1986, auge do metal farofa nos
EUA, popularização do VHS, decadência da estética neon
de Besson e Beinex no cinema, início do segundo mandato
do presidente Reagan. A Califórnia, por concentrar todas
as cafonices pouco antes delas serem propriamente vistas
como cafonas, tem a tendência de ser sempre o lugar
ideal para o retrato da desilusão com o status quo.
Nesse estado ensolarado, tivemos fortes ondas no mundo
cultural, da surf music às pichações de rua, do hip
hop ao skate punk, do hair metal (divertida denominação
para o que chamamos de metal farofa) ao trash metal.
Tudo parece ter se intensificado por aquelas paragens.
Um lugar pós-tudo. Decadente e moderno, excessivo e
conservador, todos os paradoxos cabiam na Califórnia
dos anos 80 e, em maior grau, em sua cidade mais famosa,
Los Angeles.
Nesse contexto de apocalipse estrutural surge um filme
que colocaria um bom diretor no mapa. Um diretor que
filmava muito bem, tinha boa noção de dramaturgia, mas
não levava muito a sério as noções do que se pode ou
não fazer com a verossimilhança. Era John McTiernan
e seu Delírios Mortais, história de espíritos
rebeldes, meio punks meio posers (como eram chamados
os faroleiros do hair metal e quetais), que assombravam
um fotógrafo até a morte. O que se pode notar, com esta
habilidosa estréia, é a capacidade de McTiernan de criar
um clima efetivamente sinistro e delirante durante praticamente
todo o filme. Algo de Cidade do Medo, de Abel
Ferrara, e de alguns filmes de David Cronenberg pode
ser encontrado em Delírios Mortais. Existe, sobretudo,
uma entrega despudorada ao inesperado e ao frenético,
com os últimos acontecimentos da vida do fotógrafo interpretado
por Pierce Brosnan, invadindo, ou melhor, violentando
a mente da doutora que o tratou em seus últimos momentos.
Mas há o inverossímil. E não se trata aqui de condenar
essa prática, porque o cinema parece ser ideal para
isso. O problema é como se dá essa inverossimilhança.
Brosnan assiste a um assassinato mas, em vez de se esconder,
chama a atenção dos assassinos. Depois, na fuga, se
esconde debaixo de um carro, numa rua larga e muito
depois de uma esquina. Qualquer ser que enxergasse um
palmo à frente do nariz poderia achá-lo. Incomoda, porque
poderia ter sido melhor filmado, a encenação mais pensada,
as reações mais de acordo com o que esperamos de qualquer
pessoa. Ou o completo inverso disso, já que estamos
no terreno do incerto e do fantasmagórico. O meio termo
entre a reação compatível e uma reação que servisse
ao encaminhamento das coisas só mostra um tanto de pressa
ou preguiça. Claro, são poucos momentos, que não prejudicam
o todo, mas que atrapalham um pouco a graça estranha
do filme.
A trilha de metal farofa, que lembra Walter Hill e os
momentos mais roqueiros de John Carpenter, embala o
filme todo, e a trupe de espíritos punks de boutique
que perseguem Brosnan são a caricatura dos guerreiros
de Os Selvagens da Noite, o melhor filme de Hill.
Delírios Mortais é a cara dos anos 80 em todos
os sentidos, e é curioso notar que as referências visuais
apontam quase sempre para o cinema de gênero que se
fazia na época - não é difícil lembrar de Argento, Romero
ou Fulci, principalmente pela maneira como a câmera
ora parece um espírito que orbita os personagens, ora
aprisiona-os dentro de um plano geral e sem fuga a não
ser a escuridão. As listras de sombras que incidem como
raios do mal afugentam nossos heróis. E só no final
que eles vão perceber a grande sacada. Se o ideal é
viver em paz, que seja fora da Califórnia.
Sérgio Alpendre
(DVD: LW Editora)
|