Por
amor ao jogo
Há tão
pouco de Crown, o Magnífico neste filme de John
McTiernan que parece até descabido falar num remake.
Mas, mesmo que aproveite não mais que cinco pequenas
seqüências do original de Norman Jewison, e de resto
transforme literalmente todos os elementos da trama,
resgatando um fiapo narrativo para preenchê-lo de sentidos
completamente insuspeitos no filme de 1968, parece haver
um prazer abusado, quase cínico, na maneira com que
Thomas Crown – A Arte do Crime vê a si mesmo
como a re-feitura de algo. É disso, no fim das contas,
que estamos tratando aqui. Todas as tensões do filme
se dão exatamente no momento em que aquilo que é real,
concreto, historicamente estabelecido, se encontra com
a imagem de sua reprodução, às vezes dada apenas por
um simples espelhamento, às vezes tão real e tão concreto
quanto a própria coisa que imita. Este mundo de Thomas
Crown é um mundo em crise de reconhecimento: que
segurança pode haver na vida se nada daquilo que vemos
é o que nos parece aos olhos? McTiernan sabe que a resposta
a um dilema dessa natureza é, antes de tudo, uma questão
de defesa de valores.
A começar
pela transformação central de um filme a outro. Steve
McQueen era um executivo endinheirado que roubava um
banco. O prazer do ato ilícito se justificava nele mesmo,
na adrenalina que proporcionava ao playboy e na confirmação
de seu descolamento do mundo comum, esse que funciona
por regras e que costuma punir quem as rompe – punir
os outros, não ele. O barato do personagem de Pierce
Brosnan não deixa de ser auto-centrado, afinal de contas
o Monet exposto no museu para milhares de visitantes,
depois de roubado, passa a ter um único observador,
ele mesmo. Mas o prazer não é furtar, ou saber-se capaz
de infringir a lei e sair ileso. O prazer está na própria
obra de arte, e na relação única que se estabelecerá
com ela. Os dólares roubados pelo velho Crown se somam
indistintos aos outros já existentes nas contas bancárias
do ladrão, enquanto o Monet do novo Crown é pura distinção,
peça única, inestimável. Sim, sim: Thomas Crown
é todo sobre se fazemos o que fazemos na vida por dinheiro
ou por amor.
E para
um filme nascido no exato limite entre uma coisa e outra,
a própria polarização destas duas forças-motoras não
poderia ser tão radical sem que algum exame de consciência
estivesse em curso. E é ali, no divã de um consultório,
que McTiernan começa sua trama. Faye Dunaway está de
volta, e já não é mais a femme fatale de Crown, o
Magnífico. Sua relação com o personagem-título é
de uma superioridade escancarada, e isso num contexto
em que a primeira conversa entre ela e Crown versa exatamente
sobre a arrogância dele no trato com as pessoas. Poucas
vezes se viu uma psiquiatra que desafiasse tanto seu
paciente, não só colocando-o contra a parede sempre
que percebe algum tremor de sua parte, como também disparando
para cima dele um sarcasmo incrivelmente corrosivo.
Faye Dunaway é o grilo-falante importado de 1968, e
sua firmeza no trato com Crown é a manifestação do peso
da memória, do peso da história. Se Thomas Crown
é um remake, Dunaway está ali para cobrar os
direitos autorais.
E, ainda
assim, talvez nem se possa falar mesmo de autoria. Não
é bem Norman Jewison, um operário esforçado, mas nunca
mais que um operário, que McTiernan coloca no divã.
Nem tampouco a figura da agente de seguros, no fundo
a própria adaptação do feminino a uma micro-estrutura
tão brutalizada como a do filme de ação. É que a estrutura
maior, a dos gêneros, esta mesma a quem McTiernan prestou
tantos tributos ao longo de sua carreira, estava chegando
ao fim da linha, já completamente transtornada pelo
misto de repetição automática e incompetência com que
vinha sendo tratada. Nisso, Crown, o Magnífico
anunciava uma espécie de novo paradigma, a partir do
qual o prazer pelo acúmulo de dinheiro garantia, por
si, a diversão de todo o trabalho da indústria. McTiernan,
que soube lucrar como poucos no cinema americano dos
anos 80 e 90, não está interessado em culpabilizar o
dinheiro. Talvez por isso mesmo, para declarar sua paixão
pelo ofício da direção, ele tenha escolhido voltar justamente
a um personagem como este Crown, que sempre faz parecer
que o prazer verdadeiro é sempre o mais caro. O preço
agora é outro. É o confronto com um sentimento, com
a possibilidade real de se apaixonar por algo que o
dinheiro não pode comprar. O interesse aqui é espalhar
o amor para onde quer que seja. Em Thomas Crown
ama-se sempre, acima de qualquer coisa.
McTiernan
já tinha lidado com casais antes, mas os relacionamentos
eram sempre projeções para o futuro, lá onde seus filmes
não estariam para testemunhá-los (foi assim com a índia
e o Dutch de O Predador, com McLane e a reconciliação
com a esposa em Duro de Matar, com o casal improvável
de O Curandeiro da Selva). A primeira grande
surpresa de Thomas Crown, este filme de assaltos
mirabolantes e planos geniais, é que toda esta pirotecnia
está a serviço de uma história de amor que McTiernan,
pela primeira vez, realizará dentro da tela.
