THOMAS CROWN - A ARTE DO CRIME
John McTiernan, The Thomas Crown Affair, EUA, 1999

Por amor ao jogo

Há tão pouco de Crown, o Magnífico neste filme de John McTiernan que parece até descabido falar num remake. Mas, mesmo que aproveite não mais que cinco pequenas seqüências do original de Norman Jewison, e de resto transforme literalmente todos os elementos da trama, resgatando um fiapo narrativo para preenchê-lo de sentidos completamente insuspeitos no filme de 1968, parece haver um prazer abusado, quase cínico, na maneira com que Thomas Crown – A Arte do Crime vê a si mesmo como a re-feitura de algo. É disso, no fim das contas, que estamos tratando aqui. Todas as tensões do filme se dão exatamente no momento em que aquilo que é real, concreto, historicamente estabelecido, se encontra com a imagem de sua reprodução, às vezes dada apenas por um simples espelhamento, às vezes tão real e tão concreto quanto a própria coisa que imita. Este mundo de Thomas Crown é um mundo em crise de reconhecimento: que segurança pode haver na vida se nada daquilo que vemos é o que nos parece aos olhos? McTiernan sabe que a resposta a um dilema dessa natureza é, antes de tudo, uma questão de defesa de valores.

A começar pela transformação central de um filme a outro. Steve McQueen era um executivo endinheirado que roubava um banco. O prazer do ato ilícito se justificava nele mesmo, na adrenalina que proporcionava ao playboy e na confirmação de seu descolamento do mundo comum, esse que funciona por regras e que costuma punir quem as rompe – punir os outros, não ele. O barato do personagem de Pierce Brosnan não deixa de ser auto-centrado, afinal de contas o Monet exposto no museu para milhares de visitantes, depois de roubado, passa a ter um único observador, ele mesmo. Mas o prazer não é furtar, ou saber-se capaz de infringir a lei e sair ileso. O prazer está na própria obra de arte, e na relação única que se estabelecerá com ela. Os dólares roubados pelo velho Crown se somam indistintos aos outros já existentes nas contas bancárias do ladrão, enquanto o Monet do novo Crown é pura distinção, peça única, inestimável. Sim, sim: Thomas Crown é todo sobre se fazemos o que fazemos na vida por dinheiro ou por amor.

E para um filme nascido no exato limite entre uma coisa e outra, a própria polarização destas duas forças-motoras não poderia ser tão radical sem que algum exame de consciência estivesse em curso. E é ali, no divã de um consultório, que McTiernan começa sua trama. Faye Dunaway está de volta, e já não é mais a femme fatale de Crown, o Magnífico. Sua relação com o personagem-título é de uma superioridade escancarada, e isso num contexto em que a primeira conversa entre ela e Crown versa exatamente sobre a arrogância dele no trato com as pessoas. Poucas vezes se viu uma psiquiatra que desafiasse tanto seu paciente, não só colocando-o contra a parede sempre que percebe algum tremor de sua parte, como também disparando para cima dele um sarcasmo incrivelmente corrosivo. Faye Dunaway é o grilo-falante importado de 1968, e sua firmeza no trato com Crown é a manifestação do peso da memória, do peso da história. Se Thomas Crown é um remake, Dunaway está ali para cobrar os direitos autorais.

E, ainda assim, talvez nem se possa falar mesmo de autoria. Não é bem Norman Jewison, um operário esforçado, mas nunca mais que um operário, que McTiernan coloca no divã. Nem tampouco a figura da agente de seguros, no fundo a própria adaptação do feminino a uma micro-estrutura tão brutalizada como a do filme de ação. É que a estrutura maior, a dos gêneros, esta mesma a quem McTiernan prestou tantos tributos ao longo de sua carreira, estava chegando ao fim da linha, já completamente transtornada pelo misto de repetição automática e incompetência com que vinha sendo tratada. Nisso, Crown, o Magnífico anunciava uma espécie de novo paradigma, a partir do qual o prazer pelo acúmulo de dinheiro garantia, por si, a diversão de todo o trabalho da indústria. McTiernan, que soube lucrar como poucos no cinema americano dos anos 80 e 90, não está interessado em culpabilizar o dinheiro. Talvez por isso mesmo, para declarar sua paixão pelo ofício da direção, ele tenha escolhido voltar justamente a um personagem como este Crown, que sempre faz parecer que o prazer verdadeiro é sempre o mais caro. O preço agora é outro. É o confronto com um sentimento, com a possibilidade real de se apaixonar por algo que o dinheiro não pode comprar. O interesse aqui é espalhar o amor para onde quer que seja. Em Thomas Crown ama-se sempre, acima de qualquer coisa.

McTiernan já tinha lidado com casais antes, mas os relacionamentos eram sempre projeções para o futuro, lá onde seus filmes não estariam para testemunhá-los (foi assim com a índia e o Dutch de O Predador, com McLane e a reconciliação com a esposa em Duro de Matar, com o casal improvável de O Curandeiro da Selva). A primeira grande surpresa de Thomas Crown, este filme de assaltos mirabolantes e planos geniais, é que toda esta pirotecnia está a serviço de uma história de amor que McTiernan, pela primeira vez, realizará dentro da tela. As interpelações que a psiquiatra faz ao protagonista cobram dele a necessidade de confiar nos outros, mas como poderia ele? É todo um cinema construído em torno do afrouxamento das relações, da desobrigação de motivos, de emoções, onde tudo acontece muito mais por uma lógica exterior ao próprio universo ficcional do que por alguma indicação interior de que as coisas precisam e mereçam se movimentar. Curiosamente, é este cinema o único lugar em que pessoas como Thomas Crown e Catherine Banning poderiam existir: tão filhos do artificialismo, da mão evidente de um roteirista que torne seus diálogos mais inteligentes e afiados, de um diretor que saiba como filmar uma caminhada imponente, como tirar deles uma expressão charmosa, como fazê-los a quintessência do cool.

