O Último Grande Herói foi um fracasso de público.
Ainda que seja uma comédia na maior parte do tempo,
o filme traz o ocaso no título, e explora o sentimento
que daí surge sem medo de transformar-se em lamúria.
Nos anos 90, seu parentesco mais próximo estaria em
um filme como Rápida
e Mortal, de Sam Raimi: um mesmo gosto pelo pastiche,
um mesmo acento lúdico, um mesmo fermento maneirista,
uma mesma inspiração no cartoon.
Em Raimi, contudo, prevalece
o jogo, a brincadeira com as formas, a pesquisa sobre
novas “tecnologias” da decupagem
e da excitação visual. McTiernan
também realiza seqüências de ação incríveis,
trabalha cada mínimo detalhe do gestual e do visual
dos personagens, aproveita as chances dadas pelo volume
simbólico e iconográfico que a consciência sobre o cinema
de gênero permite, mas o olhar do personagem de Schwarzenegger
quando avista o cartaz de “Jack Slater
IV” e se descobre um mero produto da imaginação é algo
que jamais figuraria em Rápida e Mortal. O Último Grande Herói tem esse assombro de ter chegado após o fim
de uma era. Se por um lado McTiernan
não perde a piada (as piscadas de olho são infinitas,
variando do sutil ao explícito), por outro há um cenário
em penumbra, algo que constata uma tristeza. O mais
buddy movie dos filmes
de McTiernan, o mais engraçado,
o mais ambicioso, o mais auto-reflexivo é também seu
mais melancólico. E sua obra-prima.
Os signos de crepúsculo estão em cada detalhe. A começar
pelo cinema onde o menino Danny
assiste à saga de Jack Slater (Schwarzenegger): uma sala de arquitetura antiga e
mal conservada, descascada pelo tempo. Nick,
o velho projecionista, é um sobrevivente do antigo espaço de fruição
dos filmes (o cinema de rua, o espetáculo lotado), alguém
cujo tempo de vida praticamente equivale à idade do
cinema. No começo do filme ele dorme na sala de projeção,
que herdou de seu pai, enquanto Danny
assiste sozinho a “Jack Slater
III”. Em um cinema fantasmagórico, um filme de gênero
feito em moldes anacrônicos é projetado, sendo visto
pela sexta vez por um espectador pré-adolescente vidrado
em tudo que acontece na tela, antecipando cada fala
ou ação. A quadra de Nova York em que
essa sala de cinema se localiza, por sua vez, parece
em si mesma um museu da cinefilia,
uma calçada por onde a Morte (egressa diretamente de
O Sétimo Selo)
circula.
Nick diz que o bilhete dourado
que entrega a Danny, antes da sessão prévia de “Jack Slater
IV”, foi um presente de Harry
Houdini (há inclusive um pôster
dele na sala de projeção), quando este se apresentou
ali naquela sala de cinema, muitos anos antes de Danny
sequer sonhar em nascer. Segundo o famoso ilusionista,
aquele bilhete seria a porta de entrada para um mundo
mágico. Houdini representava
um dos baluartes da efervescente cultura dos espetáculos
do corpo no início do século XX, um ideal heróico de
talento físico. A princípio inspirado pelo espiritualismo,
ele posteriormente negou-o em favor de apresentações
onde o corpo real era colocado no centro de significação
do espetáculo: a ilusão se distanciava do espírito da
ficção, queria se passar por verdade corpórea. Houdini
chegou a tentar carreira no cinema, aparecendo em uma
meia-dúzia de filmes, mas não deu certo e acabou se
voltando – de forma semelhante à sua relação com o espiritualismo
– contra o cinema, valorizando a performance ao vivo,
a presença física do showman. Mas era o corpo cinemático, naquele momento,
que já triunfava sobre o corpo real: basta citar que
os espetáculos de vaudeville primeiro passavam filmes
como adendos aos espetáculos ao vivo, antes destes começarem,
porém rapidamente as performances ao vivo se tornaram
mero entretenimento auxiliar para as grandes atrações,
isto é, os filmes que eram depois projetados.
