DELÍRIOS MORTAIS
John McTiernan, Nomads, EUA, 1987

1986, auge do metal farofa nos EUA, popularização do VHS, decadência da estética neon de Besson e Beinex no cinema, início do segundo mandato do presidente Reagan. A Califórnia, por concentrar todas as cafonices pouco antes delas serem propriamente vistas como cafonas, tem a tendência de ser sempre o lugar ideal para o retrato da desilusão com o status quo. Nesse estado ensolarado, tivemos fortes ondas no mundo cultural, da surf music às pichações de rua, do hip hop ao skate punk, do hair metal (divertida denominação para o que chamamos de metal farofa) ao trash metal. Tudo parece ter se intensificado por aquelas paragens. Um lugar pós-tudo. Decadente e moderno, excessivo e conservador, todos os paradoxos cabiam na Califórnia dos anos 80 e, em maior grau, em sua cidade mais famosa, Los Angeles.

Nesse contexto de apocalipse estrutural surge um filme que colocaria um bom diretor no mapa. Um diretor que filmava muito bem, tinha boa noção de dramaturgia, mas não levava muito a sério as noções do que se pode ou não fazer com a verossimilhança. Era John McTiernan e seu Delírios Mortais, história de espíritos rebeldes, meio punks meio posers (como eram chamados os faroleiros do hair metal e quetais), que assombravam um fotógrafo até a morte. O que se pode notar, com esta habilidosa estréia, é a capacidade de McTiernan de criar um clima efetivamente sinistro e delirante durante praticamente todo o filme. Algo de Cidade do Medo, de Abel Ferrara, e de alguns filmes de David Cronenberg pode ser encontrado em Delírios Mortais. Existe, sobretudo, uma entrega despudorada ao inesperado e ao frenético, com os últimos acontecimentos da vida do fotógrafo interpretado por Pierce Brosnan, invadindo, ou melhor, violentando a mente da doutora que o tratou em seus últimos momentos.

Mas há o inverossímil. E não se trata aqui de condenar essa prática, porque o cinema parece ser ideal para isso. O problema é como se dá essa inverossimilhança. Brosnan assiste a um assassinato mas, em vez de se esconder, chama a atenção dos assassinos. Depois, na fuga, se esconde debaixo de um carro, numa rua larga e muito depois de uma esquina. Qualquer ser que enxergasse um palmo à frente do nariz poderia achá-lo. Incomoda, porque poderia ter sido melhor filmado, a encenação mais pensada, as reações mais de acordo com o que esperamos de qualquer pessoa. Ou o completo inverso disso, já que estamos no terreno do incerto e do fantasmagórico. O meio termo entre a reação compatível e uma reação que servisse ao encaminhamento das coisas só mostra um tanto de pressa ou preguiça. Claro, são poucos momentos, que não prejudicam o todo, mas que atrapalham um pouco a graça estranha do filme.

A trilha de metal farofa, que lembra Walter Hill e os momentos mais roqueiros de John Carpenter, embala o filme todo, e a trupe de espíritos punks de boutique que perseguem Brosnan são a caricatura dos guerreiros de Os Selvagens da Noite, o melhor filme de Hill. Delírios Mortais é a cara dos anos 80 em todos os sentidos, e é curioso notar que as referências visuais apontam quase sempre para o cinema de gênero que se fazia na época - não é difícil lembrar de Argento, Romero ou Fulci, principalmente pela maneira como a câmera ora parece um espírito que orbita os personagens, ora aprisiona-os dentro de um plano geral e sem fuga a não ser a escuridão. As listras de sombras que incidem como raios do mal afugentam nossos heróis. E só no final que eles vão perceber a grande sacada. Se o ideal é viver em paz, que seja fora da Califórnia.

Sérgio Alpendre

(DVD: LW Editora)