As interpelações que a psiquiatra faz ao protagonista
cobram dele a necessidade de confiar nos outros, mas
como poderia ele? É todo um cinema construído em torno
do afrouxamento das relações, da desobrigação de motivos,
de emoções, onde tudo acontece muito mais por uma lógica
exterior ao próprio universo ficcional do que por alguma
indicação interior de que as coisas precisam e mereçam
se movimentar. Curiosamente, é este cinema o único lugar
em que pessoas como Thomas Crown e Catherine Banning
poderiam existir: tão filhos do artificialismo, da mão
evidente de um roteirista que torne seus diálogos mais
inteligentes e afiados, de um diretor que saiba como
filmar uma caminhada imponente, como tirar deles uma
expressão charmosa, como fazê-los a quintessência do
cool.
É por
isso, talvez, que Crown e Catherine imediatamente se
envolvam um com o outro. Não só porque são, como bem
percebe a tal psiquiatra, oponentes à altura. Mas porque
nesse jogo de cartas marcadas que ainda tenta disfarçar
o “acaso”, quando duas potências como estas se encontram,
elas evidentemente ficarão juntas. É um espelhamento
de personalidades acontecendo num filme que reproduz
um outro pré-existente, que por sua vez reproduzia as
regras de um espectro bastante específico do cinema,
regras essas que ainda valem para o momento em que McTiernan
olha para todo este painel de imagens feitas à fôrma
e de personagens-protótipo. Havia razão para a resistência
de Crown: não há nada confiável neste mundo de falsas
impressões duplicadas aos montes.
E nem
nunca haverá, parece nos dizer McTiernan. O terreno
por onde todos eles andam é o terreno das imagens de
segunda mão. Foi ele mesmo o diretor de filmes que renderam
continuações, que foram baseados em grandes best-sellers,
no fim até mesmo refilmagens de sucessos antigos. A
exaustiva repetição das fórmulas produz exatamente isso,
o distanciamento cada vez mais radical daquele ponto
de origem. Aproximar-se de um personagem, de uma ação,
de um diálogo, hoje em dia, é sempre aproximar-se do
já conhecido, do já visitado – que, por efeito das pequenas
adições ou atualizações sofridas ao longo do tempo,
é cada vez menos reconhecível. O gênero, no cinema contemporâneo,
não passa da imitação perfeita de sua própria história,
só que agora pintado à tinta guache. Qualquer banho
d’água tira logo sua imponência, desmancha sua beleza,
e revela que a obra não é mais que o rascunho derivado
de uma outra.
Não bastasse
a reprodutibilidade técnica, agora também a artística.
Mas se existe aqui algo que não tínhamos antes, a própria
disposição em amar a arte como se ama si mesmo (“Quem
poderia fazer uma coisa dessas?”, “Ora, só um amante
de Monet.”), não há o que fazer a não ser mergulhar
na fraqueza, insistir no falso, na cópia, na multiplicação
em série. Fazer deste ambiente de incertezas, agora
sob nosso controle (McTiernan na produção das imagens,
Pierce Brosnan na encenação interior delas), um ambiente
que nos ame reciprocamente. Ou seja, que nunca nos pinta
a guache, que nunca nos perca na primeira enxurrada.
É daí
que surge a seqüência do chapéu-coco de Thomas Crown,
aquela que, sozinha, já garantiria o nome de John McTiernan
na galeria dos maiores do cinema nos últimos 20 anos.
Dela, diz o próprio diretor na faixa de comentários
da edição em DVD, não existia mais que uma linha no
roteiro. E como escrever uma seqüência daquelas? Como
fazer daquelas imagens tão esfuziantes a reprodução
de algo que havia sido anteriormente ordenado no papel?
Resumo e transbordamento de sua própria trajetória,
esta cena é aquele voto de confiança que Crown insistia
em não dar a ninguém, mas que aqui ganha a cumplicidade
apaixonada de McTiernan. Se o dinheiro é um dado certo
do processo, e se agora o amor também o é, não há motivo
para se ressentir da falta de originalidade. Pelo contrário:
é dela que tiramos a diversão. Há primeiro o Le fils
de l'homme, o quadro de René Magritte. Uma das imagens
mais conhecidas do mundo, este que é apenas um dos vários
homens-de-chapéu-coco pintados pelo belga, também é
dos mais misteriosos. Porque o sabemos de cor, mas nunca
vimos seu rosto, sempre coberto por uma maçã-verde.
Ora, o
que McTiernan quer com seu filme é exatamente isto.
Ressaltar o caráter de reprodução, afirmar a condição
de um remake, insistir na cópia, só para nos
dizer que tudo isso que julgamos tão familiar nos é
ainda bastante desconhecido. O truque que Crown utiliza
para enganar a polícia é o mesmo que McTiernan usa para
nos provocar enquanto receptores distraídos da imagem:
a familiaridade que confunde, a multiplicação que não
facilita o trabalho de identificação (Ah, são todos
iguais...), mas que o torna mais deliciosamente frustrado
(Meu Deus, são todos iguais!). De Crown mesmo, não sabíamos
nada: nem nós, nem Catherine Banning. Ela também enxergava
Crown com uma maçã sobre o rosto. Ela também se surpreende
quando o sujeito que julgava ser um modelo da frieza
do filme de assalto se revela um herói do filme romântico,
que se reproduz num quadro, nas fotocópias deste quadro,
nos diversos sósias espalhados por um museu, só para
dar a prova de que, por trás da maçã-verde, seu amor
é verdadeiro.
Mas falar
em verdade, a essa altura do campeonato, é uma loucura.
Mas uma loucura a que não resistiremos: as peças são
de mentira, mas o jogo armado e defendido com tanto
empenho por McTiernan, esse sim é real. Mesmo que o
próprio Thomas Crown, obra-prima da irrealidade,
nos desminta.
Rodrigo de Oliveira
(DVD: Fox)
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