Não é
a toa que Duro de Matar: A Vingança tenha representado
o ápice de um determinado tipo de cinema de ação existente
durante os anos 80 e parte dos 90. Nele, todas as características
do gênero, já bem trabalhadas nos primeiros dois filmes
da série, são ampliadas ao máximo por John McTiernan.
A ênfase na potencialidade do corpo do protagonista
como principal instrumento do filme de ação, cujo esforço
é estendido até beirar o sobre-humano, a manipulação
do tempo para o aumento da tensão, criando um estilo
de narrativa sem pontos de alívio, e a estruturação
de um roteiro em que não existe nada que não esteja
subordinado à necessidade de adrenalina, sem tramas
paralelas ou personagens suplementares, aqui ganham
uma nova dimensão.
Essa era
a época de uma ação de dublê, em que a tecnologia de
efeitos especiais se dava em tiros, batidas de carro
e explosões realizadas mais durante a própria filmagem
do que na pós-produção, levando o perigo para perto
da vivência do ator no set (não era incomum se ressaltar
a coragem de um ator ao realizar um filme ou uma cena
sem dublê, muitas vezes como parte da propaganda em
torno da produção). Existia uma ligação direta entre
os sentidos do personagem principal e o da própria platéia,
tornando o ato de colocá-lo em perigo, suportando ferimentos
e levando seu corpo ao limite, uma forma de identificação
que funcionava como um estimulante sendo injetado direto
nas veias dos espectadores. Esse mecanismo de identificação,
bastante anterior a esses filmes, se diferenciava por
se concentrar no corpo do personagem – daí a necessidade
de se criar efeitos especiais que mantivessem o realismo
físico da cena.
Com o
tempo, ficou clara a separação entre dois tipos de heróis,
de acordo com a condição de seus corpos nos filmes.
Havia os indestrutíveis, representados principalmente
por Arnold Schwarzenegger e Jean-Claude Van Damme, que
em filmes como Comando para Matar e Duplo
Impacto representavam máquinas perfeitas de guerra,
imbatíveis, geralmente treinados no exército e em artes
marciais. Eles nunca sofriam ferimentos que os debilitassem
ou dos quais eles não se recuperassem logo depois, ou
seja, nunca eram expostos a uma limitação. Na verdade,
era com frieza e facilidade que saiam de situações de
perigo e cumpriam seus objetivos. Um culto ao corpo
perfeito e infalível era comum à boa parte desses filmes,
enquanto a “fragilidade” dos protagonistas era invariavelmente
depositada na relação com uma pessoa próxima, seqüestrada,
ameaçada ou colocada em perigo de uma forma geral –
ou seja, em um plano psicológico, e não físico. Do outro
lado havia o Bruce Willis dos dois primeiros Duro
de Matar, Mel Gibson em Mad Max e Sylvester
Stallone em Tango & Cash e Rambo.
Neles, os corpos dos heróis sofrem danos que se acumulam
por todo o filme, deixando cicatrizes, sangues secos
e sinais da exaustão progressiva. Eles são colocados
no limite, e mesmo que a lógica do cinema nunca nos
deixe pensar que morrerão, sua fragilidade está na possibilidade
de não sobrar força em seu organismo para salvar quem
quer seja.
E é nesse
sentido que John McClane, principalmente no terceiro
filme da série, é um herói de carne e osso. O clichê
faz sentido exatamente porque, no final das contas,
não há nada em suas características físicas que o distancie
de um homem comum e o torne indestrutível. Em Duro
de Matar 3 não existe tentativa de humanizar McClane
a partir de um ponto-de-vista psicológico, tornando-o
mais frágil ao mostrar, por exemplo, que ele também
tem problemas pessoais ou fraquezas emocionais. Pelo
contrário, nesse caso não chegamos a presenciar nenhum
momento sequer de sua vida pessoal – como na relação
com a esposa nos outros filmes. Ser de carne e osso
aqui significa ter um corpo passível de dano. Bem por
isso, o enredo do filme é voltado para um jogo em que
o vilão obriga McClane a correr por NY para desarmar
bombas, forçando nele a exaustão e os ferimentos de
que é capaz de sofrer.
McTiernan
parece ter adquirido total consciência do personagem
que ajudou a criar em 1988 com o primeiro Duro de
Matar, e também do público que o tornou um sucesso.
Como McClane dispensa apresentações (algo positivo entre
todas as dificuldades criativas de se fazer uma continuação),
desde a primeira cena o diretor pode se dedicar a estabelecer
o caos em que ele será jogado, exercendo incontáveis
vezes sua capacidade de sobreviver a todo tipo de perigo,
como se lutasse contra um roteiro que só existe para
tentar matá-lo das mais diversas e criativas formas.
No meio de cada uma das cenas de tensão temos comentários
sarcásticos e soluções engraçadas para contornar a situação
e, depois delas, ferimentos, roupas rasgadas e um corpo
desgastado, normalmente mostrado em planos próximos
do personagem. Acompanhamos sempre de perto a progressão
de sua deterioração física. Ao mesmo tempo, as cenas
de descanso são habilmente escondidas por meio de elipses,
o que ajuda a submeter o tempo no filme à lógica perversa
do próprio vilão. Também nesse ponto, repete-se o exagero
de mecanismos já conhecidos do cinema, espalhando o
efeito bomba-relógio, geralmente ligado ao final dos
filmes, a todo e qualquer momento. Graças ao controle
de McTiernan, a real explosão de energia é evitada até
a penúltima seqüência.
Simon,
vivido por Jeremy Irons, representa um tipo de vilão
que complementa com perfeição essa condução frenética
da trama, assim como o propósito básico de matar McClane.
Ele é um terrorista louco, mas que pensa objetivamente
no seu plano. O jogo proposto por ele tem um motivo
prático, o que o diferencia de um vilão sádico cuja
forma de matar é repleta de requintes de crueldade e
planos mirabolantes (um tipo imortalizado nos quadrinhos
pela figura do Coringa, por exemplo). Embora a trama
relativa ao plano dos bandidos seja cheia de pormenores,
a apresentação do bando e do plano em si é feita de
forma tão sutil (no meio do frenesi das cenas de ação)
que são quase secundárias para o filme. A equipe de
Simon, na verdade, é explicada como um grupo ligado
ao exército alemão misturado com terroristas free-lancers,
e é só.
Toda essa
construção meticulosa de McTiernan criou um filme com
uma qualidade pouco comum ao cinema de ação de hoje
– na verdade, talvez essa seja uma qualidade de toda
a obra do diretor e, em parte, do próprio cinema de
ação da época – que é o perfeito funcionamento de todos
os seus mecanismos quando o filme é exibido em uma tevê,
e não no cinema. Isso porque a atração desses filmes
não é baseada na grandiosidade dos efeitos de computação
gráfica ou no poder de impacto imediato da imagem. A
ação está contida na própria ação, ou seja, na movimentação
dos corpos em cena e nos perigos que eles enfrentam.
A decupagem privilegia planos mais fechados, que não
perdem informação em telas menores, e o clima do filme
se dá pela proximidade e identificação com o personagem
e não pela criação de uma razão de epopéia para a história
(como na trilogia O Senhor dos Anéis), que se
perde facilmente com a diminuição da tela e do clima
completo de imersão.
Podemos,
portanto, ficar tranqüilos, pois assistir Duro de
Matar: A Vingança em DVD inclui toda adrenalina
que essa obra-prima carregava no cinema.
Bernardo Barcellos
(DVD: Fox)
|