fileira - aquele velho reduto de uma certa cinefilia - foi quase toda tomada antes que alguém sequer se sentasse nas demais (o amigo Eduardo Valente ficou tão traumatizado com a imagem que fez questão de fugir para o fundo da sala). Logo depois, quando era feita a apresentação oficial da sessão, e mencionaram que haveria a exibição de um curta surpresa, o cineasta Paulo Sacramento (responsável pela preservação dos filmes de Jairo) interrompeu e lembrou que não havia sentido em criar mistério, considerando que a grande maioria dos presentes já sabia que filme seria. Na altura que a sessão finalmente começou, o clima total de informalidade reinava, ajudando a reforçar a impressão que estávamos diante não de uma sessão de festival, mas sim de um bando de amigos que seqüestrou a Cinemateca para uma exibição privada.

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E quanto aos filmes que justificavam a sessão? Foram seis, todos eles singulares e fascinantes, ainda que nem sempre com a mesma intensidade. O Guru e os Guris, onde o guru Maurice Legeard, responsável pela Cinemateca de Santos, discorre sobre sua crença cinematográfica; Ecos Caóticos, ensaio sobre Sousândrade e o que mais estivesse na cabeça de Jairo; O Ataque das Araras, em que a indústria da Boca desce o Rio Negro até encontrar o cineasta Marcio Souza montando uma peça; Antes que Eu me Esqueça, onde Jairo registra o lançamento de um livro do poeta Roberto Bicelli; a obra-prima Horror Palace Hotel, sobre um Festival de Cinema Brasileiro de Horror correndo paralelamente ao Festival de Brasília de 78; e, por fim, Nem Verdade Nem Mentira, um falso documentário (ou será ficção documental?) sobre jornalismo.

Exceção feita ao primeiro e ao último, são todos filmes rodados em Super-8, e, salvo justamente Nem Verdade Nem Mentira (filme que originou-se da necessidade do produtor Antonio Pólo Galante de produzir um curta para preencher cota), são todos filmes que partem de uma pulsão para registrar algo. Neste sentido, o título de Antes que Eu me Esqueça – o filme mais fraco do programa – diz muito sobre a proposta de cinema de Jairo. O cineasta filmava como escrevia, com uma informalidade que sempre nos desarma, indo direto ao que interessa. Ecos Caóticos, neste sentido, é fascinante, um filme que parte da poesia de Sousândrade e faz com que ela desemboque nas ruas de São Paulo. Ecos Caóticos é um filme exemplar justamente na medida em que o estilo direto de Jairo redimensiona a obra do homenageado, e faz com que ela flua com uma liberdade
e uma força que a história oficial da literatura brasileira não permite. Não deixa de ser um interessante complemento visual para o Revisão de Sousândrade dos irmãos Campos.

O cinema de Jairo parece se construir a partir de duas pulsões centrais: de tudo registrar e de dar espaço a um processo de troca cultural. Não deixa de lembrar uma versão mais anárquica do cinema de um Jonas Mekas. Em O Ataque das Araras, os paulistas invadem o Amazonas. João Calegaro, autor de O Pornógrafo, está lá para rodar um comercial. Marcio Souza, autor de Bárbaro e Nosso, dirige uma peça. Outras personalidades da indústria de cinema paulistana, como Osvaldo de Oliveira, também estão por lá. É uma história de expedição, uma aventura hawksiana pelo Rio Negro, cujas imagens ganham direção com a narração de Jairo, que comenta, faz troça, narra, retira delas um sentido onde menos se espera. Vendo O Ataque das Araras percebemos como não existe diferença entre escrever e filmar.

Os Gurus e os Guris e Nem Verdade Nem Mentira são dois filmes com princípios opostos, mas similares. Mesmo que em sua maioria encenados, mantêm uma lógica documental no que apresentam. Nem Verdade Nem Mentira costura de maneira mais clara uma ficção, com Patricia Scalvi interpretando uma jornalista fazendo um filme sobre jornalismo. Ainda assim, as seqüências em que Jairo lança Scalvi são diretas e exatas em sua descrição do meio. Já em Os Gurus e os Guris, o cineasta acompanha Maurice Legeard num ponto de partida mais documental. As imagens que Jairo encontra têm, no entanto, uma construção mais poética e ensaística na maneira como tratam o discurso de Legeard sobre cinema e cineclubismo.

O melhor dos filmes curtos de Jairo Ferreira é mesmo Horror Palace Hotel, o mais ousado e ambicioso deles. É a história de uma invasão, a do Festival de Brasília pelo Festival do Filme de Horror Brasileiro, e por conseqüência de toda uma história reprimida do cinema nacional. Usando Rogério Sganzerla como guia e José Mojica Marins como objeto maior (o subtítulo do filme - O Gênio Total - seria mais tarde reaproveitado pelo cineasta, como título do capítulo sobre Mojica no seu Cinema de Invenção), Jairo costura um ensaio sobre o cinema brasileiro que vai aos poucos penetrando pelas bordas. Genuíno exemplar de filme fantástico, escreve nas suas imagens a maneira como o cinema brasileiro é um cinema assombrado, e vai aos poucos dando corpo ao sentimento de insatisfação geral. Um filme sobre o fracasso do cinema brasileiro, o mais próximo que o cineasta chegou da obra de Sganzerla, cheio de grandes momentos de invenção, como na maneira que Francisco Almeida Salles e Rudá de Andrade são cooptados para a lógica do filme, ou nas tentativas de Sganzerla de entrevistar Mojica, grande encontro de gigantes captado com inteligência e criatividade pela câmera de Jairo.

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Ao fim da sessão, o clima geral de informalidade continuou com a decisão de trocar o debate por uma esticada até um bar nas imediações, falar sobre filmes e assistir a seleção brasileira de basquete – ela própria acidentada de uma maneira não muito diferente do cinema brasileiro – numa das suas exibições mais aceitáveis. Poderíamos até lamentar que o quorum da sessão fosse quase exclusivamente de iniciados, mas diante de um evento especial como o daquela noite a perda é dos que não compareceram. Aos presentes, valia mais a pena celebrar a vitalidade do que se via na tela.

Filipe Furtado

 

 








Jairo Ferreira...
e Horror Palace Hotel, sua obra-prima