Tempestade.
Um helicóptero sobrevoa uma densa e escura floresta
da América Central. O sádico e autoritário sargento
West (Samuel L. Jackson, cuja voz já se fizera reconhecível
em off desde o início da cena) dita as regras
da "brincadeira" para os soldados que se preparam
para descer por uma corda e se embrenhar pela floresta.
É de se pensar: John McTiernan retornou ao cenário do
primeiro O Predador. Uma elipse, entretanto,
transporta o filme para um ponto em que já foi consumada
uma série de fatos enigmáticos, incluindo a morte de
quase todo o time que desceu do helicóptero. Do treinamento
que terminou em matança, apenas dois sobreviventes,
duas testemunhas mudas, que não querem ou não conseguem
colaborar. Entra em ação Tom Hardy (John Travolta),
ex-oficial do exército que carrega má fama (alcoolismo,
acusação de corrupção) e atualmente pertence à divisão
de narcóticos. Cabe a ele que, apesar da reputação controversa,
tem habilidade como interrogador, e a Julia Osborne
(Connie Nielsen), uma jovem recruta bastante aplicada,
a condução da investigação.
Através
dos depoimentos, o filme tentará restituir aquela elipse,
aquele elo perdido entre a descida dos soldados e a
cena em que um já atira contra o outro. Uma questão
primordialmente cinematográfica. O filme não voltará
à selva senão por intermédio de depoimentos das testemunhas,
ou seja, de versões, de meias-verdades, de tudo aquilo
que uma narrativa precisa para se preencher de reviravoltas
e redirecionamentos. Onde a opção do roteiro por um
tema sério (ética e conduta militar, narcotráfico, política
internacional – ação do exército norte-americano nos
arredores do canal do Panamá) ameaça trazer alguma mensagem
forte, pouco a pouco se vê que o objetivo principal
é a encenação de um jogo. Da mesma forma que a cada
testemunha cabe uma verdade, ao filme pertence a liberdade
de mostrar o que bem entende – ou não mostrar. Se há
uma denúncia em Violação de Conduta, ela está
menos na ação dos militares que no discurso (podendo
este ser expandido a toda uma imagem vendida por um
país em guerra contra o resto do mundo – e aqui McTiernan
estaria sendo aquele auteur politizado de que
uns falam seriamente e outros debocham), um discurso
que posteriormente pode ser elaborado em cima dessa
ação. Aquela elipse, aquele ponto nevrálgico em que
ocorreram as mortes, estará nas mãos do articulador
do discurso, que ali depositará sua versão: mortes acidentais,
mortes propositais, briga por dinheiro ou por drogas,
rivalidades pessoais.
Violação
de Conduta é um filme mais de diálogo que de ação.
Mas são diálogos contundentes, com frases de efeito,
com trocas de gestos e olhares que podem a qualquer
momento mudar o rumo da narrativa (tal como em Duro
de Matar 3, outro filme de McTiernan com Samuel
L. Jackson no elenco). Câmera e atores movidos por um
desejo do diretor de encadear artifícios retóricos e
resolvê-los no próprio pôr-se-em-cena. A retórica dos
personagens e a da câmera se confundem, jogam no mesmo
lado. Todo e qualquer diálogo em Violação de Conduta
é uma questão de cinema a ser resolvida com precisos
lances de mise-en-scène. Suas imagens são peças
de artesanato, feitas com o cuidado e a precisão de
quem já domina o ofício. Tom Hardy conversa com Julia
Osborne, e há no mínimo três tonalidades de cor dividindo
o quadro: uma luz vermelha sobre os rostos, uma amarela
no canto esquerdo, uma azul passando por entre as venezianas,
além de flashes dos faróis de carros e aviões que circulam
na base militar onde a maior parte do filme se passa.
Com discrição e maestria, McTiernan fez um filme-recreação.
São as charadas e o gosto pela celebração (acrescida
de uma saborosa pitada de desconstrução) da própria
"lógica interna" do filme de aventura que
movem Violação de Conduta. É o John McTiernan
de O Último Grande Herói, obra-prima injustiçada,
que está aqui de volta, em menor grau de metalinguagem,
obviamente, mas com o mesmo interesse declarado pelos
jogos de cena e de narrativa.
O filme
de roteiro engenhoso representa uma parcela considerável
do cinema de ação contemporâneo. Não à toa os trapaceiros
estão em alta: Nove Rainhas, Onze Homens e
um Segredo, O Assalto, Lance de Sorte,
Confidence. Um personagem que ludibria o outro,
um filme que ludibria o espectador. Também não falta
a esses filmes uma linguagem visual ágil e estilizada.
Os roteiros filmados por McTiernan já possuíam gráficos
oscilatórios, cheios de traições e truques, desde Duro
de Matar. Em Violação de Conduta, contudo,
a busca pela grande surpresa final, a grande revelação,
está pormenorizada: McTiernan não aposta nessa verdade
que cintila no fim do túnel. Seu filme não leva tão
a sério o ponto de chegada, a resolução do enlace narrativo,
mas antes valoriza o processo, a tensão entre os pólos
de farsa e honestidade, confiança e desconfiança (como
fazem também os outros, mas há de se admitir que neles
o desfecho não só é crucial como chega, por vezes, a
querer "validar" o filme). Ele faz agora o
que sempre fez: assume o velho jogo, mas repensando
as regras e os métodos.
A oposição
"básica" endereçada ao par central do filme
(Travolta/Nielsen) está no cerne das questões levantadas
por McTiernan. De um lado a busca pela verdade por meios
claros, a pureza de princípios da personagem de Nielsen.
De outro o disfarce, a malandragem de Travolta à frente
do "grupo dos oito". E entre os dois se desenvolve
um embate de condutas que naturalmente se transforma
em jogo de sedução: ao pensar suas próprias formas (de
narrativa, de imagem, de encenação), McTiernan alcança
um local de atrito (reconstituição de fatos versus elogio
da mentira, limpidez versus saturação, desvendamento
versus ocultação) que logo se desdobra em convite à
cumplicidade (do que a cena-resumo é a piscadela de
Tom Hardy para uma Julia Osborne ainda perplexa após
descobrir que ele, West e outros mais estavam apenas
disfarçados para desvendar uma operação ilegal no alto
escalão dos oficiais).
Muitas
das imagens de Violação de Conduta são confusas
e saturadas (de cores, de signos). Imagens de difícil
legibilidade que, ou se contrapõem à vontade do roteiro
de querer ser entendido, ou justamente corroboram uma
idéia de não-verdade, de retalhos de contos que não
querem promover uma leitura definitiva (e o cinema seria
mais um desses contos). Como a cena de uma festa popular
no final do filme confirma, trata-se de um desfile carnavalesco:
cores, ritmos, flertes, fantasias, máscaras, mescla
de luxo e grotesco (a cena de um soldado morrendo envenenado,
após vomitar sangue). A operação de treinamento fracassada
que compõe a base do roteiro de Violação de Conduta
metonimiza o cinema de John McTiernan: é da simulação,
da ambigüidade e do caos que ele retira a força expressiva
da qual tem saído grandes filmes já há algum tempo.
Luiz Carlos Oliveira Jr. (texto publicado originalmente à
época do lançamento do filme nos cinemas)
(DVD: Fox)
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