Há algo
de estranho em Duro de Matar. Há uma aura sombria,
de falência de qualquer tipo de valor, que se impõe.
As pessoas deste terceiro e melhor filme de John McTiernan
parecem perdidas, se apegando somente às possibilidades
materiais que o trabalho pode dar. Talvez fosse necessário
que um bando de terroristas fosse chacoalhar todo aquele
marasmo yuppie. Sim, porque com os yuppies surgiram
também os terroristas do capital, ladrões de elite que
se disfarçam de terroristas, mas querem mesmo é botar
a mão na grana alta. Talvez fosse necessário todo o
quebra-quebra para que esses executivos pálidos percebessem
que o mundo que lhes favorecia poderia jogar, e muito,
contra tudo o que lhes era importante. Um exemplo? Um,
entre vários: o papel da mídia, que acaba sendo usada
como aliada dos falsos terroristas. Outro: a opulência
que facilitaria o aprisionamento desses fazedores de
dinheiro, com o forte esquema de segurança do prédio
yuppie, que acabaria servindo para manter os engravatados
"do bem" ainda mais isolados de qualquer espécie
de ajuda.
O castigo,
no entanto, seria exagerado, implicaria na morte de
muita gente, e não só num feito digno de Robin Hood.
Bruce Willis estaria ali para garantir que esse castigo
não fosse aplicado. Eles teriam, então, a segunda chance
de se desapegar desses ideais pragmáticos. A não ser,
claro, aqueles que já não tinham mais salvação, como,
por exemplo, o chefão-mor da grana em L.A., um nipônico
que fazia exatamente o que queriam que ele fizesse na
matriz em Tóquio. O fato de ser japonês deve querer
dizer alguma coisa, e muito diferente de uma suposta
xenofobia (alemães e holandeses irados chefiados por
um inglês classudo que mata o chefão inimigo, um japonês
ultra-capitalista). Talvez McTiernan queira refletir
sobre o capital americano, que se abre para outros mercados,
mas que é ameaçado por quem não participa dessa abertura.
Ou já esteja de olho na globalização, assunto que se
tornaria moda poucos anos depois, e que já era discutido
em algumas rodas seletas em 1988.
Que seja.
Seria mais um alvo contra a metralhadora giratória do
diretor. Duro de Matar é um desses filmes que
vai contra tudo, ou quase tudo. Contra os yuppies e
o capitalismo, contra aquela área chique de L.A. onde
fica o prédio atacado, contra uma noção de segurança
que amplifica o medo e enclausura a todos, contra algumas
instituições americanas - além da televisão, o FBI e
a polícia de Los Angeles são muito mal representadas
no filme. Mas se Willis é contrario a toda a ostentação
que parece seduzir sua irreconhecível esposa (então
uma importante executiva), como podemos perceber no
desprezo que ele demonstra em todo o prólogo, também
é contrário ao ataque autoritário dos que se arvoram
inimigos dessa ostentação, mas que querem apenas tirar
suas casquinhas. Willis no banheiro, enfastiado, louco
para rever os filhos e tentar convencer a mulher de
que aquilo não é vida que se preze, acaba ouvindo os
tiros ameaçadores dos bárbaros pseudo-politizados. E
aí tudo começa.
Assim
como em Delírios Mortais, a impressionante estréia
de McTiernan, a grande crítica de Duro de Matar,
que amarra todas as outras, parece se endereçar mais
a um espírito presente naquela década estranha e naquela
California decadentista do que a qualquer outra coisa.
Logo no começo, Willis observa uma mulher com roupa
provocante pulando no colo do namorado que acabava de
desembarcar em L.A., e faz um comentário jocoso: "Califórnia".
Essa jocosidade contra o estado da costa oeste americana
seria repetida mais adiante no filme. Seria quase um
grito de revolta, muito mais feroz e abrangente do que
qualquer protesto fílmico-político seria capaz. Continua
sendo muito forte, aliás, quase vinte anos depois. Seria
um grito consciente de uma derrota, mas consciente também
de que deveria ser feito, e muito alto. Planos ilustrativos
como o das notas flutuando no ar, caindo devagar nos
jardins do prédio, seriam um comentário eficaz que fortaleceria
esse grito. Assim como o motorista da limusine que levou
Willis ao prédio, preso dentro de suas próprias ambições,
que atira o carrão que com tanto garbo dirigia - e até
habitava - no furgão inimigo: arrebentar seu símbolo
de status para ajudar a possibilitar a segunda chance
de todos.
Não seria
disparatado comparar o primeiro Duro de Matar
ao segundo episódio da saga dos mortos vivos de George
Romero, O Despertar dos Mortos. No lugar do shopping,
há o prédio yuppie. No lugar do consumismo, é a especulação
sendo atacada por um bando de zumbis que funcionariam
como anarquistas. Só que os zumbis de Duro de Matar
estão mais mortos que os do Romero, pois querem o mesmo
que os yuppies querem. Têm as mesmas fraquezas de suas
vítimas. Os zumbis de Romero eram esclarecidos, e procuravam
cercar os humanos dentro de seus próprios domínios,
enclausurados bem perto daquilo que almejavam, e que
podia ser adquirido no shopping center. Eles tinham
tudo às mãos, mas teriam que usar os produtos como armas
contra os zumbis. Os yuppies de McTiernan não têm a
mesma sorte, pois o que eles podem consumir está fora
dali. Ali só existe o luxo decorativo, o banheiro com
mármore europeu, os móveis com madeira pura e muito
bem tratada. Contra quem os aprisiona, eles precisam
de um herói, mas ao contrário do filme de Romero, esse
herói não faz parte desse mundo de especulações. Trata-se
de um simplório policial de Nova York, aquela cidade
do outro lado do país, onde ainda havia espaço para
o interesse em coisas mais nobres.
O momento
em que aparece o letreiro com o nome do filme já diz
muito: pessoas recolhendo as bagagens no aeroporto,
enquanto Willis sobe as escadas, no fundo do plano,
com um ursão de pelúcia para sua filhinha, o mesmo urso
que apareceria depois, no retrovisor da limusine, enquanto
o motorista lhe oferecia alguns prazeres materiais,
e mencionava umas "ursinhas" interessantes
e feitas de carne e osso. Contra o materialismo, o trabalhador
carinhoso e bom pai, que minutos antes havia flertado
com a aeromoça. Willis, naquele momento, parecia ser
o último herói de ação com espírito e humor, cinismo
estampado no rosto, acendendo um cigarro antes de qualquer
outra coisa, pronto para olhar para a câmera e dizer:
"welcome to the human race".
McTiernan
pode até ter se acertado com Los Angeles e a Califórnia
em filmes futuros, mas nessa época pretendia salvar
a cidade a fórceps, mostrando todos os podres e incinerando
a ganância que observava ali. Duro de Matar é
um dos grandes filmes políticos de ação, como Exterminador
do Futuro 3, de Jonathan Mostow, e Fuga de Los
Angeles, de John Carpenter; mas talvez seja bobagem
reduzir esses três filmaços, muito elaborados esteticamente,
a um gênero que não está no mapa da crítica - que finge
não existir cérebro nesse "tipo de filme".
Algumas das inquietações do diretor seriam retrabalhadas
em O Último Herói Americano e em outros filmes.
Mas é em Duro de Matar que elas se encontram
com força inequívoca.
Sérgio Alpendre
(DVD: Fox)
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