É por isso, talvez, que Crown e Catherine imediatamente se envolvam um com o outro. Não só porque são, como bem percebe a tal psiquiatra, oponentes à altura. Mas porque nesse jogo de cartas marcadas que ainda tenta disfarçar o “acaso”, quando duas potências como estas se encontram, elas evidentemente ficarão juntas. É um espelhamento de personalidades acontecendo num filme que reproduz um outro pré-existente, que por sua vez reproduzia as regras de um espectro bastante específico do cinema, regras essas que ainda valem para o momento em que McTiernan olha para todo este painel de imagens feitas à fôrma e de personagens-protótipo. Havia razão para a resistência de Crown: não há nada confiável neste mundo de falsas impressões duplicadas aos montes.

E nem nunca haverá, parece nos dizer McTiernan. O terreno por onde todos eles andam é o terreno das imagens de segunda mão. Foi ele mesmo o diretor de filmes que renderam continuações, que foram baseados em grandes best-sellers, no fim até mesmo refilmagens de sucessos antigos. A exaustiva repetição das fórmulas produz exatamente isso, o distanciamento cada vez mais radical daquele ponto de origem. Aproximar-se de um personagem, de uma ação, de um diálogo, hoje em dia, é sempre aproximar-se do já conhecido, do já visitado – que, por efeito das pequenas adições ou atualizações sofridas ao longo do tempo, é cada vez menos reconhecível. O gênero, no cinema contemporâneo, não passa da imitação perfeita de sua própria história, só que agora pintado à tinta guache. Qualquer banho d’água tira logo sua imponência, desmancha sua beleza, e revela que a obra não é mais que o rascunho derivado de uma outra.

Não bastasse a reprodutibilidade técnica, agora também a artística. Mas se existe aqui algo que não tínhamos antes, a própria disposição em amar a arte como se ama si mesmo (“Quem poderia fazer uma coisa dessas?”, “Ora, só um amante de Monet.”), não há o que fazer a não ser mergulhar na fraqueza, insistir no falso, na cópia, na multiplicação em série. Fazer deste ambiente de incertezas, agora sob nosso controle (McTiernan na produção das imagens, Pierce Brosnan na encenação interior delas), um ambiente que nos ame reciprocamente. Ou seja, que nunca nos pinta a guache, que nunca nos perca na primeira enxurrada.

É daí que surge a seqüência do chapéu-coco de Thomas Crown, aquela que, sozinha, já garantiria o nome de John McTiernan na galeria dos maiores do cinema nos últimos 20 anos. Dela, diz o próprio diretor na faixa de comentários da edição em DVD, não existia mais que uma linha no roteiro. E como escrever uma seqüência daquelas? Como fazer daquelas imagens tão esfuziantes a reprodução de algo que havia sido anteriormente ordenado no papel? Resumo e transbordamento de sua própria trajetória, esta cena é aquele voto de confiança que Crown insistia em não dar a ninguém, mas que aqui ganha a cumplicidade apaixonada de McTiernan. Se o dinheiro é um dado certo do processo, e se agora o amor também o é, não há motivo para se ressentir da falta de originalidade. Pelo contrário: é dela que tiramos a diversão. Há primeiro o Le fils de l'homme, o quadro de René Magritte. Uma das imagens mais conhecidas do mundo, este que é apenas um dos vários homens-de-chapéu-coco pintados pelo belga, também é dos mais misteriosos. Porque o sabemos de cor, mas nunca vimos seu rosto, sempre coberto por uma maçã-verde.

Ora, o que McTiernan quer com seu filme é exatamente isto. Ressaltar o caráter de reprodução, afirmar a condição de um remake, insistir na cópia, só para nos dizer que tudo isso que julgamos tão familiar nos é ainda bastante desconhecido. O truque que Crown utiliza para enganar a polícia é o mesmo que McTiernan usa para nos provocar enquanto receptores distraídos da imagem: a familiaridade que confunde, a multiplicação que não facilita o trabalho de identificação (Ah, são todos iguais...), mas que o torna mais deliciosamente frustrado (Meu Deus, são todos iguais!). De Crown mesmo, não sabíamos nada: nem nós, nem Catherine Banning. Ela também enxergava Crown com uma maçã sobre o rosto. Ela também se surpreende quando o sujeito que julgava ser um modelo da frieza do filme de assalto se revela um herói do filme romântico, que se reproduz num quadro, nas fotocópias deste quadro, nos diversos sósias espalhados por um museu, só para dar a prova de que, por trás da maçã-verde, seu amor é verdadeiro.

Mas falar em verdade, a essa altura do campeonato, é uma loucura. Mas uma loucura a que não resistiremos: as peças são de mentira, mas o jogo armado e defendido com tanto empenho por McTiernan, esse sim é real. Mesmo que o próprio Thomas Crown, obra-prima da irrealidade, nos desminta.

Rodrigo de Oliveira

(DVD: Fox)

 

 




 

Crown se apresenta...

... como o remake de Magritte (mas de rosto descoberto)

E insiste nas cópias: do quadro...

... e de si mesmo