Esse espetáculo americano do corpo, em que Houdini
se destacou, seria reencontrado no cinema de aventura,
nas potencialidades do herói de ação, e na comédia física,
nas acrobacias do herói burlesco, elementos que parecem
comentados de alguma maneira em O
Último Grande Herói. Da mesma forma que as performances
físicas de Houdini foram superadas pelo lugar imaginário da ficção cinematográfica,
o herói feito de músculos e frases de efeito interpretado
por Schwarzenegger tinha também seus anos de glória
chegando ao fim em 1993. Vindo acompanhada de todo um
novo regime de imagem, velocidade, narrativa, ficção
etc, a maleabilidade do corpo digital tornava démodé
aquela truculência toda, como o próprio Schwarzenegger
havia experimentado um pouco antes, deparando-se com
o metal líquido do T-1000 em O
Exterminador do Futuro 2.
Mais ainda: o cinema de gênero em si, fosse seu herói
uma massa orgânica ou um corpo-elástico confeccionado
em CGI, estava em crise com seus códigos. Era como se
o pacto de adesão às inverossimilhanças do mundo ficcional,
suas leis e arbitrariedades próprias, estivesse em suspenso,
em renegociação (um novo design e uma nova estratégia
narrativa se teceriam mais tarde, hoje sabemos). Como
mostra uma das cenas mais divertidas do filme, a crise
é hamletiana: "ser ou não ser".
Mais do que um cinéfilo, Danny
é um cine-filho, alguém que se deixa adotar pelos filmes,
um exemplo limite de espectador de cinema – uma dedicação
à sala escura que já existia em outras épocas, remotas
até. Ao mesmo tempo, ele representa um extremo da história
da espectatorialidade: um olhar que reconhece todas as convenções,
os códigos, os truques, as técnicas. Danny
possui uma excessiva consciência em relação ao universo
ficcional, à lógica interna de um filme, é um espectador
nascido após o fim da inocência. Nick, ao contrário, pertence a uma outra época. Ele se surpreende
quando Danny diz que o bilhete
mágico de fato funciona. “Eu poderia ter feito uma visita
à Greta Garbo”, arrepende-se. Acontece que na época
em que Nick era um cinéfilo
como Danny, ninguém ousaria
transpor essa barreira, ninguém admitiria a hipótese
de passar para o outro lado da representação. Danny é um espectador da era dos parques temáticos, da visita
aos estúdios da Universal como modelo de entretenimento.
Visitar os cenários dos filmes, o lugar onde são feitos,
conhecer os bastidores, ver de perto a maquinaria do
cinema, isso ameaçava substituir, no imaginário das
novas gerações, o próprio encontro com o filme, esse
grande outro que perdia seu espaço para a constatação
do mesmo – pois o local de fabricação dos filmes pertence
ao mesmo mundo do espectador, é uma realidade como outra
qualquer. Já os filmes em si, estes vão sempre preservar
uma qualidade de outro; o mundo do filme e o mundo do
espectador nunca serão o mesmo, nem se esforçando muito
para isso. Haverá sempre uma separação que está na base
do espetáculo e da ontologia do cinema (o coeficiente
de semelhança entre o mundo representado na tela
e o mundo real não altera essa evidência
primeira, de que entre o espectador e o filme se desenvolve
uma relação de "um" com o "outro").
O Último Grande
Herói é um filme sobre o novo estatuto dessa fronteira.
Danny atravessa a tela e cai
no mundo do filme a que assistia, sendo integrado à diegese. Ele agora é ator e espectador
do cinema, vai para o mundo em que os bad guys nunca vencem no final. O filme é um
pouco uma versão de A
Fantástica Fábrica de Chocolate voltada mais explicitamente
para o universo cinematográfico. O último grande herói
não é apenas Jack Slater:
é também Danny, é também Nick,
pessoas que resguardam um tipo de relação com o cinema
em vias de desaparecer. É também John McTiernan.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(DVD: Sony Pictures)
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